A PROPOSTA DO CELIBATO NA REFORMA DO CÓDIGO CIVIL
Por Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, publicado originalmente no Estadão – Blog do Fausto Macedo.
O Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), com 2.046 artigos e que regula as relações entre as pessoas antes do nascimento, durante a vida e após a morte, a mais abrangente e relevante legislação para a sociedade, está sujeito a reforma por Comissão (CJCODCIVIL) criada pelo presidente do Senado, o senador Rodrigo Pacheco, com prazo de 180 dias para apresentação de anteprojeto, tendo sido nomeado presidente dessa Comissão o ministro Luis Felipe Salomão.
Muitos desconhecem a chamada Reforma do Código Civil, não só os que não são da área jurídica, mas também os que são juristas e não atuam na área cível.
Hoje em dia a velocidade impera e a rapidez é destacada como qualidade para o êxito de trabalhos, nas mais diversas áreas e em todas as atividades humanas. Mas o prazo estabelecido de 180 dias para a apresentação do anteprojeto de lei de reforma do Código Civil, com sua completa revisão e atualização, tamanha a sua extensão e amplitude, até mesmo para quem não é operador do Direito, causa apreensão e desassossego.
Em texto intitulado “Código Civil no atropelo”, publicado no Estadão, José Renato Nalini, conselheiro científico da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), acentua essa preocupação com a celeridade exagerada imposta na elaboração do anteprojeto de reforma do Código Civil. Ele afirma que “Agora se pretende substituir o Código Reale, assim conhecido por ter sido obra coordenada pelo famoso jus filósofo Miguel Reale, que adaptou o que ele chamava de “Constituição Civil do ser humano” à normativa fundante instaurada após a redemocratização do Brasil.”, e completa com a seguinte indagação: “É preciso fazer essa revisão a toque de caixa, sem amplíssimo debate que precisaria envolver a academia, a universidade, o empresariado, a sociedade civil e todos os que serão submetidos a essa alteração?”
A ADFAS, em razão de convite realizado pela Presidência da referida Comissão, não se furtou a apresentar suas sugestões legislativas no Direito de Família e das Sucessões, embora em curtíssimo prazo, tendo buscado a revisão e atualização das respectivas normas legais, com os parâmetros dos anseios sociais e da segurança jurídica.
Quanto às propostas das Subcomissões da referida Comissão, instituída pelo senador Rodrigo Pacheco em 4 de setembro de 2023, sua apresentação ocorreu em 8 de dezembro de 2023, ou seja, foram elaboradas sobre mais de 2.000 artigos em apenas cerca de 60 dias úteis.
Obviamente o atropelo citado pelo jurista José Renato Nalini foi inevitável e resultou em propostas como aquela da absurda obrigação dos padrastos e madrastas pagarem pensão alimentícia aos enteados, em que é retomada e até mesmo piorada a proposta que existia no Projeto de lei que tramitou no Senado, chamado Estatuto das Famílias (Lei nº 470/2020), que foi arquivado no Congresso Nacional, em razão de sua inaceitabilidade pelos membros do Poder Legislativo.
O Código Civil (CC), que vigora atualmente, estabelece que as relações entre padrastos, madrastas e seus enteados gera o parentesco por afinidade, que impede o casamento entre eles, sendo esse vínculo oriundo de casamento ou de união estável (art.1.595 c/c art. 1.521, II).
A proposta da Subcomissão de Família repete essa norma, de modo a considerar que há parentesco por afinidade nessas relações, em capítulo chamado de Famílias Recompostas (Relatório da Subcomissão, art. 1.510-L), mas propõe que aqueles que se casam ou passam a viver em união estável com uma pessoa que já tem filhos terá o dever de pagar pensão alimentícia ao enteado se a relação com o genitor (pai ou mãe) dessas crianças ou adolescentes terminar. Isto sendo aplicável até mesmo se a relação de casamento ou de união estável que gerou o parentesco por afinidade não terminou e o enteado estiver morando com seu outro genitor.
Vejam a proposta da referida Subcomissão: Art. 1.694. § 1º-A. A obrigação de prestar alimentos existe independentemente da natureza do parentesco e da existência de multiparentalidade.
A proposta ressalva expressamente que não é necessário haver a multiparentalidade, que advém da socioafetividade, em que o padrasto ou a madrasta exerce o papel de pai ou de mãe do enteado. A socioafetividade, com base no art. 1.593 do Código Civil e apoio especialmente dos julgados dos Tribunais, passou a ser entendida como relação de parentesco no Brasil, gerando todos os efeitos do parentesco consanguíneo.
Mas, na multiparentalidade ou socioafetividade o padrasto assume a posição de pai do seu enteado, com a afetividade recíproca na relação e assim sendo reconhecido pela sociedade, o que ocorre quando o genitor biológico não participa da criação e educação do filho, tendo desaparecido, ou sendo omisso, sendo somente assim que a jurisprudência reconhece que o chamado pai socioafetivo tem o dever de pagar pensão.
Reitere-se que a proposta da Subcomissão é de que, sem a socioafetividade, ou seja, sem assumir a posição de pai ou de mãe, o padrasto e a madrasta passem a ter o dever de pagar pensão alimentícia aos enteados.
Isto, obviamente, desincentivará os casamentos e uniões estáveis com pessoas que tenham filhos menores. É um evidente incentivo ao desafeto, ou celibato, em contradição ou na contramão do próprio relatório apresentado pela Subcomissão de Família, que acentua a importância do afeto como baliza do Direito de Família.
Recordemos que o dever de prestar alimentos poderá ser prolongado até o enteado alcançar os 24 anos, não terminando nem mesmo na sua maioridade civil dos 18 anos de idade.
Quem se sentirá confortável em casar-se ou viver em união estável com outra pessoa que já tenha filhos, sabendo que se houver a separação, sem a formação de vínculo socioafetivo ou da chamada multiparentalidade, possa ser obrigado a pagar pensão aos enteados?
A proposta em tela acarreta o seguinte: uma pessoa se casa com outra que tem filhos, se divorcia a seguir e terá o dever de sustentar os filhos alheios.
Nas propostas da ADFAS, somente em caso de socioafetividade, a ser considerada mediante o preenchimento dos requisitos adotados pela jurisprudência nacional, surge a obrigação alimentar. Assim foi proposta a nova redação do art. 1.593, §1º: “O parentesco socioafetivo requer o reconhecimento social da relação de filiação, como se pai ou mãe e filho consanguíneos fossem, e a demonstração objetiva da afetividade recíproca e assemelhada àquela que se presume existir entre um genitor biológico e seu filho.”.
Esperamos que a proposta da Subcomissão de Família, que pretende obrigar o padrasto ou a madrasta a pagar pensão alimentícia aos seus enteados sem que se forme vínculo de socioafetividade, seja corrigida pela Relatoria da Comissão da Reforma do Código Civil, antes da apresentação do anteprojeto ao Senado, ou, se não o for, que o Senado esteja atento às suas desastrosas e injustas consequências.