O RETORNO DO ESTATUTO DESTRUIDOR DAS FAMÍLIAS III
O PLS Estatuto das Famílias, que pretende substituir o Código Civil na regulamentação do Direito de Família e está em vias de ser debatido no Senado em audiência pública, propõe que as denominadas relações paralelas, expressão enganosa porque suaviza seu conteúdo de relações extraconjugais ou mancebia, sejam alçadas ao patamar de entidades familiares.
Assim, consta do título das “Entidades Familiares”.
Art. 14. As pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção da família.
Parágrafo único: A pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais.
Assim, propõe que a amante ou o amante tenham direito à pensão alimentícia e possam, ainda, requerer reparação dos danos morais e materiais que o amásio ou a amásia lhe tenha causado, utilizando-se da expressão relacionamento familiar paralelo para tentar suavizar o conteúdo da proposta legislativa.
Quer o PLS Estatuto das Famílias institucionalizar em nosso país a poligamia. A consentida dos trisais, como tratei nos artigos anteriores desta série (disponíveis aqui e aqui), e também a não consentida, a poligamia dos amantes.
Estranhamente, para dizer o mínimo, o projeto de lei Estatuto das Famílias prevê em seu artigo 36 os deveres de lealdade e respeito como efeitos do casamento. Seria a lealdade simplesmente o dever da pessoa casada de contar ao seu cônjuge que o está traindo? O respeito estaria simplesmente nessa revelação do adultério ao cônjuge traído?
Diante da institucionalização da poligamia, pretendida por esse projeto de lei, são esses os entendimentos dos seus idealizadores.
O PLS Estatuto das Famílias contém outra proposição de que o duplo casamento seria nulo, ou seja, de que, diante da bigamia, o segundo casamento não valha (artigos 24 e 28, II). Mas, já que a bigamia – duplo casamento – é raríssima, essa vedação não é suficiente para evitar a poligamia que esse PLS pretende institucionalizar.
O que esse projeto de lei propõe é a atribuição de direitos de família à relação que concorre com o casamento e com a união estável, ou seja, à relação de adultério.
A mancebia, a relação extraconjugal, a manutenção de amante fora do casamento ou da união estável, é o que este PLS pretende legalizar.
Ora, tudo pela felicidade, individualista, egoísta, perversa, que passa como um trator sobre os anseios da sociedade e sobre os valores da família brasileira, que quer atender aos desejos de poucos, sem qualquer representatividade da maioria.
O tal descompasso temporal do Código Civil, apontado nas justificativas do projeto em debate no Senado, certamente não existe. Basta perguntar a qualquer brasileiro, independentemente de sua classe social ou intelectual, se considera justo ou adequado que um amante ou uma amante receba pensão alimentícia e indenização quando a relação de mancebia termina. A resposta será um solene não! Somente amantes responderiam que sim, por óbvio, diante de seus exclusivos interesses.
O Código Civil, embora tenha sido projetado inicialmente na década de 1970, continua atual na estipulação do dever de fidelidade e das sanções civis por seu descumprimento. Não há como atribuir licitude à infidelidade e direitos ao cúmplice do adultério.
O tal princípio da afetividade como norteador de todo o Direito de Família, proposto pelo Projeto de Lei em seu artigo 4º, IV, e o direito à busca da felicidade e ao bem-estar, constante de seu art. 4º, VIII, dão margem a essa pretendida institucionalização do adultério como gerador de direitos de família. O Direito de Família não pode se perder num mar de afetos, sob pena de deixar de cumprir sua verdadeira função, que é de organizar a vida em sociedade, ou seja, a vida em família.
A poligamia é marcada por oportunismo sexual e financeiro. Por isso equivale à monetarização do afeto.
Saliente-se que a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República Federativa do Brasil (Constituição Federal, artigo 1º, III) não é um conceito meramente individual, que cada um forja ao seu próprio talante.
O PLS Estatuto das Famílias chega ao cúmulo, nas suas justificativas, de argumentar que “A realidade social subjacente obriga a todos, principalmente a quem se dedica ao seu estudo, a pensar e repensar o ordenamento jurídico para que se aproxime dos anseios mais importantes das pessoas.”.
Desde quando é anseio social no Brasil que as relações conjugais ou de união estável admitam relações paralelas, ou seja, a mancebia? Vê-se, facilmente, que esse PL distorce o pensamento social e quer enfiar “goela abaixo” de nosso ordenamento legal a poligamia.
Note-se que no ordenamento jurídico atual a relação extraconjugal não é crime, ou seja, ilícito penal. O adultério não é mais tipificado como crime desde 2005, quando o Código Penal brasileiro foi modificado pela Lei nº 11.106. Essa revogação ocorrida em relação ao crime de adultério vai ao encontro dos princípios do Direito Penal.
Porém, a relação extraconjugal permaneceu, como deve permanecer, como ilícito civil, por configurar violação ao dever de fidelidade, que é consequência jurídica do casamento, nos termos do artigo 1.566, I, do Código Civil vigente.
O Direito Civil e o Direito Penal são ramos independentes do Direito. Nem tudo o que é ilícito civil, como é o caso do adultério, deve ser tipificado como ilícito penal.
Não são todos os fatos da vida real que devem receber proteção jurídica. Muito ao contrário, há fatos que não merecem essa proteção do Direito Civil, como é o caso das relações extraconjugais.
Mas, não para por aí, voltarei ao Estatuto (destruidor) das Famílias na próxima semana.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada
Publicação original: Estadão