Associação de Direito de Família e das Sucessões

NOVO ARTIGO 1.815-A DO CÓDIGO CIVIL

Este texto é de autoria de Dr. Carlos Eduardo Minozzo Poletto, publicado originalmente no ConJur.

Por Dr. Carlos Eduardo Minozzo Poletto, publicado originalmente no ConJur.

Transcorridos mais de 21 anos da edição do Código Civil de 2002, salta aos olhos que o seu Livro V, pertinente ao direito das sucessões, sofrera apenas duas diminutas alterações, em franco contraste com o que ocorrera em seu Livro IV, referente ao direito de família, que fora objeto de 11 diplomas [1] que modificaram substancialmente 16 artigos, bem como revogaram — total ou parcialmente — outros 21 dispositivos e acresceram dois inéditos preceitos legais.

Além da desnecessária mudança implementada pelo Código de Processo Civil de 2015 na redação do caput do artigo 2.027 [2], a Lei nº 13.532/2017 introduziu um §2º no artigo 1.815 reconhecendo a legitimidade processual do Ministério Público para demandar a exclusão dos herdeiros ou legatários que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente [3].

Com o advento do artigo 1.815-A pela recente Lei nº. 14.661/2023, o direito sucessório pátrio está a conhecer uma terceira comutação que também envolve o instituto da indignidade sucessória, notadamente quanto ao procedimento necessário para a remoção judicial do sucessor.

Modelos de regulamentação
Historicamente, foram concebidos dois distintos modelos jurídicos de efetivação desta modalidade de proscrição causa mortis, a saber:

— Sistema francês: a reforma de 2001, inspirada pelo Código Civil da Província de Québec (Code Civil du Québec) de 1991, impulsionou a fórmula dúplice já implicitamente adotada pela redação original do Code Napoléon, o que se convencionou nominar de indignidade de pleno direito (indignité de plein droit) e indignidade facultativa (indignité facultative[4]. A primeira, prevista pelo artigo 726, ultima-se pela mera condenação penal do sucessor pelo homicídio (doloso ou preterdoloso; tentado ou consumado) do auctor successionis. A segunda, disciplinada pelo artigo 727, requer o ajuizamento de demanda perante o juízo sucessório mesmo após a condemnatio do herdeiro ou legatário no âmbito criminal pelos fatos elencados em sua alínea 1, nº 1º a 5º [5], o que justificaria a locução condicional (peuvent être déclarés indignes) utilizada pelo legislador;

— Sistema alemão: na esteira dos §§2340, 2341 e 2342 do BGB, a doutrina é unânime em afirmar que a indignidade (Erbunwürdigkeit) não decorre da lei, cumprindo àquele(s) que se aproveita(m) economicamente do afastamento hereditário a propositura de uma ação civil específica almejando tal desiderato, havendo ou não pretérita condenação penal [6].

Considerando apenas as codificações editadas, como a brasileira, ao longo deste século, pode-se aferir, verbi gratia, que os diplomas da Catalunha de 2008 (artigo 412-7 [7]) e da Argentina de 2014 (artigos 2283 e 2284 [8]) seguiram a sistemática germânica, enquanto o codex romeno de 2009 (artigos 958 e 959 [9]) perfilara a linha francófona, diferenciando, pois, a indignidade de direito (nedemnitatea de drept) e a indignidade judiciária (nedemnitatea judiciară).

Direito Civil brasileiro
O artigo 1.815 do vigente Código Civil, repisando o disposto no art. 1.596 da revogada norma de 1916, é taxativo ao dispor que a exclusão será declarada por sentença, cujo direito de demandar extingue-se em quatro anos, contados da abertura da sucessão [10], providência que não restaria dispensada mesmo diante de anterior condenação criminal [11].

Por oportuno, cumpre sublinhar que a expressão “declarada por sentença” não deve conduzir à conclusão de tratar-se de decisum meramente declaratório, consistindo, em verdade, em um autêntico pronunciamento constitutivo negativo, como bem vaticinava Pontes de Miranda [12] ainda nos tempos do Código Beviláqua, entendimento que acabou reforçado pela lex de 2002 ao fixar a natureza decadencial do prazo para o seu ajuizamento [13].

Como se pode constatar, a legislação nacional sempre se filiou à tradição alemã, inexistindo entre nós a figura da indignidade ipso iure [14].

Entretanto, essa sistemática ganhou novos contornos com a inserção do artigo 1.815-A, que assim dispõe: “em qualquer dos casos de indignidade previstos no artigo 1.814, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória acarretará a imediata exclusão do herdeiro ou legatário indigno, independentemente da sentença prevista no caput do artigo 1.815”.

Desta feita, parece-nos que a privação sucessória, a exemplo daquelas consequências elencadas pelo artigo 91, incisos I e II, do Código Penal, passa a ser um efeito secundário extrapenal genérico da condenação criminal, que, por sinal, sequer necessita ser expressamente pronunciada pelo juiz [15], novel conjuntura que a aproxima da indignidade de pleno direito da ordem franco-romena.

Apontamentos críticos
O cerne da justificação da proposta legislativa (PLS nº 168/2006) que redundou na Lei nº 14.661/2023 reside na eliminação da duplicidade de ações, criminal e civil, para que se obtenha a exclusão causa mortis, tendo à época se afirmado que “a sentença penal, transparente e justa, fortalecerá o direito sucessório, uma vez que traz segurança jurídica para os demais herdeiros e legatários, que não serão obrigados a litigar novamente em juízo”.

Tal premissa, contudo, não se mostra pertinente, pois sempre preponderou a posição que o afastamento do sucessor nas hipóteses de homicídio doloso (artigo 1.814, inciso I) e denunciação caluniosa (artigo 1.814, inciso II) independe de condenação penal [16], o que também se verifica, com mais razão, nos ilícitos descritos pelo inciso III do artigo 1.814 (violência ou fraude com o objetivo de inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade), que sequer precisam corresponder a um fato típico.

Assim, ainda que existam ações judiciais em diferentes esferas, não é imprescindível a obtenção de duas decisões, criminal e civil, para que seja infligida a sanção privada, bastando o reconhecimento no juízo hereditário, respeitando-se, evidentemente, a independência relativa das instâncias [17], eis que, como se sabe, a sentença penal absolutória fundamentada no artigo 386, incisos I (se provada a inexistência do fato), IV (se provado que o réu não concorreu para a infração) e VI (se existir circunstância que exclua o crime) do CPP, faz coisa julgada na seara cível.

A rigor, a voluntas legislatoris somente se conciliaria com a previsão constante no artigo 1.814, inciso II, in fine, que apena os que “incorrerem em crime” contra a honra do de cuius ou de seu cônjuge ou companheiro, já que nesta particular situação, de raríssima ocorrência prática, frisa-se, prevalece a opinião que a prévia condenação penal se reveste de pressuposto indispensável para a sua exclusão [18].

De qualquer sorte, poder-se-ia argumentar que a egressão hereditária decorrente de uma sentença criminal condenatória teria o mérito de abreviar o percurso para a incidência desta pena civil, bem como poupar os legitimados, quase sempre familiares do delinquente, do dispêndio econômico e do desgaste emocional de acioná-lo judicialmente.

Uma análise apurada, todavia, indica que esse cenário poderá ser exceptivo, sucedendo-se particularmente se já transitado em julgado o decisum quando da abertura da sucessão.

Caso contrário, algumas relevantes considerações deverão ser sopesadas com acuidade, pois que: a) em se tratando de sucessor inimputável penalmente, mas sujeito à sanção privada [19], a actio no juízo sucessório permanecerá imperativa; b) regra geral, a ação penal, máxime aquela submetida ao rito especial para a apuração dos crimes dolosos contra a vida (Tribunal do Júri), não tramita com maior celeridade que a demanda civil, muito pelo contrário, inexistindo, assim, a vislumbrada conveniência temporal.

Ademais, há diversas circunstâncias que podem frustrar uma condenação criminal, como, ilustrativamente: 1) a transação penal homologada, que, a teor do artigo 76, §6º, da Lei nº. 9.099/1995, “não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível”; 2) a celebração de acordo de não persecução penal entre o investigado e o Ministério Público; 3) a prescrição da pretensão punitiva, mormente durante o transcurso da actio criminalis; 4) a prolação de sentença absolutória fundada no artigo 386, incisos II (se não houver prova da existência do fato), III (se o juiz reconhecer a atipicidade do fato), V (se não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal), VI (se existir circunstância que isente o réu de pena) e VII (se não houver prova suficiente para a condenação) do CPP.

Em todas essas hipóteses, e atentando-se que ao prazo decadencial não se aplicam as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição (artigo 207 do CC), salvo em se tratando de menor absolutamente incapaz (artigo 208 c/c artigo 198, inciso I, do CC), será inevitável o ajuizamento da demanda civil se, obviamente, não ultrapassado o lapso de quatro anos.

Portanto, resta evidente que a inércia do(s) legitimado(s) em razão da singela existência de ação penal poderá se revelar catastrófica ao final.

Mas não é só. A Lei nº 14.661/2023 não enfrenta o aspecto mais deletério da regulamentação do instituto pelo codex de 2002: o parco e desatualizado rol de ilícitos que autorizam a exclusão hereditária, eis que se procedeu a reles repetição daqueles contemplados pela codificação de 1916. Não por acaso, tutela-se somente os valores mais caros à sociedade patriarcal do século 19, qual seja, a vida, a honra e a liberdade de disposição patrimonial, desprezando-se várias outras graves violações perpetradas no seio familiar.

Por isso, seria de grande valia que a ilustre comissão de juristas instituída pelo Senado em 24/8/2023 para elaborar um anteprojeto de atualização do Código Civil empreendesse uma significativa transformação no estuário normativo que rege não apenas a indignidade sucessória, como também a deserdação.

Em nosso sentir, além de abarcar as duas mudanças consumadas nos últimos anos (a legitimidade processual do Ministério Público e o afastamento automático decorrente de anterior sentença penal transitada em julgado), a proposta, dentre outros pontos, poderia almejar: a) excluir aquele que tenha praticado qualquer ato doloso que importe ofensa à vida do autor da herança ou de seus parentes (ex. lesão corporal seguida de morte), não mais se restringindo à figura do homicídio; b) afastar o sucessor que violar a dignidade sexual, a honra, a integridade física, a liberdade e o patrimônio do de cuius; c) sancionar o abandono ou desamparo, material ou moral, do auctor successionis [20].

Parafraseando Carlos Pamplona Corte-Real e Daniel Santos [21] ao criticarem recente alteração do Código Civil português, “de uma vez por todas não há reformas pontuais”.


[1] Lei nº 11.698/2008; Lei nº 12.010/2009; Lei nº 12.133/2009; Lei nº. 12.344/2010; Lei nº 12.398/2011; Lei nº 13.058/2014; Lei nº 13.105/2015; Lei nº 13.146/2015; Lei nº 13.509/2017; Lei nº 13.715/2018; Lei nº 13.811/2019.

[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 13.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 2331.

[3] No entendimento de José Fernando Simão, tal legitimatio ad causam seria tecnicamente inexplicável e afrontosa à lógica do sistema. SIMÃO, José Fernando. Do Direito das Sucessões in Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 1495. Ilustrativamente, nos diplomas francês (art. 727-1) e português (artigo 2036º, nº 1 e 2), a atuação do Ministério Público está condicionada à ausência de outros herdeiros.

[4] GRIMALDI, Michel. Droit des Successions. 8.ed. Paris: LexisNexis, 2020, p. 84.

[5] MALAURIE, Philippe; AYNÈS, Laurent. Droit des Successions et des Libéralités. 8.ed. Paris: LGDJ, 2018, p. 64.

[6] RÖTHEL, Anne. Erbrecht. 18.ed. Munique: C.H. Beck, 2020, p. 240; BROX, Hans; WALKER, Wolf-Dietrich. Erbrecht. 24.ed. Munique: Vahlen, 2010, p. 160-161.

[7] LIZARRAGA, Javier Larrondo. El Nuevo Derecho Sucesorio Catalán. Barcelona: Bosch, 2008, p. 39.

[8] BELLUSCIO, Augusto César; MAFFÍA, Jorge Omar. Derecho Sucesorio. Buenos Aires: Astrea, 2020, p. 72-74.

[9] BORCAN, Daniela; CIURUC, Manuela. Nouveau Code Civil Roumain: Traduction Commentée. Paris: Dalloz/Juriscope, 2013, p. 286-287.

[10] POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Indignidade Sucessória e Deserdação. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 333; BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. A Indignidade no Direito Sucessório Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 49.

[11] CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 111.

[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Direito das Sucessões. Sucessões em Geral. t.LV. Atv. Giselda Hironaka e Paulo Lôbo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 175.

[13] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis in Doutrinas Essenciais: Responsabilidade Civil. Coord. Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. v.I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 779-814.

[14] MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Direito das Sucessões. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 149; DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v.6. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 69; VELOSO, Zeno. Do Direito das Sucessões in Código Civil Comentado. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2044.

[15] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 555-556.

[16] POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Indignidade Sucessória e Deserdação…ob. cit., p. 267 e 273.

[17] MAIA JÚNIOR, Mairan Gonçalves. Sucessão Legítima: As Regras da Sucessão Legítima, as Estruturas Familiares Contemporâneas e a Vontade. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 185.

[18] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 2.023.098-DF, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 7.3.2023.

[19] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.938.984-PR, relatora ministra Nancy Andrighi, j. 15.2.2022.

[20] Sobre o tema: POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Apresentação e Comentários ao Projeto de Lei do Senado Federal (PLS 118/2010) que altera as disposições do Código Civil atinentes à Indignidade Sucessória e à Deserdação in Revista dos Tribunais. v.903. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 727-754.

[21] CORTE-REAL, Carlos Pamplona; SANTOS, Daniel. Os Pactos Sucessórios Renunciativos feitos na Convenção Antenupcial pelos Nubentes: Análise Crítica à Lei nº 48/2018, de 14 de agosto in Revista de Direito Civil. Ano III. Nº. 3. Coord. António Menezes Cordeiro. Coimbra: Almedina, 2018, p. 568.

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