Associação de Direito de Família e das Sucessões

BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A PRETENSÃO DE OITIVA DO ADOLESCENTE, EM ATO INFRACIONAL, APÓS A PRODUÇÃO DAS PROVAS.

Esse artigo é de autoria de Valéria Bezerra Pereira Wanderley, Juíza da 1ª Vara da Infância e Juventude do Recife

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece regras processuais que regem os feitos que tramitam nas Varas da Infância e Juventude, determinando no caput do artigo 152, que subsidiariamente, repita-se, subsidiariamente, sejam utilizados o CPC, nas matérias “cíveis” e o CPP, nas questões infracionais.

Art. 152. Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.

A doutrina e jurisprudência atual, , considerando a gravidade abstrata do ato infracional e atentando-se também para as circunstâncias do caso concreto e para as condições pessoais do adolescente recorrerem àquelas normas gerais da legislação processual para uso perene no Estatuto.

No ordenamento penal brasileiro, a Lei 11.719/08 alterou o Código de Processo Penal para garantir ao réu em processo criminal, o direito de ter o seu interrogatório realizado como último ato da instrução processual. Essa alteração foi introduzida como “benefício ao requerido”, que passou a ser ouvido somente depois de tomar conhecimento de todas as provas produzidas pela acusação, podendo manter-se em silêncio ou produzir sua defesa, dando sua versão dos fatos quando conhecedor das provas da acusação. O lema se tornou: acusação primeiro, defesa só no fim.

Essa nova ordem no procedimento representa proveito para o réu, que passou a ter oportunidade de contestar diretamente a totalidade das provas carreadas aos autos e produzidas em seu desfavor. Mas há, por outro vértice de observação, uma presumida relevância a ser discutida: será que existe essa mesma vantagem com relação a utilização dessa regra no procedimento infracional? Os adolescentes infratores também se beneficiariam quando utilizado esse preceito? Eis as questões iniciais e seus possíveis desdobramentos, carentes de comentários e reflexão neste momento.

Primeiramente, não se pode olvidar, existe no Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu art. 184, a determinação de,uma vez oferecida a representação, ser designada pelo Juízo, como primeiro ato do procedimento, a chamada “audiência de apresentação”, onde será ouvido o adolescente, seus pais ou responsáveis, decidindo, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação, observado o disposto no ECA, art. 108 e parágrafo. Naquele ato pode o julgador solicitar ainda a opinião de profissional qualificado, quanto aos aspectos sociais e psicológicos envolvidos no caso.

De modo intrigante, aparenta a ideia ora sob os holofotes de que o procedimento infracional do ECA penaliza o adolescente infrator, quando não se acolhe e se procede com o regramento do CPP. Estaria sendo mais gravoso o procedimento do ECA, quando em confronto com a regra do CPP? Qual entendimento merece mais apego por parte do julgador da Infância e da Juventude?

Se por um lado o interrogatório realizado como último ato da instrução processual trouxe benefícios para o acusado no processo penal, o procedimento de apuração de ato infracional existente no ECA estabelece a audiência de apresentação como passo de suma importância para o julgador ter o primeiro contato com o adolescente. É nessa ocasião que o Juiz ouve o adolescente sobre os fatos narrados na representação, passando a avaliar as características da sua personalidade, sua interação familiar e comunitária, visando verificar a possibilidade de responder ao processo em liberdade, decidindo desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação.

Há entendimento inquietante compartilhado entre alguns operadores especializados sobre o tema. Afirma-se que as especificidades do ECA devem estar diretamente ligadas à proteção do menor e entendem que a audiência ab initio é incompatível (dizem até ser ilegal) com o amparo de ordem constitucional, afirmando tratar-se de tratamento mais gravoso em comparação com o que ocorre no processo penal do adulto, sem dependência da medida de caráter socioeducativo.

Pois bem, diante da discrepância de ritos entre os códigos citados, recentemente foi julgado pelo STF, com relatoria do ministro Ricardo Lewandowski o Habeas Corpus n. 212693/PR, impetrado pela Defensora Pública do Paraná e tendo como coator  a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em que se  pleiteava a possibilidade de  conceder ao adolescente novo interrogatório ao final da instrução, para que pudesse exercer, de forma que julgasse mais adequada, a sua autodefesa, contrapondo as versões das testemunhas.

O julgamento decretou a anulação da sentença condenatória, para que outra sentença seja proferida, após a oitiva do adolescente, como último ato da instrução, a fim de assegurar o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório ao acusado. Determinou, arrematando as suas argumentações ao término da decisão, existir a obrigatoriedade de realização do interrogatório ao final da instrução processual. Note-se, por outro lado, que na argumentação que gerou o Habeas Corpus, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, órgão coator, afirmou que houve no caso a perfeita adequação da interpretação da norma processual penal juvenil, nos termos da Constituição Federal.

Sem carga de crítica ao julgado em evidência, o uso da audiência infracional ab initio, parece mesmo trazer mais vantagem ao infrator do que a sua realização como ato final. Os fatos jurídicos previstos em norma de direito, em razão dos quais nascem, se modificam, subsistem e se extinguem as relações jurídicas, existem por si só. Não é o Ministério Público, os advogados nem os julgadores que retêm por mais tempo que o necessário o infrator na mira da Justiça, mas o ato e a vida do próprio infrator.

Aquela audiência no início do procedimento possui, pois, dois importantes matizes: a compreensão imediata do julgador, através de uma visão bastante clara do caso e dos problemas que envolvem o adolescente, e a articulação (que mais interessa ao ECA) para o bem do suposto infrator. Assim, o interrogatório praticado no início do procedimento permite, de pronto, gerar o benefício de estancar por meio da remição o caso. Como se vê, a audiência em foco não é inimiga, ao contrário, é amiga do infrator.

Como alternativa, em não havendo a remição imediata do menor, poder-se-ia subsidiariamente, despiciendo maior formalismo, se utilizar novo interrogatório ao final do procedimento. Minima de malis. Que mal faria ao menor e ao Judiciário? Mal nenhum. Dar-se-ia, por derradeiro, o controle da convencionalidade. Este cenário, que aparenta completude, serve ademais para evitar a nula tramitação processual e, via de consequência, a própria atividade jurisdicional estatal.

Nesse diapasão veio a conclusão uníssona, concordante com o Supremo Tribunal Federal, mas com uma pitada de temperamento, relativizando-a, dos magistrados que participaram da XI Jornadas Pernambucanas dos Direitos da Infância e Juventude, realizada em abril deste ano de 2022, que almejou ampliar o desenvolvimento direcionado à observação das determinações legais e à utilização de recursos judiciais, jurisdicionais e gerenciais, voltados à agilização processual das medidas de proteção à criança e ao adolescente, assinalaram e sugeriram seu Enunciado. Como solução de quaisquer dúvidas sobre a utilização do interrogatório no início ou no final, restou informalmente proposto que:

“É facultada a oitiva do adolescente como último ato de instrução do procedimento de apuração de ato infracional,  propiciando autodefesa mais sólida após toda a produção probatória, sem prejuízo da necessidade da designação da audiência de art. 184 da Lei 8.069/90, sede em que será avaliada a decretação ou reavaliação da internação provisória já decretada, bem como a possibilidade de remissão, ouvido o órgão ministerial.”

Notoriamente os ritos processuais são complexos e exigem  grande número de atos a cargo dos juízes. Objetivamente, se condiciona ao Juízo o uso de forças homogêneas, sempre visando a celeridade processual e o benefício do infrator, sem a necessidade de impor uma legislação subsidiária como regra necessária, e sem penúria de ser ilegal, como alguns doutrinadores têm afirmado na defesa do interrogatório final. Cuida-se vencedora a autonomia do Direito.

Dessa forma, conclui-se que se mostra ser a melhor forma procedimental a manutenção da audiência de apresentação no início do procedimento de apuração de ato infracional, atendendo-se ao Princípio da Especialidade e o instituto para que ao representado seja oferecida eventual remissão judicial (art. 186, §1º, ECA), sem prejuízo de que seja novamente ouvido, em continuação, mediante requerimento, a fim de assegurar-lhe o perfeito contraditório e a plenitude de defesa.

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