DE ONDE VENHO? DESAFIOS DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA
Por Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz*
Em recente edição, programa jornalístico da televisão veiculou reportagem sobre fato ocorrido nos Estados Unidos, de um casal de mulheres que, utilizando-se da inseminação artificial com doação de espermatozoide, vieram a ter duas filhas, cada qual gerando uma, de um mesmo doador. Após o fim do relacionamento, uma das mulheres levou a filha que havia gerado, deixando a outra com a ex-companheira. Depois de 12 anos do nascimento da primeira filha, a partir da realização de testes genéticos e pesquisas na internet, descobre-se a identidade do doador de espermatozoide, Aaron Long, um homem já que havia realizado inúmeras doações (segundo relatou, duas vezes por semana, durante um ano) e que calculava poder ter até 67 filhos biológicos. Mãe e filha conhecem outros filhos do doador e, mais tarde, estabelecem relações com o mesmo e passam a viver juntos. Essa história real, que mais parece enredo de novela, traz à tona uma série de problemas e desafios da reprodução humana assistida heteróloga, em especial em relação à matéria de filiação, parentesco e direitos da personalidade. Pode-se questionar a partir desse caso, por exemplo, se é ético comercializar espermatozoides e óvulos e se há limites de disponibilidade dessas células; assegurar o anonimato do doador viola direito da personalidade do filho? O consenso no projeto parental, por si só, constitui a relação socioafetiva dos pais encomendantes em relação ao futuro filho? Quais os limites da autonomia da vontade na constituição do vínculo socioafetivo na reprodução humana assistida?
No Brasil, ainda não há lei regulamentando a reprodução humana assistida. No Congresso Nacional, chegaram a tramitar quinze projetos de lei sobre a matéria, hoje reunidos e apensados ao Projeto de Lei nº 115/2015, que aguarda sua regular tramitação. O Código Civil Brasileiro contempla, em seu art. 1591, regras referentes à filiação, porém ainda insuficientes a regulamentar a matéria.
O Conselho Federal de Medicina editou a primeira resolução sobre a matéria em 1992, a qual permaneceu em vigor até 2010, com o advento da Resolução nº 1952/2010, posteriormente alterada pela Resolução nº 2013/2013 que, por sua vez, foi alterada pela Resolução nº 2121/2015, revogada pela atualmente em vigor, a de nº 2168/2017, que contempla as normas éticas a serem seguidas pelos médicos que trabalham na área.
Nesse contexto, conforme mencionado, dentre os inúmeros problemas que exsurgem do caso citado, é a questão da revelação da identidade de doadores e receptores de sêmen e óvulos utilizados no processo de reprodução assistida heteróloga.
Tanto no direito pátrio como no direito estrangeiro não há consenso acerca do direito ao anonimato. A maioria dos países em que há legislação sobre a reprodução humana assistida garante o direito ao anonimato do doador na inseminação heteróloga, como, por exemplo, França, Portugal e Espanha, podendo o mesmo ser afastado, apenas excepcionalmente e em casos expressos, como o de doenças hereditárias.
No Brasil, a Resolução nº 2168/2017, do Conselho Federal de Medicina, garante o anonimato do doador, apenas com a ressalva de que, em situações especiais, informações sobre os doadores poderão ser dadas exclusivamente para os médicos, resguardada a identidade civil do doador. No mesmo sentido, o Projeto de Lei nº 115/2015 que pretende regulamentar a matéria. Essa é orientação seguida pelos médicos, desde 1992.
Pode-se dizer que, até bem pouco tempo atrás, prevalecia a garantia do anonimato dos doadores nas legislações que regulamentam a utilização das técnicas de reprodução assistida. Percebe-se, porém, atualmente, uma mudança de paradigma no sentido de contemplar a possibilidade de revelação de dados do doador como direito do nascido através da reprodução heteróloga, como ocorreu na Suécia e na Grã-Bretanha, como regra geral e não apenas excepcionalmente, ao se reconhecer o direito à origem, como direito da personalidade.
Em acréscimo, surge a questão dos impedimentos matrimoniais e das enfermidades. Com a internet, que derrubou as fronteiras e diminuiu o óbice da distância aos relacionamentos pessoais não se pode descartar a possibilidade de uniões entre ascendentes e descendentes ou entre irmãos biológicos, em especial naqueles países onde não há limitação quanto ao número de doações nem espaço geográfico. No caso narrado, por exemplo, o doador estima poder ter mais de 60 filhos e muitos deles chegaram a se conhecer. A esse respeito, é mister registrar que a Resolução nº 2168/2017 do CFM teve o cuidado de limitar a doação à produção de, no máximo, duas gestações de crianças de sexos diferentes numa área de um milhão de habitantes, o que dificulta a ocorrência de tais encontros.
No entanto, enquanto o Conselho Federal de Medicina admite a revelação da identidade do doador exclusivamente aos médicos e em situações especiais, adotando o sistema do segredo absoluto, o Conselho Nacional de Justiça, inicialmente, ao editar o Provimento nº 52/2016, rompeu com tal paradigma ao exigir a apresentação de termo de consentimento prévio, por instrumento público, do doador ou doadora, autorizando expressamente, que o registro de nascimento da criança a ser concebida se dê em nome de outem, além de termo de aprovação prévia, igualmente por instrumento público, do cônjuge ou de quem convive em união estável com o doador ou doadora, autorizando, expressamente, a realização do procedimento de reprodução assistida. (art. 2º §1º, I e II), tornando obrigatória, portanto, a revelação da identidade dos doadores.
É bem verdade que tal provimento foi posteriormente revogado pelo Provimento nº 63/2017, atualmente em vigor, que excluiu a necessidade de apresentação de tal documentação, porém, manteve, em seu art. 17, §3º[1] a possibilidade de conhecimento da ascendência biológica, sem qualquer restrição, ressalvando, apenas, a inexistência de efeitos jurídicos entre doador ou doadora e o ser gerado por meio da reprodução assistida, de forma que permanece a colisão quanto à sistemática do sigilo absoluto, instituída pelas normas éticas do Conselho Federal de Medicina.
Importante destacar que o Projeto de Lei nº 115/2015, ao tratar da matéria do anonimato do doador, reconhece, em seu art.19, o direito ao conhecimento da origem biológica, mediante autorização judicial, em caso de interesse relevante para garantir a preservação de sua vida, manutenção de sua saúde física ou higidez psicológica e em outros casos graves que, a critério do juiz, assim o sejam reconhecidos por sentença judicial.
Na prática, portanto, não havendo lei em sentido formal, a matéria fica sujeita ao exame casuístico dos Tribunais, persistindo a lacuna legislativa e a insegurança jurídica sobre o tema, fazendo com que com que órgãos como o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Nacional de Justiça, no afã de legislador, passem a disciplinar a matéria extrapolando suas competências.
Pode-se dizer, portanto, que o cenário brasileiro sobre a matéria é totalmente nebuloso. Esta miscelânea de normas em rota de colisão demonstra a verdadeira instabilidade que permeia a questão da reprodução humana assistida no Brasil: de um lado, normas éticas que devem ser seguidas pelo médico; de outro, normas que devem ser seguidas pelos cartórios de registro civil do país e, ainda, ausência de legislação própria sobre a matéria. A ciência sem limites jurídicos pode, ao invés de melhorias, causar danos às pessoas e a sociedade em geral.
[1] Art. 17 (..)
- 3º O conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida.
* Juíza de Direito da 29ª Vara Cível de Recife-PE. Doutora pela Universidade Federal de Pernambucana, visitante do programa de doutorado da Queen Mary University of London. Pós-doutoranda pela Universidade de Salamanca. Coordenadora da pós-graduação lato sensu da ESMAPE. Professora da Esmape. Membro da comissão de bioética da ADFAS.