Associação de Direito de Família e das Sucessões

PERDA DE UMA CHANCE

*Por Regina Beatriz Tavares da Silva

SÃO PAULO – Na última prova da Olimpíada deste ano, pessoas do mundo inteiro viram uma cena chocante, a seguir descrita.

Na maratona, o desportista brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima realizava a corrida com destacada performance, estando em primeiro lugar, com 28 segundos de vantagem sobre o segundo colocado, quando faltavam 6 quilômetros para terminar a corrida, cujo percurso total era de 42 quilômetros.

Naquele exato momento, Vanderlei foi barrado por um homem, empurrado por esse homem para fora da pista contra o público e, desequilibrado, caiu, sem que houvesse alguém a serviço do evento que efetivamente evitasse tal fato.

Somente após 8 segundos, graças à intercessão de um bom senhor de barbas brancas, que assistia a prova, e de outras pessoas, o atleta brasileiro conseguiu desvencilhar-se do agressor e voltar a correr.

Vanderlei foi, após isso, ultrapassado por outros dois competidores e terminou a prova em terceiro lugar.

O COB (Comitê Olímpico Brasileiro) recorreu prontamente ao COI (Comitê Olímpico Internacional), solicitando a revisão do resultado ou até mesmo a anulação da prova.

O Juri de Apelação da IAAF (Associação Internacional de Federações de Atletismo) manteve as posições do pódio.

Vanderlei recebeu a medalha de bronze.

Em razão de seu fair play, espírito e ideal olímpico, o atleta brasileiro receberá a medalha Barão Pierre de Coubertin do COI (Comitê Olímpico Internacional).

Teria Vanderlei perdido a oportunidade de ganhar a prova, de trazer uma medalha de mais nobre metal – ouro ou, ao menos, prata – para o Brasil?

Segundo experts, com o susto e a queda brusca, nessa situação um atleta sujeita-se a alterações físicas e psicológicas.

Em seu organismo, sofre alterações nas funções cardíacas (débito cardíaco ou fluxo de sangue bombeado pelo coração a cada minuto), no consumo de oxigênio e no equilíbrio hormonal. O reequilíbrio demanda tempo, de modo que para retomar o ritmo de suas funções o organismo precisa de dois a três minutos. Além disso, quando o atleta é paralisado, as sensações de cansaço e dor vêm de uma só vez. A descarga hormonal, principalmente de adrenalina, que prepara o organismo para defender-se, é incompatível com o estado do atleta, em face do esforço que é exigido numa competição desse tipo.

No âmbito psicológico, tamanho é o prejuízo que se espera de um atleta, nas mesmas condições, que desista da prova.

Disto ninguém pode duvidar, nem mesmo os responsáveis pelo evento olímpico – Athoc (Comitê Organizador dos Jogos de Atenas), IAAF (Associação internacional de Federação de Atletismo), e outras entidades porventura responsáveis.

Em face daquelas alterações orgânicas e psicológicas, não se pode dizer que o atleta brasileiro não teria terminado a prova em primeiro lugar, mesmo que não tivesse sofrido aquela violência, simplesmente porque sua diferença para o primeiro colocado já havia caído de 47 segundos para 26 segundos antes da paralisação.

Em razão das referidas alterações, tampouco é certo afirmar que, sendo de 28 segundos sua diferença de tempo do primeiro colocado, no momento da paralisação, e por ter sido de um 1 minuto e 16 segundos a diferença de tempo entre esses atletas na finalização da prova, Vanderlei não venceria a maratona, mesmo que não tivesse sofrido a agressão.

E, ainda, seria preciso apontar a diferença de tempo que o separava do segundo colocado na maratona, no momento em que foi afastado da prova, já que no final tal diferença foi de apenas 42 segundos.

Perda de tempo, perda do equilíbrio físico e emocional, ainda mais numa prova que tanto exige do atleta, a isso tudo foi submetido Vanderlei.

O equilíbrio do atleta foi quebrado, sua chance foi perdida.

A teoria da responsabilidade civil visa ao restabelecimento da ordem ou equilíbrio pessoal e social, por meio da reparação dos danos morais e materiais oriundos da ação lesiva a interesse alheio, único meio de cumprir-se a própria finalidade do Direito, que é viabilizar a vida em sociedade, dentro do conhecido ditame de neminem laedere (v. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil: direito das obrigações: 2ª parte, 34ª ed. atualizada e revista por Carlos Alberto Dabus Maluf e Regina Beatriz Tavares da Silva, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 445 e ss.).

Dos ensinamentos do saudoso Professor Carlos Alberto Bittar, extraímos o seguinte pensamento: “a técnica da reparação se qualifica como meio de defesa da personalidade…repugnando à consciência humana o dano injusto e sendo necessária a proteção da individualidade para a própria coexistência pacífica da sociedade”, de modo que “a teoria da reparação de danos ou da responsabilidade civil encontra na natureza do homem a sua própria explicação” (Reparação Civil por danos morais, 3ª ed. revista a atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 13/28).

Realmente é um sentimento social e humano a sujeição do causador de um dano ou mal à reparação da lesão, como deixou consignado o inesquecível Professor Caio Mário da Silva Pereira. Como sentimento social, a ordem jurídica não aceita que uma pessoa possa causar prejuízo a outra sem ter que reparar o dano, verificando-se no ofensor um fator de desequilíbrio. Como sentimento humano, não há como conformar-se que o lesante reste incólume ao ter causado prejuízo a alguém (Responsabilidade Civil, 8ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 10 e 11).

Muito embora não haja e não possa existir teoria permanente sobre a responsabilidade civil, já que esse instituto é dinâmico, adapta-se e transforma-se conforme evolui a civilização, é preciso conferir à responsabilidade civil a flexibilidade suficiente para, em qualquer época, em qualquer lugar, independentemente de novas técnicas, de novas atividades, ser assegurada a sua finalidade de restabelecer o equilíbrio afetado pela dano.

Para que se aplique o instituto da responsabilidade civil subjetiva é necessária a reunião de três pressupostos: ação ilícita, nexo causal e dano.

A ação ilícita reside na violação a direito da vítima do dano.

O direito do atleta brasileiro de fazer seu percurso sem obstáculos foi violado.

A ação ilícita pode ser dolosa, quando há vontade deliberada de causar o prejuízo, ou culposa, quando decorre de negligência, imprudência ou imperícia.

A conduta do indivíduo que agrediu Vanderlei, identificado como Cornelius Horan, ao que tudo indica classifica-se como dolosa, em face de sua vontade deliberada de interromper a corrida do atleta.

É preciso examinar com a devida atenção a culpa dos responsáveis pelo evento.

Foram gastos US$1,5 bilhões com segurança, intaladas 1.600 câmeras pela cidade, quebrado o sigilo telefônico da população em Atenas, mas onde estavam os batedores que deveriam acompanhar de perto o primeiro colocado há apenas 6 quilômetros da finalização da prova e com 28 segundos de diferença do segundo competidor?

Apenas um segurança com um modesto veículo de duas rodas e sem motor- uma bicicleta – estava mais ou menos próximo de Vanderlei.

Recorde-se que negligência é falta de cuidados apropriados a uma certa atividade. E a imperícia configura-se pela falta de conhecimentos técnicos necessários em determinada atividade.

Note-se que as provas de maratona colecionam incidentes históricos nas Olimpíadas. Em Sidney, em 2000, um outro agitador invadiu a prova, mas a reação dos seguranças foi rápida e ele não chegou a prejudicar os competidores. Em Munique, em 1972, um outro indivíduo, que queria aparecer, entrou na pista, mas não atrapalhou a evolução dos atletas. Em Atenas, em 1896, o líder da prova começou a passar mal, um organizador aproximou-se para ajudá-lo e o atleta assustado deu-lhe um murro no rosto, tendo ambos caído e sido levados para o ambulatório.

Portanto, era de esperar que outro episódio similar viesse a ocorrer na Olimpíada de 2004, em Atenas.

Parece evidente que faltou um batedor devidamente equipado para evitar o evento danoso, ficando as conclusões com o leitor.

Examinado o primeiro pressuposto – ação ilícita -, resta analisar o dano.

O dano precisa ter a seguinte característica: certeza, não sendo reparável o dano eventual. Mas está sujeito à reparação civil o dano futuro.

A medalha de ouro ou de prata seria eventual no caso analisado?

Dano eventual é dano hipotético, como o de um jovem que alegue inclinação para a carreira militar e que se torne inabilitado por dano sofrido em seu físico, vindo a pleitear indenização por não ter chegado a general (V. Caio Mário da silva Pereira, obra citada, p. 41).

Bem diferente esse exemplo do caso sob análise, em que se evidencia a perda de uma chance.

Como dizem os doutrinadores franceses, a reparação da pert d’une chance fundamenta-se numa probabilidade e numa certeza: a probabilidade de que haveria o ganho e a certeza de que da vantagem perdida resultou um prejuízo (Caio Mário da Silva Pereira, ob. citada, p. 42).

A certeza da perda da chance é tanto maior quanto mais o dano esteja próximo da ação ilícita.

Bem próximo do evento lesivo estava o dano futuro no caso apresentado.

O atleta brasileiro não era um simples coelho, assim chamado aquele que dispara na frente numa corrida de longa distância para atrapalhar os adversários de um determinado competidor ou somente porque não tem o treinamento exigido para evoluir na corrida com o ritmo adequado. Vanderlei havia se submetido a treinamento rigoroso, de cerca de quatro anos voltados à Olimpíada; sua performance na parte final da prova demonstrava ser um verdadeiro atleta; mesmo após a violência sofrida, voltou à prova e terminou em terceiro lugar.

A reparação civil tem várias formas.

Na forma pecuniária é chamada de indenização. No que diz respeito ao dano moral deve compensar a vítima e desestimular o(s) agente(s) quanto a outras condutas ou omissões lesivas. E no que diz respeito ao dano material, deve ressarcir os prejuízos sofridos, que são os danos emergentes (despesas do treinamento, por exemplo) e os lucros cessantes (prêmios que teria o direito de receber se ganhasse a medalha de ouro, por exemplo).

Outra forma de reparar o dano seria o oferecimento ao atleta brasileiro de uma medalha de ouro, mas é de indagar se isto cumpriria a finalidade do instituto da responsabilidade civil, que visa à integral reparação do dano.

Uma medalha de ouro, recebida em outra ocasião, que não a própria Olimpíada, sem que o atleta tenha a oportunidade de subir em primeiro lugar no pódio no exato momento da premiação dada na maratona, repararia integralmente os danos causados a Vanderlei, especialmente os danos morais?

Aqui, a conclusão também ficará para o leitor.

Fale conosco
Send via WhatsApp