AUTOALIENAÇÃO PARENTAL: UMA ANÁLISE
Por Fernanda Cioni Constant Pires*
A lei 12.318/2010 trouxe ao arcabouço jurídico um instituto que foi primeiramente estudado nos Estados Unidos da América, pelo psiquiatra Richard Gardner, que foi quem cunhou o termo “SAP-Síndrome da Alienação Parental”, ou PAS[1] no idioma original.
Em seu artigo 6º, tal diploma legislativo traz sete tipos de sanções a ser aplicadas pelo juiz quando se constata a efetiva ocorrência de alienação parental, incluindo advertência, multa, e, mais grave, alteração da guarda e suspensão da autoridade parental.
A ideia deste artigo não é se estender em considerações sobre a síndrome, ou suas sanções, pois pretendo trazer luz ao fenômeno inverso: o abandono afetivo ou, como querem alguns, a autoalienação parental.
Para efeitos do presente artigo, proponho considerar como sinônimos os dois termos, muito embora entenda que a expressão “abandono” seja mais adequada ao caso, já que “alienação” (como visto no conceito de alienação parental) dá ideia de um agir, de um fazer, enquanto a palavra “abandono” sugere um abster-se, um não agir.
Compreende-se que a lei puna aquele que age contra o outro genitor, com o objetivo de destruir a imagem de seu ex-companheiro junto aos filhos, mas poder-se-ia advertir, multar, ou punir mais gravemente aquele que, por vontade própria, se afasta dos filhos?
Ou mais claramente, a convivência constitui um direito, ou um direito-dever?
De acordo com a professora Regina Beatriz Tavares da Silva, ao discorrer sobre o dever do genitor de conviver com os filhos, é perfeitamente possível a responsabilização do pai ausente (no sentido coloquial da palavra). Diz: “Assim, os filhos têm o direito de ter a companhia do genitor, cuja violação, se reiterada e injustificada, ao causar danos, pode gerar a aplicação dos princípios da responsabilidade civil, com fundamento no art.186 do Código Civil. Note-se que o fundamento dessa aplicabilidade dos princípios da responsabilidade civil não é falta de amor ou de afeto, já que amar não é dever e receber afeto não é um direito. A fundamentação legal reside, outrossim, no descumprimento do dever jurídico do pai de ter o filho em sua companhia, que acarreta violação ao direito do filho de ser visitado pelo pai.”[2]
Em magistral voto no REsp 1.159.242-SP, a Ministra Nancy Andrighi bem diferencia o dever de cuidado do sentimento de amor:
“Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.”
Nós, advogados, estamos acostumados a lutar pelo direito que um dos pais, ou mesmo os avós, têm de conviver com a criança, e vemos a questão pelo prisma daquele que deseja ardentemente ver o filho ou o neto, levá-lo a passeios, participar de sua vida.
E aquele pai ou mãe que não deseja contato com os filhos?
Por mais que pareça antinatural, existem genitores que simplesmente apagam sua vida anterior, constituem novas uniões, têm novos filhos, e “esquecem” da prole com a qual não convivem diuturnamente.
Sendo um problema real, que gera inúmeras consequências no campo psicológico e jurídico, merece ser estudado.
O que levaria alguém a se distanciar, sponte sua, de seus filhos, é matéria mais afeita às ciências médicas, voltadas a esclarecer o que vai na mente daquele que se aliena, que deseja romper um laço tão robusto como aquele que une pais e filhos.
Juridicamente, no entanto, percebe-se que ao menos na prática a guarda e o poder familiar se vêem profundamente afetados e modificados pelo abandono de um dos pais.
Na família que acaba se tornando monoparental pelo afastamento do outro genitor, todas as decisões do dia-a-dia, importantes ou não, são à força delegadas àquele que convive com os filhos, ou seja, a guarda, ainda que eventualmente não seja declarada unilateral em juízo, é assim exercida.
O poder familiar, em casos mais extremos, também se altera.
O artigo 1.631 do Código Civil estabelece que “Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.”
Alguns poderiam interpretar o dispositivo no sentido de que o poder familiar só poderia ser exercido em conjunto durante o casamento e a união estável, o que não é verdade, já que o artigo seguinte ressalta que a separação judicial e o divórcio não têm o condão de afetar as relações entre pais e filhos.
Pode, porém, em casos extremos, o genitor ser destituído do poder familiar.
No âmbito dos alimentos, o abandono também produz efeitos, já que em uma família regida pela guarda compartilhada, que vem sendo adotada como regra, os filhos passam períodos equivalentes, ou ao menos similares, em sua residência fixa e na residência do outro genitor, o que impacta nos gastos com alimentação, energia elétrica, lazer etc.
Por outro lado, em uma família em que os filhos ficam a totalidade do tempo em uma só residência, os gastos indiretos recaem somente sobre o genitor que os tem consigo.
Quanto às visitas ou regime de convivência, não é preciso dizer que o genitor que pratica o abandono – ainda que não definitivo e por alguns períodos- descumpre total e completamente as regras estabelecidas em juízo ou mediante composição com o outro genitor, ainda que verbal.
Veja-se, como exemplo, um abandono que dure o período de seis meses, em que os filhos ou o ex-cônjuge não conseguem estabelecer contato com o pai/mãe. Neste período passam-se feriados, aniversários, datas comemorativas, que, em tese, deveriam ser desfrutados na companhia de um ou de outro.
Pode-se pensar em, no mínimo, duas situações: aquela em que o pai (ou mãe) abandona a criança desde o nascimento, com ele evitando qualquer tipo de contato pela vida toda, ou , em alguns casos, por muitos anos, e aquela em que o pai (ou mãe) teve uma convivência normal com a prole enquanto casado, porém resolveu dela abdicar quando veio o divórcio ou separação.
Quer nos parecer que esta última situação, embora tão cruel quanto a primeira, gere mais confusão na mente da criança, já que aquela figura paterna (ou materna) que esteve presente em seus registros da primeira infância a certo ponto desaparece.
Adentrando o campo da psicologia, vê-se que o sentimento de culpa é inevitável. Conforme a idade da criança, vêm os questionamentos (Será que eu fiz algo que o papai/a mamãe não gostou?)
Em suma, muitas vezes deparamos com reclamações de clientes sobre o quanto o ex-cônjuge os perturba por querer conviver demais com os filhos, mas o que é prejudicial mesmo é o não querer, a indiferença total e absoluta de um pai.
Conclui-se que a convivência é, sim, um direito-dever, e a eventual responsabilização através de uma indenização em pecúnia nunca poderá substituir a real vontade do pai ou mãe de participar da vida e do crescimento de seus filhos.
Entretanto, não se pode fugir à regra máxima oriunda do Direito Romano, segundo a qual aquele que causa prejuízo a terceiro deve ser responsabilizado.
Se qualquer terceiro prejudicado tem direito a indenização, o que dizer do filho, que espera do pai todo o carinho, a atenção e o cuidado, e é surpreendido pelo descaso e negligência?
Os laços que deveriam unir pai e filho já se mostram rompidos de há muito quando se chega ao ponto de procurar o Judiciário para tal reparação, então parece justo que aquele que teve por anos, ou décadas, a chance de estabelecer ou retomar um vínculo com a prole mas não o fez deva então sofrer uma pena pecuniária, último recurso à disposição do filho abandonado.
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[1] Parental alienation syndrom.
[2] MONTEIRO, Washington de Barros; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz- Curso de Direito Civil: v.2. 43ª ed. Saraiva, 2016.
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*Fernanda Cioni Constant Pires é advogada em São Paulo. Associada da ADFAS.