COVID-19 FAZ CRESCER CONSULTAS SOBRE SUCESSÃO ENTRE GESTORES E ADVOGADOS

Propagação da pandemia do novo coronavírus no Brasil gera onda de preocupação de clientes com questões como testamento, herança e legado social.

A propagação no Brasil do novo coronavírus e o aumento de mortes por covid-19, em especial entre pessoas mais velhas, fez crescer as consultas a gestores de patrimônio e advogados por parte de clientes preocupados com a própria sucessão.
É um assunto delicado. Mas segundo profissionais ouvidos pelo Valor Investe, desde meados de março tem havido mais procura por indivíduos e famílias para começar ou adiantar doações, testamentos e até filantropia, ou para tirar dúvidas sobre como amenizar uma eventual ausência
“Essa doença realmente tem botado muita gente para pensar”, relata a advogada tributarista Ana Cláudia Utumi. Contribui para o senso de urgência, ela diz, o fato de que a maioria se prepara pouco: “A maior parte das famílias brasileiras ainda deixa para a última hora. Aquela coisa de a pessoa dizer ‘se eu morrer’, quando o certo é ‘quando eu morrer’. E tem a ausência por incapacidade, cada vez mais comum na terceira idade”.
“O atual momento sem dúvidas trouxe reflexões”, reforça Luciana Bragança, chefe de planejamento patrimonial do Santander Private Banking. Segundo ela, aumentou a procura da clientela pré-existente sobre se permaneciam adequados arranjos já debatidos em itens como regime de casamento e aplicações financeiras.
Também cresceram no último mês as consultas ligadas à vontade de fazer doações ou investimentos de impacto na área de saúde, ela diz. E, após à pandemia, os doadores estão mais preocupados em garantir a eficiência da solidariedade. “Uma carteira com olhar social precisa ter gatilhos de liquidez para que quando haja necessidade de um aporte, o recurso esteja, de fato, disponível.”
Os profissionais também dizem ter recebido dúvidas sobre a chamada sucessão em vida, mediante doações de bens – incluindo participações em empresas – aos herdeiros, ou a não herdeiros, ou à filantropia. Em alguns casos, é possível manter o direito ao uso, o chamado usufruto.
“O ser humano é complexo, pode precisar de alavancas para endereçar questões que, por vezes, são discutidas ao longo de uma vida”, comenta Rodrigo Sgavioli, planejador CFP pela Planejar que também relata mais procuras desde março.
A pandemia, ele diz, despertou a ideia da proximidade da morte – “todos passam a ter uma percepção mais clara da finitude” –, mas também um anseio por evitar perdas.
“Em fevereiro, terminei o plano de ação de um planejamento sucessório. A família vinha postergando as decisões, mesmo com o patriarca em idade avançada. Mas foi impressionante: bastou uma reportagem sobre possíveis aumentos de tributos para me ligarem, aflitos: ‘E se fizermos tudo agora?’”.

Na visão dele, “não ser executor de vontades irracionais” é o papel do profissional neste momento. “Um pressuposto das finanças comportamentais é nunca tomar decisões muito triste ou muito feliz, por impulso. É preciso ter tranquilidade e diferenciar o que é risco real do que é desconforto por estar enclausurado em casa com pensamentos ruins”, diz.

Ele critica posturas em direção oposta. “Um grande banco soltou na semana passada um comunicado em tom alarmista sobre a possibilidade de criação do Imposto sobre Grandes Fortunas. Mas é algo que está previsto desde a Constituição, há sete projetos de lei parados, não se sabe se vão avançar. Criar insegurança é tudo o que não se deveria fazer.”

Dúvidas recorrentes: dossiê, doações, senhas

Maria Amélia Colaço Alves Araújo, sócia da área de planejamento patrimonial, família e sucessões do WZ Advogados, também afirma que tem recebido mais contatos. As preocupações mais frequentes, ela conta, são com os mais vulneráveis, como filhos ou pais idosos.

“Quem vai cuidar deles e como vai provê-los. Que a família possa enfrentar o luto sem entraves burocráticos. E também manifestam preocupação com a condução de empresas familiares em caso de processos na Justiça”, ela explica.

Para quem quer se precaver, a advogada recomenda manter um arquivo com originais ou cópias de documentos, certidões de casamento e nascimento, declaração de imposto de renda, procurações, escrituras, testamentos, seguros e contatos, e avisar os familiares. E recomendação comum entre os especialistas ouvidos foi reservar recursos para cobrir gastos enquanto não for realizada a divisão da herança. É melhor do que dividir senhas, o que costuma gerar brigas.

Luciana, do Santander, realça a importância de antever um fluxo de caixa: “É comum que as famílias organizem os ativos financeiros: no curto prazo, os de liquidez; no médio, fundos com regras sobre saques; e, no longo, previdência”.

Também tem sido bastante perguntado, segundo a advogada Ana Cláudia, se é preciso escrever um testamento. Ela estima que a maioria não precise, pois não pretende fazer divisão de um jeito diferente do que a lei permite.

A armadilha, aqui, é que caso haja testamento, o inventário deixa de ser cartorial e se torna judicial; o acesso a bens e recursos passa a depender de autorização de um juiz e demora mais. Por isso, a sugestão é evitar documentos “redundantes” (inventário e testamento), que repitam o que já está na lei.

A existência de patrimônio no exterior tem influência. “Ainda que não seja preciso testamento no Brasil, pode ser recomendável para os bens em outro país”, diz Ana Cláudia.

Em casos extremos de isolamento, essas declarações podem ser feitas de próprio punho, sem testemunhas, mas precisam ser validadas por um juiz, afirma a advogada Maria Amélia. Ela lembra que a legislação ainda não autoriza vídeos, mas diz que eles podem ajudar caso haja questionamentos.

Cuidado com a pressa

Sgavioli, da Planejar, ressalva que “tudo o que se faz em emergência tende a sair mais caro” e lembra que a mesma pandemia que gera uma corrida para organizar a sucessão motiva fechamentos e restrições ao deslocamento.

“Vamos pensar em uma pessoa com medo que esteja pensando em deixar um bem para um filho. Para fazer como a lei exige, em cartório, está complicado, nem todos estão abertos. E outra, e se depois não acontecer nada? É difícil revogar um negócio desses.”

O mesmo raciocínio vale, ele diz, para outras possibilidades, como novos seguros de vida. “Embora até aqui as seguradoras estejam cumprindo a orientação da Federação Nacional dos Corretores de Seguros de pagar as apólices das vítimas do coronavírus, a despeito das cláusulas de exclusão por pandemia, dificilmente um cliente vai contratar às pressas um novo seguro de qualidade” que cubra eventual adoecimento por covid-19.

Um caminho, ele diz, são produtos de previdência, mas há cuidados a tomar, como não ultrapassar os limites legais para adiantamento de herança e antecipar custos tributários.

Fonte: Valor Investe (20/04/2020)

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