RESPONSABILIDADE CIVIL NO ROMPIMENTO DO CASAMENTO V: ACUSAÇÕES FALSAS E DESONROSAS EM DEMANDA JUDICIAL
Regina Beatriz Tavares da Silva
SÃO PAULO – Violações a deveres conjugais foram analisadas nos artigos anteriores, especialmente no que se refere ao deveres de respeito e de fidelidade, que acarretaram danos morais ao cônjuge lesado.
No último artigo analisei violações a deveres de cunho patrimonial que geraram danos materiais.
Quando um advogado é procurado por quem sofre as agruras de um casamento conflituoso, recebe queixas e acusações feitas pelo consulente contra o seu cônjuge, que precisam ser apuradas antes da propositura de uma ação de separação judicial litigiosa culposa.
Isto porque o sofrimento ocasionado por maus-tratos morais ou físicos pode acarretar exageros ou desvios nas informações prestadas pelo cliente ao advogado.
E, se tais exageros ou desvios passam a integrar uma petição inicial de uma ação de separação litigiosa, ou mesmo qualquer peça nesta ou em outra ação em que contendam as mesmas partes, ficará configurada uma acusação falsa ou infundada nos autos de uma demanda judicial, que, se for desonrosa, poderá resultar na condenação de quem a fez como cônjuge responsável pela dissolução da sociedade conjugal (Código civil, art. 1.572, caput), inclusive pela via da reconvenção (CPC, art. 315), e, também, em sua condenação no pagamento de uma indenização ao outro cônjuge pelos danos morais e materiais que lhe foram acarretados (Código Civil, art. 186), que vão além das penas da litigância de má-fé, as quais têm em vista o dano processual (Código de Processo Civil, arts. 16 a 18).
Por outro lado, se o consulente é o demandado ou réu em ação de separação judicial, o mesmo se aplica, de modo que poderá informar erroneamente o advogado sobre as razões de sua defesa, ficando sujeito às mesmas conseqüências de uma acusação falsa ou infundada e injuriosa em demanda judicial. Nesta hipótese, haverá fato novo, que resulta em jus superveniens, o que justificará sua alegação nos autos da ação de separação judicial, desde que se enquadre na causa de pedir da ação de separação judicial (CPC, arts. 397 e 462).
Isto porque o dever de respeito, oriundo do casamento (Código Civil de 2002, art. 1.566, V; Código Civil de 1916, art. 231, inciso III), perdura durante a separação de fato do casal, como analisei em trabalho de mestrado e em tese de doutorado que defendi na USP, o primeiro denominado Dever de assistência imaterial entre cônjuges, publicado pela Editora Forense Universitária, e a segunda intitulada Reparação civil na separação e no divórcio, publicada pela Editora Saraiva.
Portanto, mesmo que o cônjuge esteja separado de fato, ao fazer acusações falsas ou infundadas e desonrosas contra o outro cônjuge, em demanda judicial, desrespeita a honra de seu consorte, sujeitando-se às conseqüências deste ato ilícito.
Estas conseqüências são verificadas em vários julgados de nossos Tribunais, alguns deles citados em minha tese de doutorado na USP sobre a Reparação civil na separação e no divórcio, editada pela Saraiva (p. 78, nota 27, e p. 163/164).
Dentre tais julgados, destaca-se aquele proferido pela 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 4ª Câmara Civil, Relator Olavo Silveira, cuja Turma julgadora foi composta também pelo Desembargador Barbosa Pereira (Presidente e Revisor) e pelo Desembargador Barreto Fonseca, proferido em 09/03/1995, em que o marido foi condenado como cônjuge responsável pela dissolução da sociedade conjugal e também no pagamento de indenização à esposa, por tê-la acusado da prática de adultério em reconvenção interposta em ação de separação judicial, faltando com a verdade ao noticiar a presença de um “homem desconhecido” em sua casa, quando as provas demonstraram tratar-se de pessoa amiga da família e do próprio réu-reconvinte, que ali não se encontrava sozinho com a autora-reconvinda, mas, sim, acompanhado de outras pessoas (Reparação civil na separação e no divórcio, ob. Citada, p.163/164).
Noutro julgado, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, proferido pela 9ª Câmara Cível em regime de exceção, na Apelação nº 70001046937, em 28/11/2001, relatado pela Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, cuja turma julgadora foi composta também pela Desembargadora Mara Larsen Chechi (Revisora) e pela Desembargadora Rejane Maria Dias de Castro Bins (Presidente), verifica-se que as referidas acusações injuriosas, irrogadas em Juízo, sujeitam o agente ao pagamento de indenização ao ofendido, mesmo após prolongada separação de fato do casal.
No caso, o casal encontrava-se separado desde 1987, época em que a mulher encontrava-se grávida; desta gestação advieram filhos gêmeos, que foram registrados pelo marido em 1988. Dez anos depois, ou seja, em 1988, durante o processo de separação judicial, ainda não desvencilhado por elos patrimoniais, o marido promoveu ação de anulação de registro civil cumulada com exoneração de pensão alimentícia, em que alegou não ser pai dos filhos registrados em seu nome, afirmando que a esposa teria se envolvido sexual e emocionalmente com seu médico cardiologista durante o casamento.
Os filhos foram submetidos a exame de D.N.A., assim, como o autor e a ré naquela demanda, perícia esta que confirmou a paternidade do marido.
Foi, então, promovida ação com pedido de reparação de danos morais, pela ofendida contra o ofensor, com fundamento em acusação caluniosa de prática de adultério. O pedido de indenização por danos morais feito na demanda reparatória foi julgado improcedente em primeira instância, mas foi reformado em brilhante acórdão proferido em fase de recurso de apelação, que condenou o agente daquelas acusações falsas e ofensivas à honra da mulher no pagamento de indenização para reparar o dano moral que lhe causou, arbitrado em 100 salários mínimos, corrigidos desde a prática do ato ilícito pelo IGPM-M e acrescidos os juros legais.
Naquele mesmo v. julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi analisada a questão sob o enfoque dos ciúmes que podem obnubilar a mente do cônjuge e levá-lo, de forma inconsciente, a realizar uma acusação infundada. Assim, é citada a tragédia shakespeareana, em que Othelo, por ciúmes que turvaram sua consciência e os freios inibitórios do comportamento humano, envenenado por Iago a acreditando na traição de Desdêmona, vítima de provas forjadas e intrigas, sacrificou a inocente amada.
Se tal tragédia pudesse ser transposta, mutatis mutandi, para a questão sub judice, faltaria elemento essencial à responsabilidade civil: a imputabilidade, que é a consciência do ato praticado, forjada em três elementos fundamentais: inteligência, liberdade e vontade.
No entanto, pelas circunstâncias antes expostas, evidentemente, tinha o autor das ofensas plena consciência do ato praticado, estando presente a imputabilidade. Como deixou consignado aquele venerando acórdão, sua conduta sugeriu, a partir do comportamento do homem médio, “menos ciúme, angústia e anseio…e mais intenção de punir a ex-mulher, seja pelas desconfianças provocadas e suspeitas engendradas…seja pelo apático relacionamento do pai com os filhos…seja por qualquer outra intenção destrutiva…mas que, indubitavelmente, transbordam a conduta aceitável.”.
Consta daquele julgado citação de frase constante da obra de Antônio Rulli Júnior, intitulada Universalidade da Jurisdição, que sintetiza a razão da aplicação dos princípios da responsabilidade civil nas relações de família: “Não é possível resguardar a ordem social excluindo de apreciação do órgão judicante lesão a direito, porque a questão ficaria sem solução indefinidamente, gerando intranquilidade e levando à auto-tutela, pelas insatisfações e inconformismos que se criam, tendência natural do homem da ‘polis’”.
Em suma, verifica-se que se o cônjuge viola o dever de respeitar a honra do consorte, que vai além da reputação social (honra objetiva), alcançando a auto-estima que cada um guarda por si mesmo (honra subjetiva), pratica ato ilícito, observando-se que o sigilo de justiça existente em demandas que envolvem interesses de uma família, não tem o condão de evitar a ofensa à honra.
E recorde-se que o dano moral resulta de grave violação a um direito da personalidade, como a honra, surgindo do fato em si,cuja gravidade demonstra a existência desta espécie de dano, sem que seja necessário adentrar em indagações de ordem psíquica, como bem esclareceu o inesquecível Professor Carlos Alberto Bittar, na obra Reparação civil por danos morais, 3ª ed., Revista dos Tribunais, atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar, 1.999, p. 214 e seguintes.
Como visto nos artigos anteriores, a violação a dever, que fere um direito, e acarreta dano moral ou material configura ato ilícito, conforme dispõe o art. 186 do mesmo Código, segundo o qual “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”. Esta é a regra geral da responsabilidade civil, constante da parte geral do Código Civil, que é aplicável a todas as relações civis, incluindo aquelas de direito de família.
É este o embasamento legal da condenação do cônjuge que realiza acusações falsas e injuriosas em demanda judicial contra o consorte.
No próximo artigo analisarei aspectos processuais da aplicação dos princípios da responsabilidade civil às relações de família, referentes à possibilidade de cumulação, numa mesma demanda judicial, dos pedidos de separação judicial e reparação de danos.