Associação de Direito de Família e das Sucessões

ABORTO, AMANTES E POLIGAMIA SÃO ALVO DE DEBATE ACIRRADO NA COMISSÃO DA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL

A Presidente da ADFAS, Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, e o Diretor Nacional de Assuntos Legislativos da ADFAS, Dr. Caio Morau, são entrevistados pela Gazeta do Povo sobre temas relevantes da Reforma do Código Civil.

Em detalhamento de uma das entrevistas, observa-se o seguinte.

A alteração realizada após a votação dos membros das várias comissões na redação do Relatório quanto aos artigos 1.564-D e 1.564-E, deixando expresso que relação paralela a um casamento ou a uma união estável não constitui família, assim como que se houver enriquecimento sem causa, haverá restituição do que tiver sido indevidamente auferido pelo cônjuge ou convivente coloca a relação de adultério no lugar onde deve ficar: não é relação familiar.

Somente se houver o enriquecimento do cônjuge ou do convivente adúltero às custas de seu amante, o que, via de regra, não ocorre, ele será obrigado a restituir ao cúmplice do adultério o que indevidamente dele obteve.

Note-se que o enriquecimento sem causa é vedado como regra geral em qualquer tipo de relação entre as pessoas e em nada muda a natureza do adultério, que não é relação de família.

Em continuação, a matéria da Gazeta do Povo, na íntegra:

A semana de trabalho da Comissão de Juristas, convocada pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para apresentar o anteprojeto da Reforma do Código Civil, foi intensa e com embates acalorados especialmente sobre pautas morais. No dia 4 de abril, quinta-feira, foram discutidos trechos do texto que tratavam sobre direito à vida, direito a amantes, poligamia e até a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade no Código Civil, que é a possibilidade de uma criança ter mais de um vínculo materno ou paterno em sua certidão de nascimento. A Presidência do Senado Federal, responsável pela instituição da comissão, deve receber oficialmente o texto do anteprojeto nos próximos dias.

Um dos artigos do relatório final que, como apresentado pela Gazeta do Povo, poderia dar brechas ao aborto ao considerar o embrião como “potencialidade de vida” foi alterado. O parágrafo primeiro do artigo 1511-A, em sua primeira versão, apontava que “a potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina é expressão de dignidade humana e de paternidade e de maternidade responsáveis”.

“Do jeito que está esse artigo é demasiado problemático porque ele chama a vida uterina de potencialidade e dentro do útero não há potência de vida, há ato, há vida. Sugiro a completa supressão desse parágrafo primeiro ou, se a preocupação da relatoria-geral foi de proibir a comercialização de gametas, deve estabelecer a redação de que fica vedada a comercialização de espermatozoides, óvulos e embriões”, sugeriu Maurício Bunazar, Membro da Comissão.

Para jurista, mesmo com mudança, artigo não dá proteção efetiva ao nascituro

Depois de uma ampla discussão, os membros aprovaram a nova versão apresentada pela, também relatora, Rosa Maria Nery que diz que “a potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida pré-uterina e uterina são expressão da dignidade humana e de paternidade responsável”.

“Dessa forma, protegemos os gametas, que não podem ser vendidos, os embriões congelados, que não podem ser descartados e nós estamos dizendo isso no texto, e protegemos a vida uterina do nascituro. Colocamos isso sobre os ombros da responsabilidade paternal e maternal, porque afinal as pessoas precisam saber o que fazem com as suas coisas”, defendeu Rosa Nery. A nova versão foi aprovada sem unanimidade, já que alguns membros prefeririam que o parágrafo fosse retirado do texto.

“Essa nova redação está melhor do que a anterior, mas o dispositivo ainda continua vago. Dizer que são expressão da dignidade humana e de paternidade responsável não significa conferir uma efetiva proteção”, analisa Caio Morau, Diretor Nacional de Assuntos Legislativos da ADFAS, Doutor em Direito Civil pela USP e Professor de Direito da Universidade Católica de Brasília.

Caio Morau acredita que a retirada do parágrafo também seria indiferente, já que com ou sem o dispositivo não haveria efeitos práticos de proteção.

“Na prática, o cenário continua o mesmo”, reforça.

Artigo que trata da personalidade jurídica do nascituro é mantido

Outro ponto que, na visão de alguns juristas, também daria espaço ao avanço do aborto no Brasil, seria o acréscimo da expressão “para fins deste Código” no artigo 2º que trata da personalidade jurídica.

A proposta inicial dos juristas seria alterar o texto do dispositivo para: “a personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida e termina com a morte encefálica; a lei põe a salvo, desde a concepção, para os fins deste Código, os direitos do nascituro”. Depois da discussão, na sessão do dia 5 de abril, sexta-feira, a comissão decidiu manter o artigo 2º como está no Código Civil vigente: a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo afirmaram que a modificação do dispositivo, caso tivesse sido aprovada, daria mais fundamentação para um entendimento favorável ao aborto, também por meio do Supremo Tribunal Federal. A redação atual do artigo 2º, por exemplo, foi mencionada no voto da Ministra Rosa Weber no julgamento da ação que pretende descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. Para a Ministra, como o Código Civil define que a personalidade jurídica de uma pessoa só começa do nascimento com vida, o aborto seria legítimo. O acréscimo “para fins deste Código” poderia levar à interpretação de desproteção do não nascido no Código Penal, que descreve o aborto como crime não punido nos casos de estupro e de risco de vida da gestante.

Alterada durante a reunião, versão anterior do texto beneficiava amantes segundo próprios membros da comissão

Outro artigo que teve amplo debate e sofreu alterações foi o 1.564-D, que possibilitaria o reconhecimento de direitos a amantes, como a Gazeta do Povo também mostrou. Segundo a análise da doutora em Direito Civil pela USP e presidente da Associação de Direito de Família e de Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares da Silva, a versão aprovada durante a reunião está adequada.

“A alteração realizada na redação antes proposta sobre o artigo 1.564-D, deixando expresso que relação paralela a um casamento ou a uma união estável não constitui família, assim como que se houver enriquecimento sem causa haverá restituição do que tiver sido indevidamente auferido pelo cônjuge ou convivente coloca a relação de adultério no lugar onde deve ficar: não é relação familiar”, observa Regina Beatriz.

Durante a discussão, Maurício Bunazar ressaltou o perigo da primeira versão ao considerar o concubinato como uma união semelhante à união estável e ao casamento. “Há um problema fundamental aqui. Nós estamos reconhecendo que isso aqui não é união estável, não é casamento, mas é alguma coisa. O Código Civil diz que é concubinato, que é uma relação ilícita. O que estamos a fazer aqui é reconhecer que isso é um tertium genus ao lado do casamento e da união estável”, contrapôs. O tertium genus é uma expressão do direito usada para comentar sobre um “terceiro elemento”.

A possibilidade de dar direito a amantes também elevou os ânimos durante a discussão. “Essa questão se resolve na possessória, na ação de extinção de condômino, jamais no âmbito do direito de família. Se não, nós estamos legitimando, criando uma relação familiar com o concubinato. Dando mais direito à amante ou ao amante do que aquele que casou”, comentou Marco Aurélio Bezerra de Melo.

Marco Melo também lembrou que o próprio Supremo Tribunal Federal já julgou sobre o direito a amantes. Em 2021, a Corte definiu duas Teses de Repercussão Geral (529 e 526) que não reconhecem direitos às uniões paralelas durante o período de casamento ou união estável.

Na parte da tarde da sexta-feira, dia 5 de abril, Giselda Maria Hironaka, Claudia Lima Marques e Maria Cristina Santiago registraram pedidos de desculpas às mulheres que estão submetidas a relações paralelas pela falta de reconhecimento da Comissão de Juristas. Santiago chegou a pedir que a votação do artigo que tratava sobre o tema fosse aberta novamente, mas Luís Felipe Salomão, presidente da comissão, negou o pedido.

Poligamia e multiparentalidade também foram discutidas, mas não houve avanço

Apesar de terem sido rejeitados, alguns juristas defenderam a entrada de pontos polêmicos no texto do anteprojeto, como poligamia e multiparentalidade.

“Há uma questão posta pela Professora Berenice, que remonta em vários artigos e que tem conexão com os deveres do casamento. Ela entende que fidelidade e coabitação não devam ser deveres decorrentes do casamento, que se votada resolve seis ou sete pontos dentro do código”, informou a relatora Rosa Nery.

“Se cair o dever de fidelidade, nós temos que derrubar a presunção pater is est”, contrapôs José Fernando Simão. A presunção pater is est atribui ao marido a paternidade dos filhos do casal. A proposta de Berenice também vai contra a Tese 529 do STF, que consagrou “o dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”. A proposta da jurista Maria Berenice Dias recebeu o apoio de outros cinco membros, o que não foi suficiente para ser aprovada.

Maria Berenice Dias também sugeriu o reconhecimento da multiparentalidade na proposta da Reforma do Código Civil, ou seja, o reconhecimento de constar mais de um vínculo materno ou paterno na certidão de nascimento. “Ninguém pode tirar essa liberdade de fazer. Eu quero que o meu filho seja de um amigo e quero mais: quero [no registro] que ele seja o pai e nós duas as mães. Isso a Justiça vem reconhecendo há muito tempo. A primeira decisão que teve do tribunal reconhecendo a possibilidade desse registro fui eu que patrocinei lá no ano de 2015”, defendeu Maria Berenice.

Apesar de alguns tribunais já terem reconhecido a possibilidade de dupla paternidade ou maternidade, ainda não há legislação que a permita diretamente. “Eu encaminho apenas para ponderar que nós estamos adotando aqui multiparentalidade, essa é uma novidade que precisa ser considerada”, ressaltou a relatora Rosa Nery. A emenda de Maria Berenice Dias recebeu apoio de 10 membros, mas foi rejeitada pela comissão.

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