Associação de Direito de Família e das Sucessões

MEMÓRIA DA PESSOA FALECIDA EM DEEPFAKE DE ELIS REGINA

Há outros casos julgados pelos Tribunais brasileiros sobre a memória da pessoa falecida, inclusive quando a sua imagem e a sua vida privada são violadas.

Por Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva [1], Presidente da ADFAS, publicado originalmente no Migalhas.

Muito se tem falado sobre a publicidade da Volkswagen com utilização da imagem e da voz da famosa e inesquecível cantora Elis Regina, por meio da inteligência artificial.

Chama-se a técnica de deepfake, que usa a inteligência artificial para trocar o rosto de pessoas em vídeos, sincronizar movimentos labiais, expressões e demais detalhes. Elis Regina aparece na propaganda e de maneira fake ela revive e canta a música “Como nossos Pais”.

Elis Regina aprovaria essa divulgação de sua imagem e voz para fins comerciais?

Conforme o Código Civil, o cônjuge sobrevivente e os herdeiros do falecido podem promover ação judicial para que cesse o comportamento lesivo a direito da personalidade e para que haja a condenação do ofensor no pagamento de uma indenização. Assim estabelecem os artigos 12 e 20, que conferem aos parentes – desde os filhos e pais até os primos – a legitimidade para promover essas ações em proteção da imagem de quem já faleceu.

Na publicidade em tela, parece evidente que a filha de Elis, Maria Rita, por estar na mesma publicidade, autorizou o uso da imagem e da voz da mãe. Portanto, numa primeira vista, nada a fazer, no caso, no âmbito do Direito Civil, a não ser que outro filho de Elis Regina impugnasse a utilização da imagem da mãe, mas, ao que consta todos concordaram com o uso da imagem da cantora. Aqui não trato dos aspectos éticos da publicidade e da propaganda que estão sendo debatidos pelo Conar.

Outro caso famoso foi o de Michael Jackson, que faleceu em 2009 e apareceu em holograma em 2014.

Então examinemos o que fazem algumas pessoas para impedir que seus herdeiros utilizem sua imagem e voz ou determinar algumas restrições que não atendem aos seus desejos ou vontades.

A atriz Whoopi Goldberg determinou em seu testamento que ninguém faça um holograma digital com sua imagem após sua morte. Robin Williams, falecido em 2014, deixou testamento em que descreve como a sua imagem pode ser utilizada em publicidade e filmes.

Há também notícias de que a cantora Madonna proibiu o uso de hologramas e inteligência artificial para que seus shows fossem assim explorados após a sua morte.

Essas restrições no Brasil podem ser realizadas por meio de testamento, que é o instrumento de disposições da vontade do testador que produzirão efeitos após a sua morte. Esse documento é muito conhecido popularmente para disposições sobre o patrimônio do testador, mas pode servir também para disposições de ordem pessoal, até mesmo aquelas que não têm finalidade econômica ou de lucros, como estabelece o Código Civil, em seu art. 1.857, em seu § 2º: São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.

O testamento pode ser público, que, em verdade, não é acessível, salvo após a morte do testador, sendo a expressão referente à sua forma, porque lavrado perante um Tabelião de Notas, e assinado por duas testemunhas, e particular, sendo escrito manualmente ou digitado, em que são exigidas 3 testemunhas no ato de sua realização.

Por fim, é preciso ter presente que o feixe de direitos que envolvem a pessoa após a sua morte pode ser chamado de memória da pessoa falecida, que é tudo aquilo que perdura após a morte, sendo a imagem a reprodução por fotografia ou vídeos dessa pessoa, a honra a sua reputação social e a vida privada os seus hábitos e relações íntimas que só dizem respeito a ela, ainda que seja uma celebridade ou pessoa famosa.

Antes do Código Civil de 2002 entrar em vigor, quando foi estabelecida regra expressa e protetiva da memória da pessoa falecida, na década de 1990 advoguei em defesa da reputação de uma senhora, cuja honra, após a sua morte, foi atacada por uma mulher que queria vingança porque não se conformava de não ter recebido a mesma afeição de um parceiro que aquela outra mulher recebera até o seu falecimento.

A autora do ato ilícito foi condenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a pagar 150 salários-mínimos (R$ 198.000,00) à filha da falecida. Em artigo publicado no livro Responsabilidade Civil e sua Repercussão nos Tribunais, da Série GVlaw, escrevi sobre a matéria de direito, em análise do caso, em que a filha da falecida reagiu e promoveu a ação própria em defesa da memória da mãe. Aqui se tratou de defesa da memória da pessoa falecida no que se refere à sua honra.

Há outros casos julgados pelos Tribunais brasileiros sobre a memória da pessoa falecida, inclusive quando a sua imagem e a sua vida privada são violadas.

[1] Presidente da ADFAS e sócia-fundadora do escritório RBTSSA. Pós-Doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL. Doutora e Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP.

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