Direitos patrimoniais: caso de morte x caso de divórcio
Neste artigo explicarei como o patrimônio é partilhado em caso de divórcio e em caso de morte de um dos cônjuges. Portanto, tratarei exclusivamente do casamento civil no ordenamento legal vigente, mostrando como é ampliado o direito ao patrimônio quando o casamento se dissolve pela morte, em desrespeito à autonomia da vontade na escolha do regime de bens do casamento.
O regime legal, ou seja, aquele que independe de escritura pública ou de pacto antenupcial, quando as pessoas se casam, é o da comunhão parcial de bens. Nesse regime, segundo o Código Civil, são bens comuns aos dois cônjuges tudo aquilo que se adquire de maneira onerosa, ou seja, todos os bens que são comprados por um deles com recursos adquiridos durante o casamento. Desse modo mesmo estando, por exemplo, o veículo ou a aplicação financeira, ou mesmo o apartamento, em nome de somente um dos cônjuges, como seu proprietário ou titular, esse bem se comunica ao outro, por outras palavras, é também do outro cônjuge, em partes iguais. No entanto, todos os bens adquiridos antes do casamento são exclusivos do cônjuge que os adquiriu, seja onerosamente (por compra), seja gratuitamente (por doação ou herança); do mesmo modo que os bens adquiridos gratuitamente durante o casamento (por doação ou herança) também são exclusivos do cônjuge que os obteve.
Mas, as partes podem celebrar pacto antenupcial por escritura pública em Tabelionato de Notas para, antes do casamento, escolher outro regime, diferente daquele acima referido. Por exemplo, a escolha pode ser a do regime da separação absoluta de bens. Neste caso, a escolha dos noivos é a exclusividade de cada um deles sobre todos os bens adquiridos anterior e posteriormente ao casamento.
Em caso de divórcio, se o regime for o da comunhão parcial, serão partilhados somente os bens adquiridos onerosamente durante o casamento, ou seja, aqueles que foram adquiridos com recursos advindos no período do casamento. No entanto, se a dissolução do casamento ocorrer pela morte de um dos cônjuges, o cônjuge sobrevivente, além da meação sobre esses bens, direito que decorre do regime da comunhão parcial, terá direito, também, à herança do falecido, ou seja, a uma parte daqueles bens que eram exclusivos do cônjuge que morreu.
Em caso de divórcio, se o regime for o da separação total de bens nada será partilhado entre os cônjuges.
Porém, segundo o Código Civil brasileiro, vigente desde janeiro de 2003, em caso de morte de um dos cônjuges, o sobrevivente tem direito à herança sobre os bens exclusivos do falecido. Por outras palavras, é ampliado o direito do cônjuge sobrevivente ao patrimônio do outro cônjuge.
Esse direito à herança garante ao cônjuge sobrevivente, o direito inatingível a uma parte dos bens exclusivos do falecido.
Em outras palavras, se a dissolução do casamento ocorrer pelo divórcio, serão aplicadas estritamente as regras do regime de bens. Por outro lado, se a dissolução do casamento ocorrer pela morte de um dos cônjuges, o cônjuge sobrevivente, terá direito à herança do falecido, ou seja, a uma parte de todos os bens que eram exclusivos do cônjuge que morreu.
Esse direito à herança do cônjuge sobrevivente chega ao ponto de ser havido pelo Código Civil como um direito inatingível, chamado direito à “legítima” ou à “herança necessária”.
Dou um exemplo sobre casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial de bens. Um homem, que tem um filho de anterior casamento, casa-se novamente com outra mulher, casamento este do qual não nascem filhos. Seu patrimônio é constituído por um apartamento de moradia (R$ 500.000,00), outro apartamento para locação (R$ 500.000,00), dois veículos (cada um no valor de R$ 100.000,00) e uma aplicação financeira (R$ 200.000,00). Leve-se em conta, ainda, que os dois apartamentos eram de propriedade exclusiva do marido, porque adquiridos antes do casamento, sendo patrimônio da comunhão de bens os dois veículos e a aplicação financeira. Esse homem morre durante esse segundo relacionamento. A mulher, cônjuge sobrevivente, terá direito à meação, em razão do regime de bens da comunhão parcial, a um dos veículos (R$ 100.000,00) e à metade da aplicação financeira (R$ 100.000,00). Essa mesma mulher também terá direito à herança sobre os bens exclusivos do marido falecido, de modo que herdará uma parte ideal correspondente à propriedade da metade do apartamento de moradia e da metade do apartamento destinado à locação.
Agora, passo a dar o mesmo exemplo de composição familiar, mas com o casamento celebrado sob o regime da separação absoluta de bens. Aquele mesmo homem, com um filho de anterior casamento e que se casa, novamente, com outra mulher, não havendo filhos deste segundo casamento, quando morrer, terá sua herança composta da seguinte forma. A mulher, cônjuge sobrevivente, terá o mesmo direito do filho à herança, ou seja, se o patrimônio for constituído por um apartamento de moradia (R$ 500.000,00); outro apartamento para locação (R$ 500.000,00), dois veículos (cada um no valor de R$ 100.000,00) e uma aplicação financeira (R$ 200.000,00), a mulher terá direito à parte ideal correspondente a 50% de todos esses bens, cabendo os outros 50% ao filho do falecido.
Portanto, tudo muda, em termos de direito ao patrimônio, se a dissolução do casamento ocorrer pelo divórcio ou pela morte.
Em suma, a autonomia da vontade que vigora na escolha de um regime de bens, escolha essa sempre realizada de comum acordo pelos nubentes, foi quebrada pelo Código Civil. Por isso, essa mudança não foi bem acolhida pela sociedade, porque retira das pessoas o direito à livre escolha do regime de bens e de seus efeitos. No entanto, mesmo com essa rejeição social em relação a essas regras sucessórias do casamento, as normas legais sobre a herança e o patrimônio que será partilhado após a morte de um dos cônjuges ainda vigoram.
Para diminuir o impacto do Código Civil sobre a autonomia da vontade, pode-se realizar um planejamento sucessório antes da morte do cônjuge. Uma das formas de planejamento sucessório é a celebração de testamento, em que o cônjuge e pai deixa a cota disponível, ou seja, 50% de seu patrimônio, para o filho.
Assim, se no exemplo antes apresentado, o regime de bens escolhido foi o da separação total de bens e for realizado testamento, o testador pode estabelecer que o apartamento de moradia (R$ 500.000,00), em que habitava o casal, um dos veículos (R$ 100.000,00) e metade da aplicação financeira (R$ 100.000,00) sejam destinados ao cônjuge sobrevivente e o apartamento para locação (R$ 500.000,00), o outro veículo (R$ 100.000,00) e a outra metade da aplicação financeira (R$ 100.000,00) sejam destinados ao filho.
Assim, como foi esclarecido neste artigo, a tão almejada autonomia da vontade já foi, indevidamente, retirada pelo legislador do Código Civil.
Essa violação ao direito que todos deveriam ter na escolha da destinação de seu patrimônio deveu-se aos legisladores da fase inicial do processo legislativo de aprovação do Código Civil em vigor. Observo que na última fase desse processo, da qual participei como integrante da equipe de revisão do projeto de lei de Código Civil, ocorrida na Câmara dos Deputados, a opção foi por não modificarmos artigos, como os da herança da pessoa casada, que levassem o projeto novamente ao Senado. Essa opção levou em consideração o eterno “ping pong” em que poderia cair esse projeto, em razão do processo legislativo bicameral, pelo qual uma vez alterados artigos fora dos limites regimentais por uma das casas do Congresso Nacional, esse mesmo projeto deve ser remetido à outra Casa do Congresso Nacional.
Imaginemos se essa autonomia da vontade, em caso de morte de um dos consortes, vier a ser violada também pelo Supremo Tribunal Federal em que se debate, por meio de recurso extraordinário de repercussão geral, a equiparação dos direitos sucessórios oriundos da união estável aos do casamento.
As pessoas já têm a autonomia da vontade limitada e, portanto, violada, ao escolherem o casamento para formar suas famílias. As pessoas também perderão a autonomia da vontade se escolherem a união estável para formar família.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.