COPARENTALIDADE: EGOÍSMO DOS GENITORES, SOFRIMENTO DOS FILHOS

Na semana passada, na edição de 23/7, o programa Fantástico exibiu, com grande repercussão, uma reportagem especial sobre a prática de reprodução artificial que está sendo chamada de coparentalidade.
Trata-se, segundo a reportagem, de um novo conceito de “família”, que não se forma pelo casamento, nem pela união estável, nem pela relação de um pai com seus descendentes, mas quando duas pessoas quaisquer, sem vínculo familiar de casamento ou união estável, sem envolvimento romântico-afetivo, sem contato sexual ou moradia conjunta, sem sequer conhecerem previamente uma à outra, se aproximam – geralmente por meio de uma página especializada no Facebook – e formam uma parceria com o único propósito de gerar um filho comum.
Da descrição da coparentalidade, o leitor pode logo concluir por que não posso encaixá-la no conceito de família, como fez o programa, sem carregar o termo de tantas aspas quanto possíveis. Nada mais distante da ideia de família do que dois estranhos que se conhecem pela internet e, depois de algumas tratativas, formam um contrato cujo objeto exclusivo é ter e criar um filho, sem constituir nenhum outro vínculo entre si.
O que motiva homens e mulheres a buscarem essa coparentalidade é o desejo de terem um filho fora de qualquer relação, jurídica ou afetiva, com a mãe ou pai da criança; fora até mesmo de uma relação sexual. Uma das mulheres ouvidas pela reportagem conta que não manteve relação sexual com o genitor de seu filho; apenas injetou o sêmen do homem com a ajuda de uma seringa, numa espécie de fecundação assistida caseira. A criadora da página da coparentalidade no facebook conta que este é mesmo o ideal da prática, que os genitores não mantenham vínculo nem mesmo sexual.
Mas o foco – segundo juram os que buscam a coparentalidade ouvidos pela reportagem – é sempre a criança. Dizem que a criança já é amada antes mesmo de nascer, mais amada do que uma criança fruto do amor de pais no casamento ou união estável, porque ao contrário do casal que vive em alguma dessas formas de entidade familiar, os genitores na coparentalidade não se amam e não querem viver juntos, querem pura e simplesmente o filho e mais nada. Se o único desejo dele é ser pai – diz uma mulher referindo-se ao seu parceiro coparental -, o que há de dar errado?
O que há de dar errado? Dar errado para quem? Para os genitores, que satisfarão a ambição de ter um filho fora de qualquer relação de compromisso, de fato, pouco ou nada pode dar errado.
Mas para a criança o que pode dar, e certamente dará errado é absolutamente tudo.
Isso seria evidente se o “foco na criança” fosse real, e não nominal; se o “amor antes mesmo da criança nascer” fosse substancial e não aparente, da boca para fora. Se o que motivasse as pessoas que procuram a coparentalidade fosse o desejo de ser não apenas pai ou mãe, mas um bom pai e uma boa mãe.
Pode-se dizer que o que define um bom pai ou uma boa mãe é o bom exercício do que no Direito se chama de poder familiar: o conjunto de direitos que os genitores possuem sobre a pessoa e bens do filho até sua maioridade. Ao contrário dos demais direitos, o poder familiar não é destinado a satisfazer aos interesses pessoais dos que o possuem, ou seja, não é destinado a satisfazer ao interesse dos próprios pais, mas, isto sim, ao do filho. Dessa forma, bons pais são o que utilizam de seus direitos no melhor interesse, em benefício e na proteção de seus filhos.
O poder familiar a ser exercido pelos genitores na dita coparentalidade já se encontra corrompido na base. Isso porque a própria decisão de conceber o filho não foi feita levando em conta seus interesses e sua proteção, que consistem, antes de mais nada, no nascimento e criação no seio de uma família segura e estável.
Uma coisa é ter um filho numa relação familiar de casamento ou união estável, no contexto da comunhão de vidas do casal, do projeto de vida em comum que marca estes institutos, e o casamento ou união estável, por circunstâncias da vida, vir a se tornar insustentável e se romper.
Uma coisa é ter um filho fora de um vínculo familiar, estável e seguro, como efeito acidental de um descuido numa relação casual, uma “imprudência” dos pais. Pode-se lamentar a frequência com que tal fato se dá, mas não se pode deixar de reconhecê-lo como fato da vida.
Mas outra coisa – muito mais grave e repreensível – é, de forma premeditada e intencional, pensando exclusivamente no próprio bem-estar e satisfação pessoal, gerar uma criança a partir de uma relação que não tem estabilidade, não tem solidez, não tem segurança; uma relação que se dá a partir de uma página de Facebook e cujo único fundamento é a vontade comum de ter a criança; uma relação que, enquanto relação familiar, simplesmente não existe.
A coparentalidade é o estabelecimento da irresponsabilidade intencionada na base da relação humana em que a responsabilidade é mais exigida: a paternidade.
Mais que irresponsabilidade é um gesto de supremo egoísmo, pelo total descaso pelos interesses, pela segurança e proteção da criança gerada.
O genitor de uma criança concebida por este método de coparentalidade não quis, ao contrário da genitora, gravar entrevista para a reportagem do Fantástico por receio da reprovação social que sofreria se sua identidade fosse revelada. Veja o leitor que, com isso, o próprio sujeito admite que a coparentalidade traz consigo inevitavelmente um indesejável estigma de censura da sociedade. Mas ele decidiu gerar um filho dessa forma por vontade própria. É um “pai de coparentalidade” por opção. Trouxe a estigma social por decisão sua.
O filho, por outro lado, não decidiu ser gerado dessa maneira; não será um “filho da coparentalidade” por opção; não terá culpa nenhuma do mesmo estigma com que nascerá e que tanto prejuízo emocional e psicológico certamente lhe trará. Tudo lhe será imposto pelo capricho egoísta de seus genitores, como se seus infortúnios fossem um preço pequeno a pagar pela autossatisfação de seus genitores.
Até o momento, segundo a reportagem do Fantástico, há notícia de apenas seis crianças concebidas em coparentalidade. Um número ainda muito pequeno.
Roga-se, em nome da compaixão pelas crianças ainda não concebidas, que este número não aumente.
Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada.
Publicação original: Estadão – adaptado

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