Retrospectiva 2016 – Um ano longo demais e seus impactos no Direito Civil Contemporâneo
1. Um ano longo demais
O ano de 2016 chega a seu fim, ao menos segundo o calendário gregoriano. No entanto, assim como há séculos longos e séculos curtos, como foi o século XX, ao menos na célebre definição do historiador britânico Eric Hobsbawm, existem anos longos e anos curtos. Na verdade, 2016 será reconhecido no futuro como um “ano longo demais”. Ele começou antes de 1º de janeiro: muitos dos eventos que o tornaram tão peculiar tiveram início antes dessa data. E ele não terminará em 31 de dezembro, pois a crise econômica e política na qual estamos mergulhados tem tudo para prosseguir em 2017.
Para um civilista, porém, as crises, as revoluções e as perturbações econômicas fazem parte de seu horizonte. O Direito Civil tem vantagem de ser contemporâneo de Hamurabi, de haver atravessado os Apeninos com Napoleão e seus legionários esfarrapados, e de estar ao lado dos poloneses quando reconstruíram sua economia após o fim da experiência comunista na Europa do Leste. Tantos séculos passados conferem ao Direito Civil a prerrogativa única de olhar para o quotidiano e suas misérias com a perspectiva de quem já assistiu a dias melhores, mas que também já conheceu dias superiormente trágicos.
É com essa introdução que convidamos os leitores da Coluna Direito Civil Atual, um espaço pluralista, coordenado pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, a uma retrospectiva do difícil e longo ano de 2016, a qual se dividirá, como tem sido tradicional, na apresentação dos principais fatos legislativos e jurisprudenciais, além das efemérides mais relevantes do ano.
2.O Direito Civil na legislação
Diferentemente de 2015, o Código Civil não foi (tão) desfigurado por intervenções legislativas assistemáticas e que pouco dialogam com os meios acadêmicos. Poder-se-ia dizer que o código terminaria bem o ano de 2016, não fosse a Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016, que tratou de diversos temas como a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, além de instituir mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União.
Especificamente quanto ao Código Civil, o artigo 25 da MP 759, de 2016, alterou a redação do artigo 1.225 do código, ao incluir o inciso XIII, que institui a “laje” como novo direito real. A laje é definida no novo artigo 1.510-A, de um modo extremamente atécnico. A laje é um direito real que “consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”. Um direito que é uma possibilidade! Trata-se de uma nova categoria, a qual se recomenda ao estudo nos cursos de Filosofia.
Embora definido como um direito-possibilidade, a laje somente será “aplicável” (imagine-se alguém dizendo que seu direito de propriedade é “aplicável”…) “quando se constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a solidariedade de edificações ou terrenos” (§ 1º do artigo 1.255). Sendo certo que esse direito, que era uma possibilidade e é aplicável, também “contempla” “o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário do imóvel original”.
Enfim, o novo direito de laje não merece monopolizar toda a coluna. Sobre ele, por certo, escrever-se-ão futuras colunas na Direito Civil Atual nos próximos meses. Deve-se, porém, registrar o assombro com a falta de cuidado técnico na elaboração dessa norma, especialmente porque soluções muito mais adequadas poderiam ter sido alcançadas com o já existente direito de superfície. Reconhece-se, porém, que essa indiferença quanto ao Direito Civil e a seus institutos é, em grande medida, de responsabilidade dos civilistas, que mais se ocupam em escrever libelos contra sua própria área de estudo, destruindo moinhos de vento (que pensam ser terríveis gigantes) e enaltecendo os encantos de Dulcinéia del Toboso (uma jovem que já possui um número suficiente de pretendentes), quando deveriam defender a importância de sua disciplina.
A MP 759, de 2016, em seu artigo 6º, também alterou a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973), cujo artigo 167, inciso II, que prevê os atos averbáveis, passou a ter uma alínea 31. Desse modo, passam a ser averbáveis as certidões “de liberação de condições resolutivas dos títulos de domínio resolúvel emitidos pelos órgãos fundiários federais na Amazônia Legal”. Os artigos 288-A ao 288-G, da Lei de Registros Públicos, foram revogados pela MP 759, de 2016, que deu tratamento inovador ao registro da regularização fundiária urbana.
A Lei 13.306, de 4 de julho de 2016, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), ao fixar em cinco anos a idade máxima para o atendimento na educação infantil (creche e pré-escola), com a nova redação dada ao inciso IV de seu artigo 54, bem como ao inciso III de seu artigo 208. O ECA foi também modificado pela Lei 13.257, de 8 de março de 2016, com diversas alterações redacionais no que se refere às políticas públicas relacionadas às crianças e aos adolescentes.
A responsabilidade civil de notários e registradores foi objeto de modificação introduzida pela Lei 13.286, de 10 de maio de 2016, que deu nova redação ao artigo 22 da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. Com o texto legal alterado, tem-se agora que: “Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso”. A prescrição da pretensão de reparação civil, que se conta da data de lavratura do ato registral ou notarial, foi definida em 3 anos. Com esse câmbio legislativo, resolveram-se antigas controvérsias sobre o alcance da responsabilidade desses agentes em colaboração com a Administração Pública, especialmente o caráter regressivo e a extensão da responsabilidade do titular da serventia por atos de seus escreventes, escrivães e escrivães-maiores.
Os artigos 15, 16 e 17 do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994) modificaram-se após a vigência da Lei 13.247, de 12 de janeiro de 2016. Com esse câmbio normativo, admitiu-se a constituição de sociedade unipessoal de advocacia, um antigo anseio da categoria. A sociedade unipessoal foi reconhecida como ente dotado de personalidade jurídica, aplicando-se em relação a esta, no que couber, o regime do Código de Ética e Disciplina.
Tema fronteiriço entre o Direito Civil e o Direito Administrativo, o regime jurídico da empresa pública e da sociedade de economia mista ganhou no estatuto com a edição da Lei 13.303, de 30 de junho de 2016. De acordo com a nova legislação, manteve-se a tradicional definição da empresa pública como “entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios” (artigo 3º). Igualmente se conservou a definição da sociedade de economista como pessoa jurídica de direito privado, cuja criação é por lei autorizada e que deverá assumir a forma de sociedade anônima, “cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da administração indireta” (artigo 4º). No entanto, passou-se a exigir que os estatutos da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias observe “regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção, todos constantes desta Lei” (artigo 6º).
3. O Direito Civil na jurisprudência
A quantidade de decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça em matéria de Direito Civil foi significativa em 2016. O espaço desta coluna não permite o exame detalhado de todos os acórdãos dignos de relevância sobre o tema, fixando-se apenas em alguns desses, com preferência aos que foram objeto de comentários na Revista de Direito Civil Contemporâneo -RDCC, editada pela Rede de Direito Civil Contemporâneo, com o selo da ThomsonReuters-Revista dos Tribunais.
O adimplemento substancial, um tema que tem aumentado e muito sua recorrência nos tribunais, foi objeto do REsp 1.581.505-SC, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, que negou a aplicação dessa doutrina em caso de inadimplemento incontroverso de mais de 30% do valor do contrato. No acórdão, o relator procedeu a um exame histórico-evolutivo do adimplemento substancial, deixando a importante ressalva de que este “não pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o integral e regular cumprimento do contrato como meio esperado de extinção das obrigações”. Ademais, sua aplicação “não se prende ao exclusivo exame do critério quantitativo, devendo ser considerados outros elementos que envolvem a contratação, em exame qualitativo que, ademais, não pode descurar dos interesses do credor, sob pena de afetar o equilíbrio contratual e inviabilizar a manutenção do negócio.”[1] Esse julgado foi objeto de comentário jurisprudencial no volume 9 da RDCC, de autoria de Augusto Cézar Lukascheck Prado.
O ministro Marco Aurélio Bellizze foi relator de uma importante decisão sobre a unificação dos prazos prescricionais relativos a pretensões fundadas tanto em responsabilidade contratual quanto na responsabilidade extracontratual. Em relação a ambos, aplica-se o prazo trienal. Segundo o relator, o termo “reparação civil”, “constante do art. 206, § 3º, V, do CC/2002, deve ser interpretado de maneira ampla, alcançando tanto a responsabilidade contratual (arts. 389 a 405) como a extracontratual (arts. 927 a 954), ainda que decorrente de dano exclusivamente moral (artigo 186, parte final), e o abuso de direito (art. 187)”.[2] A decisão gerou polêmica, com vozes favoráveis e contrárias a esse entendimento, e deverá fomentar muitas publicações sobre seu teor, o que enriquece o debate sobre a matéria da prescrição em uma área das mais sensíveis ao Direito Civil.
Outro caso emblemático decidido em 2016 foi o relativo à dita “Farsa do PCC”, envolvendo o apresentador de televisão Augusto Liberato e seu programa Domingo Legal. Na ocasião, entrevistaram-se criminosos que fizeram ameaças de morte em pleno ar. O relator, ministro Luís Felipe Salomão, utilizou-se do método bifásico, “como parâmetro para a aferição da indenização por danos morais, atende às exigências de um arbitramento equitativo, pois, além de minimizar eventuais arbitrariedades, evitando a adoção de critérios unicamente subjetivos pelo julgador, afasta a tarifação do dano, trazendo um ponto de equilíbrio pelo qual se consegue alcançar razoável correspondência entre o valor da indenização e o interesse jurídico lesado, bem como estabelecer montante que melhor corresponda às peculiaridades do caso”. De acordo com esse método, em uma primeira fase, arbitra-se o valor básico ou inicial da reparação, o qual considerará o interesse jurídico lesado em face dos precedentes judiciais conexos. Na segunda fase, “ajusta-se o valor às peculiaridades do caso com base nas suas circunstâncias (gravidade do fato em si, culpabilidade do agente, culpa concorrente da vítima, condição econômica das partes), procedendo-se à fixação definitiva da indenização, por meio de arbitramento equitativo pelo juiz”.[3]
O STF, em 2016, julgou Recurso Extraordinário n. 898060, relator ministro Luiz Fux, no qual se admitiu não haver óbice ao reconhecimento simultâneo da paternidade socioafetiva e da biológica, respeitando-se o interesse do filho. O acórdão pende de publicação.
4. Efemérides e publicações no Direito Civil
Vários acontecimentos relevantes para o Direito Civil ocorreram em 2016. Rodrigo Xavier Leonardo ascendeu ao cargo de professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Bruno Miragem, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi agraciado com o prêmio Jabuti (melhor obra jurídica). Os professores Antonio Carlos Morato e Eduardo Tomasevicius Filho, da USP, foram aprovados no concurso para livre-docente de Direito Civil e poderão ascender ao cargo de professor associado no Largo São Francisco.
A Rede de Direito Civil Contemporâneo avançou em seu processo de consolidação e de expansão, com diversos eventos, novos intercâmbios e convidados internacionais.
Em eventos promovidos pela Rede, os professores portugueses Paulo Mota Pinto, António Pinto Monteiro e Pedro Romano Martinez participaram de ciclos de conferências de Direito Privado Contemporâneo na USP e na UFSC. A ministra Sibylle Kessal-Wulf, do Tribunal Constitucional Federal alemão, proferiu conferências no Supremo Tribunal Federal, na USP e na UFPR. Chris Thomale, da Universidade de Heidelberg, participou de evento promovido pela UFBA, instituição que também ajudou a promover seminário em homenagem aos 100 anos de Orlando Gomes, organizado pela Associação Baiana de Defesa do Consumidor.
Novas universidades ingressaram este ano na Rede. A Universidade do Porto, sob a liderança de Luís Miguel Pestana de Vasconcelos e Rute Teixeira Pedro, além da Universidade Federal da Bahia, com Roxana Brasileiro Borges, Joseane Suzart, Rodrigo Moraes, Maurício Requião, Técio Espíndola, Antonio Lago e Emanuel Lins.
A Revista de Direito Civil Contemporâneo obteve o estrato A2, no sistema de classificação de periódicos Qualis, da Capes, o que representou uma grande conquista para a produção científica em Direito Privado no Brasil. A revista, em 2016, ampliou sua internacionalização com a publicação de artigos ou entrevistas de Reinhard Zimmermann, Stefan Grundmann, Antonio Pinto Monteiro, Dario Moura Vicente e Vernon Palmer.
Os professores Ignacio Poveda, Eduardo Tomasevicius Filho e Otavio Luiz Rodrigues Junior, da USP, participaram como representantes do Brasil em evento internacional promovido pelo Trinity College da Universidade de Cambridge, no qual apresentaram relatório sobre o estado da arte da responsabilidade civil, conjuntamente com delegações da Itália, Suécia, França, Reino Unido, Espanha, Países Baixos, África do Sul e Estados Unidos da América.
Na sequência de convênio com a Universidade de Lyon-3, com organização da professora titular Silmara Chinellato, a Universidade de São Paulo sediou o II Colóquio de Direito Comparado – Objetivação da Responsabilidade Civil: Perspectivas Franco-Brasileiras. O evento contou com a presença dos professores franceses Stéphanie Porchy-Simon, Olivier Gout e William Dross.
5. Conclusão
Aos leitores da coluna Direito Civil Atual, da Revista de Direito Civil Contemporâneo, aos que integram a Rede de Direito Civil Contemporâneo e aos que acompanham seus trabalhos, deseja-se um feliz 2017.
[1] STJ. REsp 1581505/SC, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 18/08/2016, DJe 28/09/2016.
[2] STJ. REsp 1281594/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 22/11/2016, DJe 28/11/2016.
[3] STJ. REsp 1473393/SP, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 04/10/2016, DJe 23/11/2016.
* Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo).