O estereótipo e a realidade

Recentemente escrevi artigo em que demonstrei os graves riscos que corre o afeto se o Supremo Tribunal Federal equiparar os efeitos sucessórios da união estável aos do casamento no Recurso Extraordinário n. 878.694, cujo julgamento foi adiado.
Hoje analiso um outro aspecto do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, em que a sua posição foi exposta sempre tendo em vista a mulher como aquela que pode ser prejudicada se não houver a tal equiparação.
Em seu voto, o Ministro Barroso coloca a mulher como vítima e refere-se à suposta discriminação e proteção insuficiente, e, até mesmo, ao suposto desrespeito à dignidade humana que o regime sucessório da união estável estipulado pelo Código Civil estaria impondo à mulher e companheira.
Já analisei o referido voto em outros aspectos no artigo acima mencionado. Meu objetivo no presente artigo é observar que a colocação da mulher sempre como vítima, sem que se tenha em conta a paridade no tratamento dos dois gêneros não é recomendável à Suprema Corte e a ninguém que cultue os valores da igualdade.
Na prolação do voto do Ministro Barroso na Seção de Julgamento notou-se a constância do gênero feminino na escolha de suas menções e justificativas à tal equiparação (a partir de 53:00). A todo momento refere-se à suposta situação inferior da companheira, à proteção da convivente viúva, às diferenças entre o tratamento legal dado à companheira e à esposa, ao status da mulher nas relações de família no Brasil etc.
Essa postura denota um certo condicionamento que tem sido infelizmente comum no meio jurídico de hoje, que induz a pensar a união estável, o casamento, e as relações de família em geral, a partir de um estereótipo: o da mulher como parte sempre mais frágil, sempre vulnerável e, para utilizar um termo jurídico, sempre hipossuficiente na relação familiar.
A realidade em nossos dias é outra!
Se por razões de ordem social e cultural algum dia já tenha feito sentido pensar na mulher como a parte sempre fraca e vulnerável nas relações afetivas e familiares, e que, por isso, demandou especial proteção jurídica, nos dias de hoje esse pensamento não tem mais cabimento em muitas questões.
Segundo dados oficiais de 2014, com aproximadamente 22 milhões de trabalhadoras com carteira assinada, as mulheres representam em torno de 44% da força de trabalho no Brasil. Apesar dos salários serem ainda desiguais em relação aos dos homens e de restar muito a ser batalhado e alcançado nesse sentido, é notável o avanço da participação feminina no mercado de trabalho ocorrido ao longo dos últimos anos. Em 2004, por exemplo, apenas 12 milhões de mulheres estavam na força de trabalho. Um aumento de quase 100% ocorreu em apenas uma década.
As mulheres constituem a maioria da população brasileira com ensino superior: 1 em cada 5 possui curso superior completo. Entre os homens, este número é de apenas 1 em cada 9. A porcentagem de mulheres com ensino médio completo também é maior entre as mulheres do que entre de homens: 39% x 33%.
E o dado mais expressivo e relevante: 28 milhões de lares no Brasil são hoje chefiados por mulheres. E este é um número que cresce ano após ano. De 2004 a 2014, o número de famílias chefiadas por mulheres aumentou em 67%, de maneira que hoje 4 em cada 10 lares já são liderados por mulheres.
Como mostram os números, as mulheres brasileiras são a parcela com melhor formação educacional da população, e estão não apenas cada vez mais independentes e autônomas, como, também, em número cada vez maior, liderando suas famílias.
Nesse panorama, aquela visão arcaica da mulher como pessoa dependente, ingênua, deseducada, frágil e submissa, foge absolutamente da realidade.
Vê-se que chega a ser absurda, retomando o voto do Excelentíssimo Ministro Barroso, a justificativa da tal equiparação de efeitos sucessórios da união estável aos do casamento baseada numa suposta necessidade de proteger as mulheres.
A liberdade deve ser conservada às mulheres e aos homens na escolha da união estável ou do casamento, com vistas ao regime sucessório que melhor lhes convenha.
Mulheres não podem ser equiparadas a menores de idade, idosos e deficientes, que precisam ser especialmente resguardados e protegidos, e, como consequência, precisam ter sua autonomia restringida.
Mulheres, não!
Somos fortes, independentes e autônomas. E se, por um lado, devemos continuar a lutar pela igualdade e não devemos aceitar discriminações, por outro, temos de rejeitar com vigor todas as ideias, vindas de onde for, que, a pretexto de corrigirem desigualdades meramente teóricas, nos submetam a inferiorizações inexistentes no plano da realidade.
Toda proteção despregada da vida real leva à desigualdade, por inferiorizar o gênero que não é mais o antigamente chamado sexo frágil.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.

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