FILIAÇÃO 1 e FILIAÇÃO 2

Este artigo é de autoria de Dra. Verônica A. da Motta Cezar-Ferreira, Diretora Nacional de Relações Interdisciplinares da ADFAS.

Em 29 de setembro de 2022, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão emitiu Nota Pública, propondo que órgãos públicos adequem seus formulários para que não constem nomes de pai e/ou mãe, mas que esses
sejam representados por Filiação 1 e Filiação 2.

A justificativa é de que a sociedade mudou, acolhendo os homossexuais e transsexuais como cidadãos em condição de igualdade com os heterossexuais, que tal procedimento evitaria retrocessos procedimentais e
que o indivíduo não deve provar o que é.

Em primeiro lugar, é de se considerar que cidadãos são cidadãos, independentemente de sua condição sexual.
A legislação brasileira se transformou e, hoje, tal qual qualquer cidadão capaz, o homossexual pode constituir família, desde que dentro das normas legais.

Atualmente, diferentes configurações de família coexistem e podem ser funcionais e amorosas, ou não, como quaisquer outras.

Famílias são famílias.

O fato de os filhos serem adotados ou frutos de inseminação artificial não os torna menos filhos, nem seus pais (pai e mãe, pai e pai, mãe e mãe) menos genitores. O importante é que sejam amados e cuidados. O art. 227 da Constituição Federal o explicita.

De outro lado, avaliando-se famílias homossexuais bem constituídas, vivendo em ambiente afetivo, solidário e coparticipativo, observa-se que nenhuma diferença operacional existe em relação à família heterossexual:
algumas coabitam por décadas em ambiente amoroso; outras digladiam-se em infindáveis disputas judiciais.

Em ambas as famílias, hetero e homossexuais, há questões ligadas à sobrevivência, ao relacionamento do par conjugal, do par parental, acertos e desacertos.

Não há que se idealizar a família homossexual como perfeita, diferente ou acima das demais. Ela também apresenta altos e baixos, entendimentos e desentendimentos, e vive momentos de amorosidade e de desgaste.

Os filhos dessas famílias cada vez mais se encontram adaptados à própria situação: as escolas os incluem e os amigos os aceitam, aliás, cada vez menos questionando ou percebendo diferenças. Chamam suas mães de “tia” e “tia”, e seus pais de “tio” e “tio”. E as crianças chamam seus pais de “Papai Fulano” e “Papai Sicrano” ou “Mamãe Fulana” e “Mamãe Sicrana”.

Por que, então, haveria necessidade de formulários especiais para registro de nascimento ou outro? Que constrangimentos se pode esperar em uma sociedade na qual se admite, inclusive, o nome social? Em que a atual forma de identificação pode afetar o exercício do poder familiar? Pais (pai e mãe, pai e pai, mãe e mãe) exercem o poder familiar em conformidade com o art. 1.634 do Código Civil.

As crianças têm o direito de se sentir filhas e filhos de alguém, e se orgulham disso. Já não se observam casos frequentes de rejeição ou retaliações.

Casos específicos devem ser tratados como tais, e, para casos extremos, há o Judiciário para intermediar ou determinar a solução a ser executada.

Do pondo de vista jurídico, parece que nada justifica a pretendida alteração. E do ponto de vista psicológico, as pessoas têm o direito de ver escrito em sua Certidão de Nascimento que têm pais (pai e mãe ou pai e pai ou
mãe e mãe). Os filhos se orgulham disso e os genitores deveriam se orgulhar, também.

Quem anseia ser tratado por números? Número 1 e Número 2?

Pessoas e famílias dessa configuração que se sintam aviltadas ou ameaçadas podem procurar a proteção judicial, mas a escuta de casais com famílias bem estruturadas não denota que essa proposta de modificação formal seja necessária ou suficiente para evitar os enfrentamentos que a vida lhes oferecer.

A vida traz constante necessidade de enfrentamentos. Conflitos são parte da existência humana, sejam os vivenciais, sejam os intrapsíquicos, de modo que enfrentá-los é parte da condição humana.

O fato de se indicar nos documentos quem são os genitores assevera a identidade pessoal e não fere os Direitos Humanos. Todo cidadão tem o direito de conhecer e preservar sua identidade. Além do que, é elemento fundamental do ponto de vista psicoemocional.

A tentativa de ocultar os elementos básicos de identificação dos filhos pode levantar dúvidas quanto à convicção de aceitação da própria condição por aqueles que preenchem os formulários.

Uma proposta razoável, do ponto de vista de políticas públicas, parece ser que se criem três formulários, um para pai e mãe, um para pai e pai, e um para mãe e mãe. Assim, as pessoas poderão preencher o que melhor atenda sua própria condição familiar.

As pessoas que se sintam incluídas em determinada condição devem orgulhar-se disso e não esperar que o mundo mude para que elas se sintam bem.

Cabe à sociedade aceitar o outro como é e pode ser, e respeitá-lo

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