Associação de Direito de Família e das Sucessões

O RETORNO DO ESTATUTO DESTRUIDOR DAS FAMÍLIAS V

Depois de alertar sobre as propostas do projeto de lei Estatuto das Famílias de institucionalização da poligamia, de atribuição de direitos de pensão alimentícia e de indenização aos amantes e de atribuição aos padrastos e às madrastas dos mesmos direitos dos pais e das mães (aqui, aqui e aqui, respectivamente), demonstrarei neste artigo e nos próximos que esse PLS 470/2013 contém outras proposições absurdas.
O projeto de lei Estatuto das Famílias pretende atribuir a quem viva em união estável o estado civil de “companheiro”. Confira:
Art. 61. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Parágrafo único. Independentemente de registro, a união estável constitui o estado civil de companheiro, o qual deve ser declarado em todos os atos da vida civil.
À primeira vista, essa proposta não parece ser muito grave, sobretudo se comparada a outras desse chamado Estatuto das Famílias, como a já mencionada institucionalização da poligamia e da multiparentalidade. No entanto, uma análise mais cuidadosa mostra que atribuir estado civil à união estável é , assim como as outras, proposta inaceitável.
Antes de prosseguir é preciso que fique claro o que é o estado civil de uma pessoa. Não se trata de um conceito jurídico difícil de entender. A todo momento, preenchendo formulários, assinando contratos ou prestando informações a órgãos públicos ou privados, nós nos deparamos com a pergunta de nosso estado civil. E todos sabemos que o que nos está sendo perguntado é se somos solteiros, casados, separados, divorciados ou viúvos.
Estado civil é isso mesmo. De maneira simplificada, trata-se de atributo jurídico que recebe a pessoa com base em um critério formal: a celebração do casamento ou sua extinção em vida por um ato formal (separação judicial ou extrajudicial e divórcio judicial ou extrajudicial) ou pela morte, ou seja, sempre por fatos que não geram qualquer dúvida quanto à sua existência.
Esse atributo importa porque relações conjugais impactam profundamente em outras relações jurídicas, como ocorre na presunção da paternidade, em que os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal ou nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial e divórcio, presumem-se concebidos na constância do casamento.
Assim, se uma mãe se apresenta no Cartório de Registro Civil com a certidão de casamento, o nome do pai será registrado na certidão de nascimento do filho, que presumidamente advém da relação de casamento.
Calcule-se a insegurança jurídica se uma situação de fato, que independe de qualquer formalidade, pudesse gerar estado civil. Uma mulher poderia apresentar-se no Cartório de Registro Civil e simplesmente declarar que o homem por ela escolhido é o pai da criança, atribuindo-lhe deveres, inclusive de sustentar filho alheio, até que um dia pudesse provar a inexistência da paternidade, por meio de ação própria, exame de DNA etc.
Por repercutir nas suas relações com terceiros, o estado civil de um sujeito não pode derivar livremente de sua vontade ou de outros critérios fluídos, efêmeros e inseguros. Ao contrário, só pode derivar de fatos jurídicos sólidos e precisos, constituídos por registros dotados de fé pública.
Nesse sentido, o estado civil de casado é o estado civil de quem possui um casamento registrado no cartório oficial de registro de pessoas naturais; já o estado civil de solteiro é o estado de quem não o possui. O estado civil de divorciado, por sua vez, é o de quem possui, registrada e averbada, escritura pública ou sentença de divórcio. E assim por diante.
É possível perceber, então, como a atribuição de estado civil à união estável é um contrassenso.
É um contrassenso porque a união estável é uma união fática, “configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Atente bem o leitor a esses requisitos de configuração de união estável. Veja que não há ato formal de constituição nem de dissolução de união estável; não é necessário um registro público para que certa união estável exista ou deixe de existir. Sequer é necessária a manifestação de vontade expressa do casal no sentido de constituir união estável.
Aliás, o parágrafo único da proposta legislativa acima citada, diz expressamente: “independentemente de registro, a união estável constitui o estado civil de companheiro, o qual deve ser declarado em todos os atos da vida civil”.
Com efeito, em virtude da vagueza dos elementos que configuram a união estável, é não apenas possível, como até bastante comum, encontrar casais que vivem uma união estável sem ter conhecimento disso.
No mais das vezes, a configuração de uma união estável só é constatada judicialmente e após sua dissolução, em ações de alimentos, guarda, inventário etc.
Como então assentar um estado civil sobre mera situação de fato, sobretudo quando tal situação é configurada a partir de elementos tão incertos, abertos, pouco concretos e sujeitos a interpretação que varia de pessoa para pessoa, inclusive entre o próprio casal? Como fazê-lo de modo a preservar a segurança jurídica nas relações jurídicas, dada a repercussão perante terceiros que, como já vimos, possui o estado civil de um sujeito?
O estado civil de companheiro evidentemente traria problemas. Exemplo típico é a chamada outorga uxória, a anuência que um cônjuge precisa obrigatoriamente dar ao outro em certos negócios que este realize, ainda que em seu próprio nome, sob pena de invalidade do negócio! É o caso da venda de bem imóvel ou da concessão de aval ou fiança. Se o companheiro puder declarar unilateralmente seu estado civil, fraudes de toda sorte poderiam ser praticadas, até mesmo para buscar a anulação de um negócio jurídico de venda de um bem imóvel sem a outorga do suposto companheiro, em conluio com o vendedor do imóvel e em prejuízo do seu adquirente.
Imagine, além disso, a situação de querer comprar ou vender um imóvel a uma pessoa, e, ao questioná-la qual seu estado civil, ouvir como resposta: “É…meu estado civil?….acho que sou ‘solteiro’. Quer dizer, posso ser ‘companheiro’ também, mas na minha opinião, sou ‘solteiro’, sabe…”.
“Opinião”? “Acho”? Relações jurídicas dependendo de um “eu acho”? Isto é o mundo que o Estatuto das Famílias pretende instaurar: em vez do Estado de Direito, o “Estado do Achismo”.
O estado civil é um atributo do sujeito que, de maneira sintética, informa a terceiros a existência – ou não – de certas consequências jurídicas relevantes desse chamado atributo da personalidade. Não admite achismos.
Como ficou claro, enquanto todos os outros estados civis (solteiro, casado, separado, divorciado e viúvo) possuem fundamentos sólidos no registro público que os institui, o estado civil de companheiro se fundamentaria na mera percepção do sujeito de estar vivendo em união estável. Portanto seria comum um indivíduo se declarar em documentos públicos ou privados como “solteiro”, mas ser na verdade, perante a lei, “companheiro”. E vice-versa.
Ocorre que inserir ou fazer inserir, em documento público ou particular, declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, alterando a verdade sobre fato juridicamente relevante, é crime de falsidade ideológica, com pena de um a cinco anos de prisão.
Apesar de a falsidade ideológica exigir dolo, isto é, exigir que o sujeito saiba estar fazendo uma declaração falsa, o que teoricamente excluiria da incidência no crime os indivíduos que de boa-fé se equivocassem acerca do seu estado civil, vê-se logo o estado de insegurança jurídica que geraria na nossa sociedade. E também dolo poderia existir da parte de uma pessoa mal intencionada que, mesmo segura de seu estado civil, declarasse outro para obter determinada vantagem.
E tal projeto de lei, pasmem os leitores, está em tramitação no Senado e em vias de ser debatido em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos.
No próximo artigo, continuarei a trazer outras atrocidades jurídicas propostas pelo projeto de lei Estatuto das Famílias.
Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.

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