Associação de Direito de Família e das Sucessões

É possível descontar da pensão alimentícia outros gastos com os filhos?

Depois do pagamento regular, na forma, tempo e lugar combinados, uma das formas de extinção de uma dívida é a chamada compensação. A compensação ocorre automaticamente, por força de lei e da seguinte maneira: quando duas pessoas são ao mesmo tempo credora e devedora uma da outra, em razão de duas dívidas diferentes, estas se cancelam até o valor em que se compensam. Cancela-se um crédito com um débito, e um débito com um crédito.
É uma regra jurídica simples, quase intuitiva. Se João empresta mil reais a José, e este em seguida presta um serviço a João também no valor de mil reais, a menos que os dois decidam expressamente de outra forma, as duas dívidas se anulam totalmente, e o resultado final é que um nada mais deve ao outro. Mas se em vez de mil, o valor do serviço prestado por José é de apenas seiscentos reais, esta quantia compensa apenas parcialmente a dívida que José tem com João em função do empréstimo. O saldo final, então, é que José continua devedor de João, mas apenas dos quatrocentos reais restantes.
Em geral, desde que o credor de uma importância resultante de uma obrigação seja o devedor da outra e vice-versa, as duas dívidas são compensáveis entre si, pouco importando sua origem.
É possível aplicar o instituto da compensação como forma de pagamento numa obrigação de alimentos?
Neste ponto, convém relembrar a definição e algumas características jurídicas básicas dos alimentos. Primeiramente, seu conceito é extremamente amplo, engloba todo o conjunto de necessidades materiais básicas e vitais de um indivíduo (alimentação, moradia, saúde, educação, cultura, vestuário etc.) que, não tendo a capacidade de provê-las a si mesmo, tem o direito de reivindicá-las de outra pessoa, que tem a obrigação de fornecê-las. Sobre a pensão alimentícia, remetemos o leitor a outros dois artigos que publicamos (politica.estadao.com.br).
A obrigação alimentar se mede e é fixada, judicial ou extrajudicialmente, sempre a partir do binômio “possibilidades-necessidades”: as necessidades do alimentado e as possibilidades do alimentante em satisfazê-las no maior grau possível.
Quando se trata de compensar a dívida alimentar é obrigatório que o crédito e o débito sejam da mesma natureza, conforme dispõe a lei.
Voltando à pergunta que ficou no ar: é possível aplicar o instituto da compensação como forma de pagamento numa obrigação de alimentos? Tendo em vista que o conceito de alimentos é o mais vasto possível, podemos respondê-la, ao menos em tese, afirmativamente, desde que o crédito e o débito tenham a mesma natureza.
Nada deve impedir que um pai desconte da pensão devida a seu filho o valor do computador que lhe comprou, desde que este computador não tenha sido uma mera liberalidade extravagante com que quis presenteá-lo, mas um instrumento necessário à sua educação e cultura, dois elementos que compõem as necessidades básicas dos alimentados. Da mesma forma, um pai que seja o proprietário da casa onde moram sua ex-mulher e seus filhos, deve poder descontar da pensão regular valores como IPTU e condomínio (despesas correntes do imóvel que normalmente cabem aos residentes, e que, indispensáveis à manutenção da moradia, possuem clara natureza alimentar). Isto, claro fique, se o credor da pensão alimentícia, no caso de filho menor representado pelo guardião, não realizar o pagamento dessas despesas com o numerário que recebe da pensão.
Embora venham abrindo brechas aqui e ali à possibilidade de compensação entre créditos e débitos alimentares, este ainda não é o entendimento consolidado, em razão das dificuldades na interpretação da lei.
Alguns, apegados ao princípio da irrepetibilidade dos alimentos (pelo qual não se pode pedir de voltar o que se pagou a título de pensão alimentícia), e ponderando que sentenças de alimentos não podem ser alterados unilateralmente nem pelo alimentante nem pelo alimentando, fazem uma leitura singela do art. 1.707 da parte especial do Código Civil (Livro do Direito de Família) que estabelece a impossibilidade de compensação do crédito alimentar, sem que se leve em consideração que no art. 373, II da parte geral do mesmo Código Civil está disposto que o crédito pode ser compensado com o débito se as suas naturezas forem efetivamente alimentares.
A verdade é que a lei negou apenas a compensação de dívida de alimentos com dívidas de outras naturezas; não cabe ao intérprete da norma incluir-lhe uma limitação quando o legislador claramente não o fez. E não permitir ao alimentante descontar algo que já pagou a título de alimentos do que virá a ter de pagar também a título de alimentos é justamente o que pode provocar alteração unilateral na obrigação alimentícia e enriquecimento sem causa, porque acaba aumentando a pensão ou a dívida alimentar de maneira indireta e injustificada.
Nos exemplos mencionados, se não fossem autorizadas as respectivas compensações, a primeira pensão que era de “X”, acabará sendo de “X” mais o valor do computador do filho; e o valor da segunda pensão, que era “Y”, terminará como “Y” mais o IPTU e condomínio do imóvel. Como se vê, ocorreria uma evidente majoração na pensão, sem existir qualquer alteração na situação patrimonial do alimentante ou do alimentado que a pudesse justificar.
Enquanto os tribunais não se decidem, ao alimentante incomoda as dúvidas inevitáveis: correr o risco de pagar mal e pagar duas vezes, ou pagar apenas uma vez mas sujeitando-se a um processo de execução que pode até levar à sua prisão? Como saber quando é e quando não é possível compensar?
A resposta depende do caso concreto, no que dou um exemplo: se o alimentante compra uma bicicleta ou um vídeo game para o filho e quer compensar o respectivo valor de compra na pensão alimentícia do mês seguinte, reduzindo-o do que deve depositar na conta bancária do alimentando ou de seu guardião, quando o alimentando for filho menor de idade, não poderá fazê-lo, porque esses objetos não têm natureza alimentar.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões), Doutora em Direito pela USP e Advogada.)

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