A PRESIDENTE NACIONAL DA ADFAS É ENTREVISTADA PELA GAZETA DO POVO SOBRE CARTILHA DA FAMÍLIA QUE SERÁ EDITADA PELO MINISTÉRIO DE DIREITOS HUMANOS

Mesmo antes de ficar pronta, a cartilha que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos pretende lançar, com objetivo de fortalecer o casamento, foi questionada pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público (MP) junto ao Tribunal de Contas da União. Assim que a ministra Damares Alves anunciou a iniciativa, Furtado enviou à procuradoria-geral do Ministério um pedido de esclarecimento sobre o guia.
Segundo o subprocurador, sua preocupação é que o Estado pode estar “desviando de sua função” ou “impondo uma visão de mundo”. “Longe de mim querer contrapor a ministra Damares, mas eu defendo o livre-arbítrio. Cada um deve escolher o que é melhor para si e o Estado deve atender a todos, seja solteiro, casado ou divorciado. Querer impor uma visão que diz que algo é melhor do ponto de vista do casamento não me parece correto, muito menos pelo Estado”, argumentou Furtado. Ele está solicitando uma cópia da cartilha para avaliar o conteúdo e então decidir se cabe algum outro tipo de medida, mas não esclarece no que a lei poderia estar sendo infringida pelo Ministério e quais as medidas possíveis.
O pedido de Furtado foi com base nas palavras de Damares, já que a cartilha ainda não existe. O material deve ser lançado nas próximas semanas e não será destinado aos cidadãos, mas aos municípios, como um guia para elaboração de políticas públicas voltadas à família. Em resposta ao subprocurador, a ministra Damares publicou em suas redes sociais que o material não terá custo para o Estado – está sendo produzido pela equipe do Ministério e será digital – e está baseado no Código Civil e na Constituição Brasileira.
O curioso é que, nos governos anteriores, do PT, o MP ficou em silêncio em relação a publicações bastante questionáveis, tanto em relação ao conteúdo quanto ao preço pago por elas a ONGs terceirizadas.
Em 2011, por exemplo, o governo federal reeditou a Cartilha Anticoncepção de Emergência e pagou R$ 1.597.044,48 por uma tiragem de 100 mil exemplares. Para estimular que as mulheres utilizem a pílula do dia seguinte, o documento nega o caráter abortivo do uso da substância em algumas situações, com uma contradição científica: afirma, contrariando a ciência, que “fecundação” não é o mesmo que “concepção”. Para fundamentar sua tese, o texto cita diversas organizações abortistas, como a Planned Parenthood, e não apresenta argumentos discordantes de cautela oferecido por pesquisas médicas. Não houve pronunciamento do MP sobre esse material.
Já o livro O Sus e a Saúde Sexual e Reprodutiva de Adolescentes Jovens no Brasil, distribuído em 2013, que estimula os jovens a viveram a sexualidade o quanto antes, “sem medo, vergonha, culpa e falsas crenças”; teria um custo hoje, atualizado pela inflação do período, de R$ 20,28. Na tiragem feita de 5 mil exemplares, para chegar a todos os municípios, o gasto ao governo federal ficaria em R$ 101.400,00. Entre os outros materiais já editados pelo governo do PT, com o mesmo tom ideológico, estiveram o Manual de Adolescentes e Jovens para a Educação entre Pares. Saúde e Prevenção nas Escolas. Gêneros, que foi publicado em 2010 e defende que “masculino” e “feminino” são construções sociais, e o Manual Adolescentes e Jovens para a Educação entre Pares. Saúde e Prevenção nas Escolas. Sexualidade e Saúde Reprodutiva, do mesmo ano. Com uma tiragem de 2.300 exemplares e custo de R$ 11,26 o exemplar, o custo estatal chegaria hoje, também tendo em conta a inflação, a R$ 25.898,00 em cada manual.
Ao ser indagado em relação a publicações como estas, do motivo pelo qual não foram contestadas, o subprocurador Lucas Rocha Furtado disse preferir comentar apenas a cartilha atual.
O fortalecimento do casamento, da economia e contra a violência
Em entrevista à Gazeta do Povo, a secretária Nacional da Família, Angela Vidal Gandra Martins, explicou o que motivou a cartilha de fortalecimento do casamento, chamada de “Cartilha Políticas Públicas Familiares”, e também os pilares que a compõem. Segundo ela, além do embasamento jurídico, o guia reúne argumentos antropológicos, sociológicos e de direitos humanos, presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Angela também reforçou que o material não é baseado em fundamentos morais ou religiosos.
“Trabalhamos com dados científicos e estatísticas: a maioria dos brasileiros vive em núcleos familiares, sendo que as fragilidades nas relações causam inúmeros problemas sociais. Os vínculos conjugais geram consequências para os filhos, assim como para os avós e todas as gerações seguintes. Por isso, fortalecer a família não é um problema moral ou religioso, mas um problema público”, explica.
Angela também reafirmou que o guia será digital e não terá nenhum custo de produção e de impressão, tampouco de envio aos municípios. “Como não houve impressão, nem distribuição física, a Secretária não teve nenhum custo adicional na sua confecção. O custo dele ao Estado é zero”, reiterou.
Em relação à preocupação do subprocurador em “impor uma visão de casamento”, a secretária da Família reiterou que a intenção da cartilha não é atribuir uma valoração aos tipos de vínculos possíveis, mas é baseada nas estatísticas, dos vínculos vividos pela maioria da população.
“Quando essas relações são frágeis, elas representam um prejuízo não apenas à pessoa atingida, mas a toda a sociedade. Temos pedofilia, abusos, pornografia e outros problemas. Quanto gasto público vai para combater a violência doméstica, que muitas vezes é consequência disso? Nós queremos chegar antes e evitar que isso aconteça”, explica Angela.
Sobre o gasto público com a violência doméstica, um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou que quase um terço, ou seja, 30% das mulheres que estiveram em um relacionamento sofreram violência física e/ou sexual por parte de seu parceiro íntimo. No Brasil, 36,9% das mulheres que residem em áreas rurais e 28,9% das residentes em áreas urbanas confirmaram a estatística mundial. Ao fazer uma estimativa do custo dessa violência que acontece dentro das casas, a Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que em 2016 o prejuízo global da violência contra mulheres foi de US$ 1,5 trilhão, o equivalente a toda a economia anual canadense (ONU, 2016). No Brasil, esse custo representa R$ 146 bilhões, incluindo como despesas e assistência médicas e jurídica, medidas de proteção e gastos com processos legais, criação de políticas para recuperação psicológica da vítima e reabilitação do agressor, além de outros gastos indiretos, como a perda de produtividade das mulheres vítimas de violência.
Conforme a secretária da Família, pensando em todos esses problemas que acontecem nas famílias, a ideia é propor políticas públicas que sejam “a prevenção da prevenção. Gastamos em saúde e segurança pública, quando podemos resolver com informação e uma mudança cultural, que não tem custo nenhum”, comenta Ângela. Ela também explica que a ideia de elaborar um guia aos municípios, não diretamente às pessoas, partiu da preocupação de compreender os problemas específicos de cada região do país e personalizar as soluções. “Começamos a pensar que seria quase impossível propor políticas públicas em um país tão distinto, com soluções que se apliquem do Marajó ao Rio Grande do Sul. A cartilha às prefeituras surgiu como uma resposta a essa indagação, para que as soluções locais”, explica.
O que é a cartilha?
O conteúdo da cartilha está dividido em quatro partes, com fundamentos antropológicos, abordagem jurídica, direitos humanos e sociologia. Neste último, os gestores públicos vão refletir sobre os problemas locais. O objetivo é que a leitura motive a criação de políticas públicas municipais, conforme a realidade da cidade.
Segundo Angela, a ideia foi amadurecendo com outras iniciativas da Secretaria. “No ano passado, criamos o selo ‘empresa amiga da família’, que motiva ações para fortalecer os laços familiares nas empresas. Isso nos fez perceber que a sociedade civil quer participar e tem ideias muito criativas. Foi então que pensamos na possibilidade de replicar isso nas prefeituras”, comenta.
Angela conta que visitou o único município que tem uma secretaria municipal da família, Blumenau, em Santa Catarina. “Nessa visita me surpreendi com a quantidade de programas para toda a família: pais, mães, avós. Um material muito humano, de fortalecimento de vínculos, com resultados muito positivos. Foi então que surgiu a ideia do selo: ‘município amigo da família’, do qual a cartilha é uma parte”. Outra parte é um coaching, uma assessoria do Ministério para os municípios que queiram desenvolver essas políticas públicas. Angela explica que é uma proposta, mas que cada município pode escolher se irá aderir e de que forma.
“Não é algo obrigatório. Os municípios podem escolher se querem aderir e o que vão montar na sua cidade. Pode ser uma secretaria, mas também um setor ou qualquer outro tipo de estrutura. Não queremos engessar, mas deixar a criatividade dos municípios guiar esse trabalho”, explica.
Inspiração de outros países
Angela relaciona o projeto brasileiro ao de outros países, principalmente da Europa, que também têm problemas relacionados à família. “Lá o problema é que eles não têm condições de sustentar a aposentadoria sem a população jovem, então a preocupação é a demografia, embora isso também passe pela família. Aqui nosso foco é outro: resolver problemas através da família”.
A secretária ainda cita outra iniciativa da ONU, que reuniu diversos países para estudar projetos que foram aplicados e tiveram resultados positivos. “Quando falamos em fortalecer a família estamos falando de um investimento social e econômico, porque pessoas felizes, que têm um lar para onde voltar, vão ter mais foco, vão trabalhar melhor e isso também significa desenvolvimento econômico”, comenta Angela.
Apoio de especialistas
Apesar do questionamento do subprocurador, a menção a uma cartilha com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares agradou pesquisadores do tema. A presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares da Silva, doutora pela USP, acredita que a cartilha e a criação de políticas públicas para a família são importantes principalmente pela difusão de informações jurídicas e conceitos importantes.
“Boa parte dos problemas sociais advém da incompreensão de direitos e deveres dos pais, dos filhos e dos cônjuges. Precisamos voltar ao que a lei diz sobre a família. O direito brasileiro tem origem latina e o principal fundamento é a lei, que é muito mais que a jurisprudência e a doutrina, que são o pensamento de um tribunal. Esse tribunal nem sempre tem representado a lei”.
Segundo Regina, a legislação já existente tem qualidade e é essencial para uma sociedade sadia. “Todas essas leis existem são fundamentais. A função do direito é proteger as famílias, sob pena de gerar problemas aos cônjuges, aos filhos e para a própria sociedade. As pessoas precisam saber disso”, finaliza ela.
Fonte: Gazeta do Povo (14/08/2020)

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