Associação de Direito de Família e das Sucessões

ADFAS – REFORMA DO CÓDIGO CIVIL – PROPOSTAS LEGISLATIVAS – PARTE 2

A Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), em atendimento ao convite realizado pelo Senado, firmado pelo Ministro Luís Felipe Salomão, Presidente da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil (CJCODCIVIL), encaminhou, em 10 de novembro de 2023, suas propostas para a reforma das normas sobre Direito de Família[1] e das Sucessões[2] do Código Civil de 2002[3].

Já divulgamos a 1ª parte e agora passamos à 2ª parte do resumo das justificativas das propostas da ADFAS.

 

PARTE 2

 

ALIMENTOS E OUTROS INSTITUTOS ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS

 

Alimentos transitórios

Propõe-se a inserção legislativa dos alimentos transitórios, já aplicados pela Jurisprudência do STJ[4], em novo parágrafo ao art. 1.694. São alimentos concedidos a termo, resultantes do dever de assistência no casamento e na união estável, em tempo estimado como necessário para que o credor da pensão alimentícia obtenha recursos próprios para a sua subsistência. Diferem dos alimentos assistenciais tradicionais, que perduram por prazo indeterminado, enquanto se mantiverem as circunstâncias de sua fixação.

 

Alimentos pela administração dos bens comuns

Pela Lei de Alimentos, esta espécie seria aplicável somente ao regime da comunhão universal. Sugerimos o acréscimo do art. 1.694-B ao CC, contemplando também o regime da comunhão parcial, desde que seja indene de dúvida a comunhão do bem que produz renda.

 

Prestação compensatória

Este instituto tem inspiração no Direito francês e já é aplicado pelo STJ[5]. Tem caráter indenitário, não se tratando propriamente de alimentos, nem de reparação por ilícito civil, tendo natureza securitária e base na vedação ao enriquecimento sem causa (CC, art. 884)[6]. Por terem naturezas diversas, a prestação compensatória pode ser cumulada à pensão alimentícia.

As correta expressão é aquela utilizada pela ADFAS: prestação compensatória, inobstante outras sejam utilizadas com o mesmo objetivo, como alimentos compensatórios.

E preferimos a expressão oriunda do Direito Francês porque a necessidade ou não do credor em nada afeta a prestação compensatória, não se confundindo a prestação compensatória com alimentos ou pensão alimentícia.

A prestação compensatória busca o reequilíbrio das condições causadas pelo rompimento da relação, observando: I) a duração da vida em comum; II) a idade e estado de saúde dos cônjuges ou companheiros; III) a qualificação e situação profissional de ambos; IV) o tempo dedicado e a dedicar à educação dos filhos; V) o tempo dedicado ao favorecimento da carreira profissional do outro cônjuge em detrimento da própria; VI) o patrimônio estimado após a extinção do regime de bens; VII) os direitos existentes e previsíveis; e VIII) a situação em matéria de previdência.

A forma de seu cumprimento pode dar-se pela entrega de um bem ou de um capital, de uma única vez ou em parcelas, ou, até mesmo, por meio da constituição de usufruto sobre bens pertencentes ao cônjuge devedor.

 

A PROTEÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS POR MEIO DA DIVERSIDADE DE ESPÉCIES DE DISSOLUÇÃO CONJUGAL

 

A insuficiência da separação de fato e a proposta de regulamentação da separação de corpos

Considerando a Emenda Constitucional 66/2010, parte-se do divórcio “ruptura” na sugestão referente ao art. 1.572, mas se observou a necessidade de observância também de outra espécie dissolutória, para assegurar em especial os direitos fundamentais da liberdade, assim como da liberdade de exercício de direitos em razão da crença.

A separação de fato não modifica o estado civil, não extingue por si só o regime de bens e os deveres conjugais, criando um verdadeiro limbo e insegurança jurídica. Portanto, é necessário regulamentar a separação de corpos.

A princípio, as propostas da ADFAS valiam-se do instituto da separação judicial e extrajudicial. Todavia, ao que tudo indica, serão seguidas as Teses de Repercussão Geral do STF na Reforma do Código, sendo que recentemente foi declarada a inconstitucionalidade da separação judicial como figura autônoma em nosso ordenamento jurídico após a EC 66/2010, conforme julgamento do paradigma do Tema 1053[7].

Por esse motivo, a ADFAS realizou nova proposta legislativa para que os direitos fundamentais daqueles que não desejam ou não possam se divorciar sejam protegidos por meio da separação de corpos, com a devida regulamentação, sem que permaneça a nebulosa atualmente existente sobre a separação de fato de um casal.

Na nova proposta, a separação de corpos tem o efeito de extinguir os deveres conjugais e a comunhão de bens, em duas modalidades, a judicial e a extrajudicial, esta última por escritura pública quando houver consenso entre as partes.

Possibilita-se, na nova proposta, a cumulação de pedido de condenação nas sanções pela violação aos deveres do casamento com o pedido de separação de corpos, bem como a possibilidade de reconciliação, com o restabelecimento da sociedade conjugal por ato regular em juízo ou escritura pública.

Assim, a proposta da ADFAS está em consonância com as normas e princípios constitucionais mencionados a seguir.

 

Direito de crença e de exercício de direitos em razão de crença

Exatamente por ser um Estado laico, é inviolável em nosso país o direito de crença e de exercício de direitos em razão de crença (CF, art. 5º, VI e VIII).

Na religião católica e em várias correntes evangélicas, cujo contingente populacional é expressivo[8], o vínculo conjugal é indissolúvel, de modo que o divórcio não é permitido a quem professa essas religiões[9]. Sem a separação judicial e extrajudicial, impedidos de se divorciarem por sua crença, essas pessoas teriam duas opções: viver sob o estado civil de casados e na situação irregular perante o Estado de meros separados de fato ou divorciar-se em desrespeito aos seus preceitos religiosos.

 

Direito à liberdade

Necessário preservar, também, o direito à liberdade (CF, art. 5º, caput) na possibilidade de escolha da espécie dissolutória do casamento e de manutenção do vínculo conjugal para eventual reconciliação. Há casais, independentemente do credo, que se valiam da separação judicial e extrajudicial para a regularização de seu estado civil diante de crise conjugal, podendo restabelecer a sociedade conjugal a qualquer tempo e de maneira facilitada, por petição conjunta endereçada ao processo em que tramitou a ação de separação judicial ou por escritura pública.

O restabelecimento da sociedade conjugal deve poder ser realizado por meio da separação de corpos, com a manutenção de todos os efeitos do casamento, inclusive no que se refere ao regime de bens. O divórcio, por extinguir o vínculo conjugal, não permite o restabelecimento do casamento, de modo que um novo casamento não recuperará os efeitos do casamento anterior.

 

Manutenção das sanções pelo descumprimento de dever conjugal como medida de proteção da dignidade da pessoa humana

As sanções pelo descumprimento de dever conjugal[10] (CC, art. 1.566), atualmente contidas nos artigos regulamentadores da extinta separação judicial, devem ser mantidas em nosso ordenamento como medida de proteção à dignidade da pessoa humana e do dever do Estado de proteção aos membros da família e de combate à violência doméstica (CF, art. 1º, III e art. 226, caput e § 8º).

O descumprimento dessas normas de conduta viola os direitos da personalidade do cônjuge, como a vida, a integridade física e psíquica e a honra.

Enfatize-se que não se fala nas propostas da ADFAS em descumprimento dos deveres conjugais como condição da dissolução conjugal, porém o cônjuge vitimado deve poder escolher a espécie dissolutória e não, simplesmente, calar-se e pagar pensão alimentícia plena ou permitir que o consorte que o agrediu física ou moralmente possa continuar a utilizar o sobrenome de sua família de origem.

Afinal, as sanções, previstas expressamente nos dispositivos do Código Civil, são as seguintes: a) a perda do direito à pensão alimentícia plena, com conservação somente dos alimentos indispensáveis ou mínimos (CC, art. 1.704, caput e parágrafo único); e b) a perda do direito ao uso do sobrenome conjugal, salvo as exceções previstas em lei (CC, art. 1.578, I, II e III).

Evidente que seria incentivo à violência se o homem agredisse a mulher e ainda fizesse jus a receber dela pensão alimentícia plena. Também inaceitável seria obrigar a pessoa do cônjuge traído a pagar alimentos plenos ao cônjuge infiel. Isso equivaleria a endossar a violação à integridade física e moral de uma pessoa por ser casada, em desacato ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Não prospera o argumento de que o cônjuge poderia ficar sujeito a passar fome ou necessidade extrema, diante dos alimentos indispensáveis que são assegurados no Código Civil (CC, art. 1.704, parágrafo único).

A sugestão da ADFAS é de que se mantenham as sanções, podendo ser pedidas cumulativamente ao divórcio e à separação de corpos.

Também foram propostos efeitos protetivos, na dissolução conjugal, ao cônjuge portador de deficiência mental ou intelectual (CC, art. 1.572, § 2º).

 

Direito estrangeiro

Em diversos países – cite-se: França, Itália, Portugal, Espanha, Chile e Uruguai –, a separação se mantém como espécie de dissolução conjugal, ao lado do divórcio, e são mantidas as sanções pelo descumprimento de dever conjugal. Nesses países, a culpa não é pré-requisito para a dissolução conjugal, mas pode ser apurada a pedido da parte interessada.

No Direito português, por exemplo, permanece o instituto da separação ao lado do divórcio, denominado “separação de pessoas e bens” (CC, art. 1.794[11]), e mantém as sanções pelo descumprimento dos deveres conjugais (art. 1.675, 1.781, 1.792 e art. 2.016).

À pergunta sobre pedidos contrapostos pela via reconvencional de separação e divórcio, o Direito Português dá a resposta, cabendo a decretação do divórcio, conforme proposta realizada (art. 1.572, § 3º), já que o cônjuge religioso não estará, nessas circunstâncias, praticando violação aos preceitos de sua religião, porque não pediu a dissolução do vínculo conjugal[12], o que é proposto pela ADFAS. Ademais, será mantida nas propostas a possibilidade de conversão da separação em divórcio como norma transitória (artigos 1.571, §2º e 1.580).

Não permitir o pedido unilateral de separação de corpos equivaleria a manter o cônjuge religioso amarrado a um casamento indesejado, por não poder se divorciar por razões de crença, sujeito a todas as pressões do outro para realizar um acordo.

 

Veja a continuação: Parte 3 e Parte 4

 

[1] As sugestões legislativas da ADFAS, no Livro IV, Família, foram elaboradas por sua Presidente, Regina Beatriz Tavares da Silva, assistida pela acadêmica Emily Costa Diniz, com colaborações de Eduardo de Oliveira Leite e Kátia Boulos na matéria da alienação parental, de Laura Brito nas relações de parentesco, e de Grace Costa e Paulo Nalin nas causas suspensivas do casamento.

[2] No Livro V, das Sucessões, as sugestões legislativas foram orientadas pela Presidente da ADFAS, Regina Beatriz Tavares da Silva, tendo sido elaboradas por Carlos Eduardo M. Poletto, com a assistência da acadêmica Emily Costa Diniz e com colaborações de Laura Brito, Grace Costa e Paulo Nalin.

[3] Sancionado em 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, substituindo a codificação anterior, de 1916.

[4] STJ, REsp n. 1.025.769/MG, Terceira Turma, REL. MIN. NANCY ANDRIGHI, j. 24/8/2010; STJ, REsp n. 1.454.263/CE, Quarta Turma, REL. MIN. LUIS FELIPE SALOMÃO, j. 16/4/2015; STJ, REsp n. 1.388.955/RS, Terceira Turma, REL. MIN. NANCY ANDRIGHI, j. 19/11/2013.

[5] STJ, de relatoria do MINISTRO ANTONIO CARLOS FERREIRA, REsp 1.290.313, j. 12/11/2013.

[6] TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Divórcio e separação: após a EC n. 66/2010. ed.2. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, pp. 84/90.

[7] Fixou-se a seguinte Tese de Repercussão Geral: “Após a promulgação da EC nº 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF).” (STF, RE 1167478/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, j. 08/11/2023).

[8] Segundo os dados do IBGE, do ano de 2010, quando foram colhidos os dados sobre religião de residentes no Brasil, já havia 123.280.172 católicos apostólicos romanos e 42.275.440 evangélicos. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/23/22107. As pesquisas recentes constatam que, atualmente, 50% da população brasileira é formada por católicos e 31% por evangélicos. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml.

[9] Cite-se o Código Canônico, cânone 1.141: “O matrimônio ratificado e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa, exceto a morte”. Porém, o Código Canônico reconhece que, em alguns casos, a convivência pode se tornar insuportável, dando causa à separação, conforme cânone 1.151. Dentre essas causas legítimas da separação está o adultério, como regula o cânone 1.152, § 1º. E, ainda, de acordo com o cânone 1.153, § 1º: “Se um dos cônjuges é causa de grave perigo para a alma ou para o corpo do outro cônjuge ou dos filhos ou, de outra forma, torna muito difícil a convivência, está oferecendo ao outro causa legítima de separação, por decreto do Ordinário local e, havendo perigo na demora, também por autoridade própria”.

[10] A Ministra Nancy Andrighi ensina sobre a “… impossibilidade de eliminação da culpa nas relações de família e consequentemente nas rupturas conjugais, sob o risco de os deveres oriundos do casamento serem transformados em meras recomendações, o que deixaria o cônjuge vitimado pela violência à sua integridade física ou moral, perpetrada pelo consorte, à deriva da tutela jurisdicional. Remanesceria impune o infrator que, além do mais, ante o preenchimento de certos requisitos, poderia ainda fazer jus ao recebimento de alimentos plenos, a serem prestados pela perplexa vítima do ato ilícito. Releva anotar, nesse sentido, que somente nas relações familiares deixaria de ser aplicada a noção de que o descumprimento de dever jurídico acarreta sanção ao inadimplente ou agente do ato lesivo.” (ANDRIGHI, Fátima Nancy. Prefácio. In Regina Beatriz Tavares da Silva. Divórcio e Separação. São Paulo: Saraiva, 2012).

[11] Disponível em <https://www.codigocivil.pt/?msclkid=e3a0d161b5ac11ec94c48042b4dfd3e4>. Acesso em 06.04.2022.

[12] Código civil português, art. 1795.º (Reconvenção) “1. A separação judicial de pessoas e bens pode ser pedida em reconvenção, mesmo que o autor tenha pedido o divórcio; tendo o autor pedido a separação de pessoas e bens, pode igualmente o réu pedir o divórcio em reconvenção. 2. Nos casos previstos no número anterior, a sentença deve decretar o divórcio se o pedido da acção e o da reconvenção procederem”.

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