Associação de Direito de Família e das Sucessões

O DIREITO SUCESSÓRIO NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

Por Dr. Carlos Eduardo Minozzo Poletto, que contribuiu com as sugestões legislativas da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) em relação ao Livro de Direito das Sucessões, na reforma do Código Civil. Publicado originalmente no Conjur.

Como se sabe, em dezembro de 2023 foram apresentados os relatórios parciais no âmbito da comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL), instalada pelo Senado, sob a Presidência do ministro Luis Felipe Salomão, do STJ, tendo como relatores a professora Rosa Maria de Andrade Nery e o professor Flávio Tartuce.

Nesse contexto, a subcomissão de direito das sucessões, integrada pela professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, pelo ministro aposentado Cesar Asfor Rocha, pelo professor Gustavo Tepedino e pelo professor Mário Luiz Delgado (subrelator), ofertou à comunidade jurídica um substancioso parecer, que, a despeito dos seus relevantes méritos, ostenta, em nosso sentir, certos pontos que careceriam de maiores e melhores reflexões.

Por isso, passaremos a tecer as nossas ponderações acerca de algumas das propostas encaminhadas, cujas críticas, parafraseando Judith Martins-Costa [1], ainda que contundentes, em nenhum momento deixarão de ser respeitosas, e, sobretudo, colaborativas, como convém acontecer em todo e qualquer processo legislativo plural e democrático [2].

Direito estrangeiro
Inicialmente, chama-nos a atenção a diminuta diligência dedicada ao estuário normativo estrangeiro, mormente no que concerne às recentes alterações empreendidas nas últimas décadas (ex. França em 2001 e 2006; Alemanha em 2009; Áustria em 2015; Bélgica em 2017 e 2022; Japão em 2018; Suíça em 2020), bem como pelo estudo das tendências da disciplina na doutrina internacional.

Apenas tangencialmente, percebe-se parcas inspirações nas codificações portuguesa e espanhola, sem, no entanto, uma devida contextualização, e, principalmente, de uma justificação que explicite a conveniência da recepção de alguns institutos pela normatização nacional.

A esse respeito, notadamente por se tratar da reforma de um texto legal da importância do Código Civil (“a Constituição do cidadão”, na célebre qualificação de Napoleão), parece-nos ser indispensável a perquirição dos variados modelos legislativos existentes nos ordenamentos alienígenas, não se tratando, evidentemente, de estéril estrangeirismo.

Ilustrativamente, cabe mencionar o recente trabalho publicado por um grupo de juristas alemães que, ao proporem uma fórmula substitutiva ao direito de legítima (Pflichtteilsrecht) previsto pelo BGB, dissertam prévia e criticamente sobre as regulamentações encontradas em diversos países, inclusive daqueles pertencentes à tradição common law [3].

Por outro lado, paradoxalmente, nota-se que o aventado artigo 1.846, §§ 1º e 2º, constitui inequívoca importação do artigo 2448 [4] do novo Código Civil e Comercial Argentino de 2014, não havendo, contudo, nenhuma indicação pertinente de tal fonte estrangeira.

Indignidade sucessória e deserdação
Pela proposição, o inciso I do artigo 1.814 passaria a excluir do processo hereditário os herdeiros ou legatários que houverem, entre outros: “sido autores, coautores ou partícipes de crime doloso, ato infracional, ou tentativa destes, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente”.

Para nós, o pretenso preceito contém significativos equívocos, a começar pela utilização das locuções “crime” e “ato infracional”, o que pode ensejar a interpretação de que a incidência da sanção civil restará condicionada à prévia condenação penal (ou à respectiva medida socioeducativa aplicada pelo Juizado da Infância e do Adolescente), como, aliás, assim prevalece hodiernamente na exegese do artigo 1.814, inciso II, in fine, do CC (incorrerem em crime contra a honra) [5], pressuposto dispensável na hipótese de homicídio (inciso I), que, obviamente, reprime ilícito de muito maior gravidade, e, nesse diapasão, não se deve olvidar que há diversas circunstâncias que podem frustrar uma sentença condenatória (ex. transação penal; celebração de acordo de não persecução entre o investigado e o Ministério Público; prescrição da pretensão punitiva, inclusive durante o transcurso da actio criminalis; previsão de escusa absolutória — ex. artigo 181 do CP), o que permitirá a participação do sucessor agressor na transmissão causa mortis sem que a família do de cuius nada possa fazer. Na verdade, considerando que o parecer pretende incluir um inciso IV no artigo 92 do CP, é claro o objetivo de transformar a indignidade nestas situações em um efeito civil da condenação criminal.

Mas não é só. O dispositivo não se satisfaz em considerar todos os tipos penais dolosos como aptos a fundamentar a exclusão hereditária, o que, frisa-se, não existe correspondência em nenhuma codificação estrangeira, como adota no seu caput a expressão “entre outros”, dando a entender que o rol de comportamentos tipificados pelo artigo 1.814 passaria a ser exemplificativo, representando outro questionável ineditismo da proposição.

Tal severidade, no nosso entender, é desarrazoada, máxime se considerarmos que a vítima pode ser o próprio autor da herança ou seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Assim, verbi gratia, um filho que for condenado pela prática do crime previsto pelo artigo 208 do CP (escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença religiosa) perpetrado em desfavor do seu genitor não será excluído somente da sucessão deste, mas também de todos os demais parentes consanguíneos.

O § 2º do artigo 1.816, por sua vez, dispõe que “o indigno também perde a condição de beneficiário de seguro de vida ou dependente em benefício previdenciário da vítima do ato de indignidade”, disciplinando, pois, consequências alheias à matéria sucessória e que acentuam ainda mais a tenaz reprimenda.

Por exemplo: alguém condenado pelo crime tipificado pelo artigo 163, caput, do CP (Dano), praticado em face do seu irmão, será afastado do processo sucessório de tal colateral e dos seus ascendentes, além de ser impedido de receber qualquer indenização securitária e eventual provento estatal [6].

Propõe-se ainda a alteração do parágrafo único do artigo 1.818, que passaria a ter a seguinte redação: “o indigno, não reabilitado expressamente, poderá ser contemplado no limite de disposição testamentária confeccionada pelo ofendido após a sentença que decretou a indignidade”.

Este preceito, inexistente em nossa lei de 1916, fora introduzido na lex de 2002 por inspiração no artigo 466 do Codice Civile italiano e que já havia sido recepcionado pelo Código lusitano (artigo 2038º, nº. 2). Trata-se da admissão do perdão tácito com efeitos parciais.

Pois bem. De início, não se compreende o acréscimo do requisito de que a cláusula contendo essa modalidade de remissão só possa ser firmada “após a sentença que decretou a indignidade”, o que não é exigível no perdão expresso e integral (artigo 1.818, caput).

Ademais, nas hipóteses dos incisos III e IV do artigo 1.814, que não envolvem pretérita condenação penal ou civil, como ocorre nos incisos I e II, a indignidade dependerá da procedência da ação específica estatuída pelo artigo 1.815, e, naturalmente, quando da prolação desta sentença, o auctor successionis já estará morto, não havendo como elaborar um testamento com tal desiderato.

Por derradeiro, atentando-se à previsão do inciso IV do artigo 1.814, que exclui por indignidade os “que houverem deixado de prestar assistência material ou incorrido em abandono afetivo voluntário e injustificado contra o autor da herança”, nos parece de pouca utilidade as causas de deserdação constantes dos incisos III dos artigos 1.962 e 1.963 (“desamparo material e abandono afetivo voluntário e injustificado”).

Herdeiros necessários
A proposta, em bom tempo, não elenca o cônjuge/companheiro como herdeiros necessários, o que, aliás, evidencia como o artigo 1.845 do Código Civil se desatualizou rapidamente, ou, quiçá, já nasceu ultrapassado, cuja impropriedade, entretanto, não restou detectada pela doutrina à época, que, de forma unânime, o saudou efusivamente.

De qualquer sorte, impõe-se questionar a manutenção dos ascendentes (sequer apenas dos pais, giza-se) como titulares da legítima, o que já fora abolido em vários ordenamentos, como, ilustrativamente, no direito holandês, francês, austríaco e suíço.

Por oportuno, considerando o aumento da expectativa de vida e a queda da natalidade, é sabido que as sucessões envolvendo apenas ascendentes e consorte/convivente serão cada vez mais corriqueiras, sendo que essa regulamentação prejudica, evidentemente, o viúvo(a).

Sucessão do cônjuge/convivente
O artigo 1.850, § 1º, prevê que “o juiz poderá, sem prejuízo do direito real de habitação (artigo 1.831) instituir usufruto sobre determinados bens da herança para garantir a subsistência do cônjuge ou companheiro sobrevivente com insuficiência de recursos ou de patrimônio”.

A nosso ver, a instituição deste usufruto legal, além de excessiva e em detrimento dos demais herdeiros, sobretudo dos descendentes, eis que independe do direito real de habitação e do patrimônio que o cônjuge/companheiro terá recolhido a título mortis causa ou em decorrência do regime de bens, propicia uma deletéria insegurança jurídica no planejamento sucessório.

Sucessão contratual
A abertura do sistema hereditário brasileiro aos contratos sucessórios constitui, de fato, uma providência imperativa, mas, data maxima venia, não nos termos especulados.

caput do artigo 1.790-A preceitua que “há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva ou dispõe sobre a sua própria sucessão”.

Sem entrar no mérito acerca da natureza sucessória dos pactos renunciativos, o que é rejeitado pela literatura portuguesa [7], salta aos olhos que nenhum dos parágrafos do dispositivo disciplina verdadeiramente a matéria, a saber:

a) o contrato mencionado no § 2º, celebrado entre os usuários e as plataformas de internet, não corresponde a nenhuma modalidade de convenção sucessória (institutiva, renunciativa ou dispositiva);

b) o § 3º cuida da tutela post mortem de direitos da personalidade;

c) o § 4º e seguintes, ao contrário do que parecem, não estabelecem quaisquer pacta de succedendo, consistindo em mero complemento do artigo 1.028, inciso I, tratando-se, portanto, de regra societária, que deveria constar no Livro do Direito de Empresa.

Como se fosse pouco, a avença abdicativa está disciplinada conjuntamente com a renúncia da herança (artigo 1.808), o que não é adequado, tendo em vista tratar-se de figuras distintas. E mais. Não há razão para restringir a sua entabulação apenas entre cônjuges/companheiros, devendo abarcar todos os sucessores, principalmente os herdeiros necessários, como acontece na Alemanha, Suíça, Áustria, Catalunha, dentre outros.

Por fim, tem-se o § 6º exibe mais uma impertinência quando diz ser anulável o contrato quando o renunciante, na data da abertura da sucessão, não possuir bens ou renda suficiente para a própria subsistência, o que fragiliza consideravelmente a segurança do ajuste.

Doação
O § 1º do artigo 1.790-A considera “válida a doação, com eficácia submetida ao termo morte”. Como na fundamentação nada é dito a respeito, não se sabe qual o intento da proposição, pois na doação mortis causa o evento morte é uma condição, tanto que o § 2301 do BGB assenta que a “promessa de doação mortis causa” (Schenkungsversprechen von Todes wegen) consiste na liberalidade firmada sob a condição (Bedingung) de sobrevivência do donatário ao doador (Überlebensschenkung). Por outro lado, em se tratando da donatio sujeita ao termo da morte do doador (cum moriar), a matéria possui natureza contratual, destituída de essência hereditária.

Testamentos pupilar e quase-pupilar
O artigo 1.857, §§ 1º e 2º, almeja a introdução da “substituição pupilar” e da “substituição quase pupilar”. Contudo, é sabido que durante a vigência do Código Civil de 1916, que não considerou o instituto, bem como ao longo das duas décadas em que a atual lei se encontra vigor, em momento algum, a sua utilidade fora proclamada pela doutrina, muito pelo contrário. Trata-se, além do mais, de fórmula desprezada pela maioria das legislações estrangeiras.

Testamento conjuntivo
O artigo 1.863 intenta contemplar o testamento conjuntivo, atualmente vedado pela codificação de 2002, na esteira do que igualmente estatuía a lei de 1916. Ocorre que o Parecer simplesmente não o disciplina. O Código Civil alemão, a propósito, regulamenta-o ao longo de substanciais 8 parágrafos (§§ 2265 a 2272).


[1] Martins-Costa, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: Critérios para a sua Aplicação. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 12.

[2] Nesse sentido, cumpre informar que, por meio da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), também pudemos propor à Subcomissão as alterações que nos pareciam mais adequadas.

[3] Zimmermann, Reinhard; Bauer, Franz; Bialluch, Martin; Humm, Andreas; Klapdor, Lisa-Kristin; Köhler, Ben; Schmidt, Jan Peter; Scholz, Philipp; Wiedemann, Denise. Zwingender Angehörigenschutz im Erbrecht. Tubinga: Mohr Siebeck, 2022, p. 6-18.

[4] Art. 2448. Mejora a favor de heredero con discapacidad. El causante puede disponer, por el medio que estime conveniente, incluso mediante un fideicomiso, además de la porción disponible, de un tercio de las porciones legítimas para aplicarlas como mejora estricta a descendientes o ascendientes con discapacidad. A estos efectos, se considera persona con discapacidad, a toda persona que padece una alteración funcional permanente o prolongada, física o mental, que en relación a su edad y medio social implica desventajas considerables para su integración familiar, social, eduacacional o laboral.

[5] Simão, José Fernando. Do Direito das Sucessões in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 1494; Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v.6. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 68; Cahali, Francisco José. Do Direito das Sucessões in Comentários ao Código Civil: Direito Privado Contemporâneo. 3.ed. Coord. Giovanni Ettore Nanni. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 1824; Zanini, Leonardo Estevam de Assis. Direito Civil: Direito das Sucessões. 2.ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 70; Tepedino, Gustavo; Nevares, Ana Luiza Maia; Meireles, Rose Melo Vencelau. Fundamentos do Direito Civil: Direito das Sucessões. v.7. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 45. Na vigência do revogado Código de 1916: Barbosa Filho, Marcelo Fortes. A Indignidade no Direito Sucessório Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 38-40.

[6] A propósito, esqueceu-se o Parecer que o art. 74, § 1º, da Lei nº. 8.213/1991, já prevê a perda do direito à pensão por morte daquele condenado criminalmente pelo homicídio doloso do segurado.

[7] Ilustrativamente, cf. Telles, Inocêncio Galvão. Direito das Sucessões: Noções Fundamentais. 6.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 121/128.

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