Associação de Direito de Família e das Sucessões

PROPOSTA DE ESTADO CIVIL DE COMPANHEIRO NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL TRAZ INSEGURANÇA JURÍDICA

Por Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, publicado originalmente no Estadão – Blog do Fausto Macedo.

Pode parecer que, pela equiparação entre o casamento e a união estável em efeitos jurídicos, seria lógica a atribuição de estado civil também nas relações de fato. Afinal, se da união estável, que é uma relação de fato, decorrem o dever/direito à pensão alimentícia, a comunhão parcial de bens, à herança, já que há o estado civil de casado, deveria haver também o estado civil de companheiro.

É o que está propondo a Subcomissão de Direito de Família na Reforma do Código Civil:

Art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”

§ 4º “Independentemente de registro, a união estável constitui o estado civil de companheiros, que deve ser declarado em todos os atos da vida civil.”

No entanto, basta avaliar a insegurança jurídica e a judicialização, além de facilitar fraudes contra terceiros, que causaria a inovação do estado civil de companheiro/a, para que se chegue à conclusão da inaceitabilidade dessa proposta da Subcomissão de Direito de Família na Reforma do Código Civil.

Antes de prosseguir é preciso que fique claro o que é o estado civil de uma pessoa. Não se trata de um conceito jurídico difícil de entender. A todo momento, preenchendo formulários, assinando escrituras ou prestando informações a órgãos públicos ou privados, nos deparamos com a pergunta sobre o nosso estado civil. E todos sabemos que o que nos está sendo perguntado, segundo o Código Civil vigente, é se somos solteiros, casados, separados judicial ou extrajudicialmente, divorciados ou viúvos.

De maneira simplificada, o estado civil é o atributo jurídico que recebe a pessoa com base em um critério formal: a celebração do casamento ou sua extinção em vida por um ato formal (separação judicial ou extrajudicial e divórcio judicial ou extrajudicial) ou pela morte.

Como ensina a doutrinadora Rosa Nery, “Estado é uma palavra cristalina”; o verbo latino stare significa o que se sabe e se vê como um cristal, ou seja, faz transparecer o “sentido de firmeza” daquilo que indiscutivelmente existe (Instituições de Direito Civil, 3ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, volume 1, 2022, p. 45).

Em outra obra de doutrina, Maria Helena Diniz explica que, na conformidade do vigente art. 9º do Código Civil, diante da grande importância do estado civil, sua inscrição deve ser feita em registro público (Curso de Direito Civil Brasileiro, 37ª ed. São Paulo; Saraiva Educação, volume 1, 2020, p. 262).

Esse atributo importa porque relações de casamento, que são formais e registradas, impactam profundamente em outras relações jurídicas, por exemplo, a presunção da paternidade no casamento. Assim, se uma mãe se apresenta no Cartório de Registro Civil com a certidão de casamento, o nome do marido será registrado na certidão de nascimento do filho, sem a sua presença, porque a sua paternidade se presume pelo ato formal do matrimônio.

Calcule-se a insegurança jurídica se a união estável, que é uma situação de fato que independe de qualquer formalidade, pudesse gerar estado civil.

Uma mulher poderia apresentar-se no Cartório de Registro Civil e simplesmente declarar que o homem por ela escolhido vive com ela em união estável e é o pai da criança, atribuindo-lhe deveres, inclusive de sustentar filho alheio, até que um dia ele pudesse provar a inexistência da paternidade, por meio de ação judicial própria?

Aliás, é de notar que a Subcomissão de Direito de Família propõe também expressamente que da união estável decorra a presunção da paternidade: Art. 1.597. “Presumem-se filhos dos cônjuges ou companheiros os concebidos na constância do casamento ou da união estável.”. Ou seja, uma relação meramente fática, com requisitos abertos e frouxos, que se confunde usualmente com mero namoro, presumindo a paternidade.

Por repercutir nas relações jurídicas e em seus efeitos, o estado civil de uma pessoa não pode derivar livremente de sua vontade ou de outros critérios fluidos, efêmeros e inseguros. Ao contrário, só pode derivar de fatos jurídicos constantes dos registros públicos, que são dotados de fé pública.

Nesse sentido, o estado civil de casado é o estado civil de quem possui um casamento registrado no RCPN (Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais); já o estado civil de solteiro é o estado de quem não se casou. O estado civil de divorciado, por sua vez, é o de quem tem averbada em seu registro de casamento a escritura pública ou sentença de divórcio.

É possível perceber, então, como a atribuição de estado civil à união estável é um contrassenso. É um contrassenso porque a união estável é uma união fática, “configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (art. 1.723).

Atente bem o leitor a esses requisitos de configuração de união estável. Veja que não há obrigatoriedade de ato formal de constituição e de registro de uma união estável, sendo que, além disso, na hipótese de registro, facultado na proposta da Subcomissão de Direito de Família, a dissolução da união estável não é obrigatoriamente registrada (art. 1.723, § 3º).

Reitere-se que não é necessário um registro público para que uma união estável exista ou deixe de existir. Sequer é necessária a manifestação de vontade escrita ou expressa do casal no sentido de constituir união estável.

Em face da frouxidão dos elementos que configuram a união estável, é não apenas possível, como até bastante comum, encontrar casais que vivem uma união estável sem ter conhecimento disso. Trata-se por “namoridos”, entre outras expressões que não refletem a realidade.

Como então assentar um estado civil sobre mera situação de fato, sobretudo quando tal situação é configurada a partir de elementos tão incertos, abertos, nada concretos e sujeitos a interpretação? Como fazê-lo de modo a preservar a segurança jurídica nas relações jurídicas, dada a repercussão do estado civil em seus efeitos?

Imaginemos a situação de preencher um formulário em que haja questionamento sobre o estado civil, ouvir como resposta: “É… meu estado civil?… acho que sou ‘solteiro’. Quer dizer, posso ser ‘companheiro’ também, mas na minha opinião, sou ‘solteiro’, sabe…”.

“Opinião”? “Acho”? Relações jurídicas dependendo de um “eu acho”? Isto é o mundo que a Subcomissão de Direito de Família quer instaurar: no lugar do Estado de Direito, o “Estado do Achismo”.

O estado civil é um atributo da pessoa que, de maneira sintética, informa a existência – ou não – de certas consequências jurídicas relevantes desse chamado atributo da personalidade. Não admite “achismos”.

Como ficou claro, enquanto todos os outros estados civis (solteiro, casado, separado, divorciado e viúvo) possuem prova em registro público, o estado civil de companheiro se fundamentaria na mera percepção do sujeito de estar vivendo em união estável. Portanto seria comum um indivíduo se declarar em documentos públicos ou privados como “solteiro”, mas ser, perante a lei, “companheiro”. E vice-versa.

Ocorre que inserir ou fazer inserir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, alterando a verdade sobre fato juridicamente relevante, é crime de falsidade ideológica, com pena de um a cinco anos de prisão (Código Penal, art. 299).

Apesar de o crime de falsidade ideológica exigir dolo, isto é, que o sujeito saiba que está fazendo uma declaração falsa, os indivíduos que de boa-fé se equivocassem acerca do seu estado civil poderiam responder por tal crime em um processo penal.

A única justificativa plausível para que se declarasse a existência ou não de união estável e não propriamente de estado civil, é a venda de um bem imóvel, que exige a outorga do/a companheiro/a. Mas a solução é simples neste caso, como sugerido pela subscritora do presente texto quando da sanção presidencial do Código Civil em vigor: os Tabelionatos de Notas serem obrigados a perguntar ao vendedor se vive ou não em união estável, o que já vem ocorrendo em Cartórios.

Se a resposta for positiva, surgiria a recusa à lavratura da escritura até que o seu companheiro comparecesse para assinar o documento dando a sua outorga. Se a resposta for negativa, mas existisse a união estável, haveria a prática do crime de falsidade ideológica, antes citada, algo a ser alertado também pelo Tabelionato de Notas. Dificilmente alguém mentiria.

Aliás, é esta a única justificativa apresentada pela Subcomissão de Direito de Família, o que poderia ser resolvido por uma simples norma no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que obrigasse os Notários ou Tabeliães de Notas a constar das escrituras de venda ou oneração de imóveis se o outorgante vendedor vive ou não em união estável.

Interessante é notar que a Subcomissão da Parte Geral da Reforma do Código Civil não inclui o estado civil de companheiro, havendo, por sugestão da Relatora da Comissão da Reforma, Dra. Rosa Nery, a inclusão de um parágrafo no art. 10 do Código Civil, para que seja possibilitada a averbação da união estável em registro público, sem que isto altere o estado civil dos companheiros. Portanto, a proposta da Subcomissão da Parte Geral é adequada e não está de acordo com a proposta da Subcomissão de Direito de Família.

Reitere-se que estado civil de companheiro/a, proposto pela Subcomissão de Direito de Família, sendo a união estável uma situação de fato gerará insegurança jurídica, além de forte judicialização, porque teria muitos outros efeitos jurídicos e que vão além da necessidade de outorga uxória na venda de um bem imóvel.

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