COMPANHEIRO NÃO É HERDEIRO NECESSÁRIO, ESCLARECE A PRESIDENTE DA ADFAS

Por Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS, originalmente publicado no Conjur.

Há quem continue a insistir na ideia de que o Supremo Tribunal Federal (STF), na tese de Repercussão Geral firmada no julgamento dos seguintes recursos: RE 878.69/MG e no RE 646.721/RS, ocorrido em 10 de maio de 2017, teria classificado o companheiro como herdeiro necessário, ou seja, como se estivesse inserido entre os indicados no artigo 1.845 do Código Civil.

Essa ideia pretende basear-se no afeto, em que toda forma de amor vale a pena, em mensagens poéticas que se afastam do principal objetivo do Direito que é a organização da sociedade, com segurança jurídica.

Afinal, embora o casamento e a união estável sejam institutos que formam entidades familiares, na conformidade do artigo 226 da Constituição Federal, cada um deles tem uma forma de constituição e de dissolução. O casamento é um ato solene, repleto de formalidades, e a união estável é uma relação meramente fática, com requisitos frouxos, embora ambos tenham efeitos fortes em nosso Direito. Aliás, o Brasil é um país que se enfronha em ineditismos assustadores, somente aqui uma relação que não tem formalidades produz efeitos similares a outra relação que é solene (“Tratado da União de Fato”, coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia e Alicia Garcia de Solavagione, São Paulo: Almedina, 2021).

Somente no Brasil se pretende retirar a liberdade de escolha de um casal por uma relação forte em solenidade e em efeitos ou por um relacionamento fático e com consequências adequadas à sua natureza. Somente no Brasil existe a ideia de que o “vale tudo” do afeto pode se sobrepor à lógica racional do Direito. Somente aqui no Brasil se propaga a ideia do afeto como preponderante numa relação jurídica e se pretende impedir que as pessoas se unam pelo afeto, sem interesses econômicos. Somente aqui se defende o afeto e a busca da felicidade, e se diz: permaneça sozinho quem não quer herdeiro necessário.

Não há como retirar a liberdade testamentária de quem escolhe viver em união estável, por sinal, essa escolha é do casal que não quis casar!

Vejamos, então, o que efetivamente decidiu o STF.

A tese de repercussão geral foi assim firmada:

“No sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1829 do Código Civil.”

Portanto, o STF considerou inconstitucional o que o Código Civil dispunha sobre a ordem de vocação hereditária na união estável (artigo 1.790) e determinou a aplicação do regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil, ou seja, a ordem de vocação hereditária ali prevista. Observe-se que o único dispositivo citado pelo STF na referida tese de repercussão geral foi o artigo 1.829 do Código Civil. Nenhuma referência foi feita à herança necessária ou à aplicação do art. 1.845 do Código Civil nessa tese.

Após interposição de embargos pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) e pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), em que se debatia a aplicação ou não do artigo 1.845 do Código Civil, defendendo a ADFAS a inaplicabilidade e o IBDFAM a aplicabilidade deste dispositivo à união estável, foi proferida a seguinte decisão pelo STF, que reforçou a aplicação apenas do artigo 1.829 desse diploma legal:

“A repercussão geral reconhecida diz respeito apenas à aplicabilidade do artigo 1.829 do Código Civil às uniões estáveis. Não há omissão a respeito da aplicabilidade de outros dispositivos a tais casos.”

A tese é clara: apenas se aplica o artigo 1.829 do Código Civil à união estável, a ordem de vocação hereditária e não outras normas sucessórias do casamento. Afinal, o advérbio apenas tem o significado de somente, unicamente, exclusivamente. Portanto, o artigo 1.845 do Código Civil não se aplica à união estável. O companheiro sobrevivente não é herdeiro necessário, não tem direito a legítima ou a reserva de 50% do patrimônio do companheiro falecido.

No entanto, após a tese de repercussão geral firmada pelo STF, foi proferida decisão monocrática pelo Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, em que foi considerado que a união estável gera direito à legítima, sendo a companheira herdeira necessária, em caso no qual o falecido deixou testamento, atribuindo aos seus irmãos as suas participações societárias, tendo sido requerido no recurso especial que fosse afastada “a companheira da qualidade de herdeira necessária, mantendo-se as disposições testamentárias na íntegra” (REsp 1.982.343-SC, j. em 09.02.2022). Segue a ementa da referida decisão monocrática:

“DIREITO DAS SUCESSÕES. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. HERDEIRA NECESSÁRIA. AUSÊNCIA DE DESCENDENTES OU ASCENDENTES. DISPOSIÇÃO DE ÚLTIMA VONTADE.
1. A Segunda Seção pacificou o entendimento segundo o qual ‘o cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (artigo 1.845 do Código Civil)”‘(REsp 1382170/SP, relator ministro MOURA RIBEIRO, relator p/ Acórdão ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2015, DJe 26/05/2015).
2. A diferenciação entre os regimes sucessórios do casamento e da união estável promovida pelo artigo 1.790 do Código Civil de 2002 é inconstitucional.
3. ‘Na falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ressalvada disposição de última vontade’ (REsp 1357117/MG, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 26/03/2018).
4. No tocante ao alcance do testamento, trata-se de tema que, por ora, nem sequer foi objeto de apreciação pelas instâncias ordinárias, o que impede o conhecimento do apelo nobre neste particular.
5. Recurso especial de fls. 382-416 conhecido em parte e, nessa extensão, não provido.”

A decisão monocrática acima referida foi proferida em recurso especial interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJ-SC) assim ementado:

“Agravo de instrumento. Ação de inventário. Decisão agravada que reconheceu a companheira do falecido como herdeira necessária, meeira e legatária. Insurgência de dois legatários. Pretensão de afastar a condição de herdeira necessária da agravada. Impossibilidade. Falecido que não deixou filhos ou ascendentes. Companheira que figura como única herdeira legítima. Sucessão regida pela legislação vigente à época do óbito. Código civil de 2002 interpretado à luz do entendimento sedimentado pelo supremo tribunal federal, que equipara o companheiro à figura do cônjuge para fins sucessórios, inclusive como herdeira necessária. Pleito de exclusão do direito à meação. Possibilidade. Agravada que já contava com mais de 50 anos à época do início da convivência. Regime de bens estabelecido pelo código civil de 1916. Separação obrigatória de bens (artigo 256, parágrafo único, II). Inexistência de presunção de esforço comum. Condição de meeira afastada. Testamento público. Legados que não podem ser reduzidos enquanto não houver a certeza sobre a proporção da reserva legal. Existência de outros bens no inventário. Necessidade de restabelecer as disposições testamentárias até que se apure o total da legítima. Decisão agravada reformada em parte. Recurso conhecido e parcialmente provido.”

Por sinal, data venia, foi simplório o raciocínio do TJ-SC, pelo qual “… embora não tenha sido explicitamente incluída no rol do artigo 1.845 do Código Civil, a figura do companheiro já é considerada como herdeiro necessário, em atendimento a equiparação ao cônjuge para fins sucessórios”.

Afinal, a tese de repercussão geral tem de ser seguida nos seus imites, sem ampliações descabidas, sob pena de gravoso ativismo judicial, que gera imensa insegurança jurídica.

E os limites estão acima demonstrados: aplica-se o regime ou a ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do Código ao companheiro sobrevivente, apenas este dispositivo se aplica.

Portanto, não se aplica aos companheiros, na conformidade da tese de repercussão geral do STF, o artigo 1.845 do Código Civil.

Em conclusão, o companheiro pode ter sua herança vocacional diminuída ou até mesmo excluída por meio de testamento.

Note-se que não há entendimento dominante sobre a matéria da herança necessária do companheiro no Superior Tribunal de Justiça. Aliás, ao que se sabe, nem mesmo entendimento do STJ há em acórdão que tenha julgado o direito sucessório do companheiro em caso de existência de testamento. Tanto é assim que os acórdãos citados na referida decisão monocrática proferida no REsp 1.982.343-SC trataram da aplicação do regramento do artigo 1.829 do Código Civil à herança decorrente de união estável, não servindo de paradigmas ao entendimento de que o companheiro é herdeiro necessário (AgInt nos EDcl nos EDcl nos EDcl no REsp 1318249/GO, relator ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 30/09/2019 e REsp 1357117/MG, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 26/03/2018). Em ambos os casos não foi realizada disposição de última vontade ou testamento. Afinal, quando a matéria não é objeto do caso sub judice não há como entender que foi julgada pela Corte.

Confiram-se as ementas dos acórdãos citados na referida decisão monocrática proferida no REsp 1.982.343-SC:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL. FILHOS COMUNS E EXCLUSIVOS. BEM ADQUIRIDO ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. REGIMES JURÍDICOS DIFERENTES. ARTIGO 1790,
INCISOS I E II, DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. EQUIPARAÇÃO. CF/1988. NOVA FASE DO DIREITO DE FAMÍLIA. VARIEDADE DE TIPOS INTERPESSOAIS DE CONSTITUIÇÃO DE FAMÍLIA. ART. 1829, INCISO I, DO CC/2002. INCIDÊNCIA AO CASAMENTO E À UNIÃO ESTÁVEL. MARCO TEMPORAL. SENTENÇA COM TRÂNSITO EM JULGADO. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS. SÚM 7/STJ. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. NÃO OCORRÊNCIA.
1. A diferenciação entre os regimes sucessórios do casamento e da união estável promovida pelo artigo 1.790 do Código Civil de 2002 é inconstitucional. Decisão proferida pelo Plenário do STF, em julgamento havido em 10/5/2017, nos RE 878.694/MG e RE 46.721/RS.
2. Considerando-se que não há espaço legítimo para o estabelecimento de regimes sucessórios distintos entre cônjuges e companheiros, a lacuna criada com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002 deve ser preenchida com a aplicação do regramento previsto no artigo 1.829 do CC/2002. Logo, tanto a sucessão de cônjuges como a sucessão de companheiros devem seguir, a partir da decisão desta Corte, o regime atualmente traçado no artigo 1.829 do CC/2002 (RE 878.694/MG, relator ministro Luis Roberto Barroso).
3. Na hipótese, há peculiaridade aventada por um dos filhos, qual seja, a existência de um pacto antenupcial — em que se estipulou o regime da separação total de bens — que era voltado ao futuro casamento dos companheiros, mas que acabou por não se concretizar. Assim, a partir da celebração do pacto antenupcial, em 4 de março de 1997 (fl. 910), a união estável deverá ser regida pelo regime da separação convencional de bens. Precedente: REsp 1483863/SP. Apesar disso, continuará havendo, para fins sucessórios, a incidência do 1829, I, do CC.
4. Deveras, a Segunda Seção do STJ pacificou o entendimento de que ‘o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de separação convencional de bens ostenta a condição de herdeiro necessário e concorre com os descendentes do falecido, a teor do que dispõe o art. 1.829, I, do CC/2002, e de que a exceção recai somente na hipótese de separação legal de bens fundada no artigo 1.641 do CC/2002’.
5. É firme a jurisprudência do STJ, no sentido de que “o princípio da identidade física do juiz não possui caráter absoluto, podendo ser mitigado em situações de afastamento legal do magistrado e desde que não implique prejuízo às partes” (REsp 1476019/PR, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 06/02/2018, DJe 15/02/2018), bem como que ‘sua eventual violação acarreta tão somente nulidade relativa, exigindo-se a comprovação oportuna do prejuízo da parte’ (AgRg no REsp 1489356/RS, relator ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 14/11/2017, DJe 22/11/2017).
6. Recurso especial parcialmente provido”.
(AgInt nos EDcl nos EDcl nos EDcl no REsp 1318249/GO, relator ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 30/09/2019).

“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. UNIÃO ESTÁVEL. ARTIGO 1.790 DO CC/2002. INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 1.829 DO CC/2002. APLICABILIDADE. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. PARTILHA. COMPANHEIRO. EXCLUSIVIDADE. COLATERAIS. AFASTAMENTO. ARTIGOS 1.838 E 1.839 DO CC/2002. INCIDÊNCIA.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime do artigo 1.829 do CC/2002, conforme tese estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento sob o rito da repercussão geral (Recursos Extraordinários nºs 646.721 e 878.694).
3. Na falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ressalvada disposição de última vontade.
4. Os parentes colaterais, tais como irmãos, tios e sobrinhos, são herdeiros de quarta e última classe na ordem de vocação hereditária, herdando apenas na ausência de descendentes, ascendentes e cônjuge ou companheiro, em virtude da ordem legal de vocação hereditária.
5. Recurso especial não provido”.
(REsp 1357117/MG, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 26/03/2018).

Tampouco poderia servir de paradigma o entendimento do STJ de que o cônjuge (e não o companheiro) é herdeiro necessário, exceto nos regimes da separação obrigatória de bens e da comunhão universal, que foi firmado pela Segunda Seção do STJ (REsp 1382170/SP, relator ministro MOURA RIBEIRO, Rel. p/ Acórdão ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/04/2015, DJe 26/05/2015).

Foram interpostos embargos de declaração contra a decisão monocrática examinada neste texto, que ainda não foram julgados pelo STJ (EDcl no REsp 1.982.343/SC). Além disto, a matéria deverá ser apreciada pelo STF, em razão da interposição de agravo em recurso extraordinário.

Esperemos que a água mole da argumentação dos que insistem na equivocada ideia de que o companheiro tem direito à herança não consiga furar a pedra angular do Direito: a verdade!


Publicado em 15 de agosto de 2022.

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