Associação de Direito de Família e das Sucessões

AÇÕES DE FAMÍLIA: ESTARÍAMOS MESMO DIANTE DE PROCEDIMENTOS ESPECIAIS?

Por Monica Cecilio Rodrigues, publicado originalmente no Empório do Direito 

O Código de Processo Civil em vigor inovou com a classificação das ações de família como procedimentos especiais, quando houver litigiosidade, determinando que fossem aplicadas as normas contidas no referido capítulo aos processos de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação [1].

Por outro lado, manteve como procedimento especial de jurisdição voluntária, quando ausente de contenda, na mesma forma do Código revogado, o divórcio, a separação, a extinção de união estável e a alteração de regime de bens do matrimônio [2].

A intenção deste texto é questionar o leitor, com as pontuações e com os destaques feitos, se a classificação dada pelo legislador no Código de Processo Civil de que ações de família, ali nominadas, quando contenciosas, fazem parte mesmo do seleto grupo dos procedimentos especiais ou se seriam apenas técnicas avulsas a elas aplicadas.

Sabemos que os procedimentos especiais, no que dizem respeito às ações denominadas de família, bipartem em razão de ser litigioso ou não o exercício do poder de ação posto em prática pelo cidadão, com vistas a solucionar as causas que “submetidas ao Estado, através do processo,” buscam a correta solução jurídica, denominando esta atuação estatal de jurisdição, no dizer de Alexandre Câmara [3].

A divergência entre os processualistas quanto a utilização do vocábulo jurisdição, quando ausente a litigiosidade, ainda persiste. Uns sustentam tratar de “uma atividade administrativa”; e por isto, justificam a manutenção do vocábulo jurisdição em razão de ser exercida pelos agentes do Poder Judiciário. Já outros confirmam ser jurisdição sim, pois se desenvolve através de um processo, com todas as garantias constitucionais do cidadão.

Com vistas a assegurar o exercício do jurisdicionado em solucionar o seu direito, conflituoso ou não, perante o Estado, a lei estabelece um método especial, onde são impostas as normas que o regulamentam, garantindo as formas e a legalidade durante todo o seu desenrolar até culminar com a solução.

“Os processos de resolução de litígios são, em grande maioria, um reflexo da cultura em que estão inseridos” [4] e revelam também os valores de uma época, a considerar as ações antes regulamentadas como procedimentos especiais no Código de 73 e hoje excluídas do Código de 2015 [5].

E para este conjunto sistemático de normas e regras, de atos procedimentais continuados e sequenciais, deve haver uma ordem lógica e cronológica, reconhecendo a importância da investigação cognitiva, compreendida como a produção de provas, e com o máximo respeito às diferentes tutelas especificas em razão do direito material protegido e exposto a julgamento.

Assim, o legislador, contemplando as especificidades dos inúmeros direitos protegidos, formula ritos especiais para melhor solucionar as questões que possam envolvê-los. Em geral estes direitos são agrupados por similitude e peculiaridades, com vistas, a coerentemente, ser aplicada a mesma fórmula e procedimento, garantindo e ao mesmo tempo facilitando a resolução do imbróglio pela via judicial, quer seja litigioso ou não, em um prazo razoável [6].

Então, surge a promessa do procedimento especial para a solução e em contraposição ao procedimento comum, também conhecido como método “ordinário”, não com o significado utilizado pelo então Código Processual revogado, mas sim como um método vulgar, longo e demorado, que era muito criticado por não atender a necessidade de celeridade que estes direitos diferenciados exigem.

A adequação do método para assegurar a realização de um direito acontece por exclusão dos procedimentos e culmina no que podemos denominar de tutela comum. Se não estiver nominada a ação nos procedimentos especiais, quer seja de jurisdição contenciosa ou voluntária, a aplicação será do procedimento comum.
Proto Pisani, citado por Grinover [7], em um primeiro momento fazia a distinção de modo inverso, ou seja: o que não for ordinário seria tutela diferenciada. Posteriormente, inverteu o raciocínio, excluindo o que não se enquadrar na tutela diferenciada seria então pelo procedimento-padrão.

Tendo como máxima a eficácia do processo para solucionar estes direitos, resistidos ou não, e acrescendo a garantia do devido processo legal, quer seja quanto às regras procedimentais, quer seja quanto ao direito material que se deseja resolver, justificou-se a criação de um procedimento especial.

Portanto, é de fácil conclusão que certos direitos materiais reclamam, exigem um método especial para serem resolvidos.

E por isto, o legislador de nossa época, vislumbrando a necessidade de assegurar ao cidadão a eficácia de um rito adequado a certos direitos específicos cria os procedimentos especiais, que devem, obrigatoriamente, conter regras procedimentais diferenciadas do procedimento comum, e que devem regulamentar todo o trâmite e desenrolar da ação até o provimento final.

Fala-se em procedimentos diferenciados aplicáveis a direitos específicos, mas em verdade o que são específicas são as ações nominadas e que contém estes direitos.

Tratando das ações de família, em nada será prejudicada, a parte que desavisadamente ajuizar o seu direito sem acautelar-se da propositura pelo rito especial. Pois é perceptível que, as regras específicas contidas no procedimento dito especial, quando se tratar do contencioso, serão aplicadas de ofício, conforme determina o artigo 695, caput do citado Código.

Como exemplo de tutelas específicas das ações de família podemos citar o conteúdo do mandado de citação e o prazo mínimo para que ocorra a citação para a audiência. Pois, as demais regras contidas no capítulo, ora em comento, nada têm de diferenciadas, como será demonstrado ao longo do texto; e, em caso de não haver acordo o rito a ser seguido será o comum [8].

Portanto, ilusoriamente, apesar de estar capitulada como procedimento especial, em caso de permanência da litigiosidade, a ação será solvida no procedimento comum.

Comporta uma crítica a primeira regra, quando o legislador determinou que o réu, ao ser citado, não tenha conhecimento do interior teor da inicial. Em verdade, foi criado aqui um blind date para o réu com a parte autora.

Qual o cidadão que recebe uma citação e não procura saber de toda a narrativa fática imputada em face dele?

E mais, qual o advogado que recebe a procuração de um cliente sem tomar conhecimento de toda a inicial?

Quanto às demais regras contidas no capítulo do referido procedimento especial das ações de família, a exemplo da mediação, da conciliação, [9] da tutela provisória, [10] da citação feita na pessoa do réu, [11] das partes estarem acompanhadas de advogado ou de defensores públicos, [12] da intervenção do Ministério Público quando houver interesse de incapaz, [13] já estão todas previstas para e no procedimento comum.

A mediação e a conciliação, dispostas na parte geral, como normas fundamentais do processo civil, devendo ser estimuladas pelos juízes, procuradores, defensores públicos e pelo parquet[14] são também tratadas no capítulo dos auxiliares da justiça, dando destaque à mediação, em conflitos que houver vínculo anterior entre as partes [15] e, mesmo no procedimento comum, existe a previsão legal de designação da audiência de conciliação ou de mediação [16].

A tutela provisória, regulamentada na parte geral do Código de Processo Civil [17], com todas as suas nuances, nada deixa a desejar para aquela específica do artigo 695 do referido Codex. Muito pelo contrário, a regra especial deve ser complementada pela geral, frente às possibilidades de medidas atípicas que se fizerem adequadas e necessárias para a efetivação da tutela provisória, como possibilita o artigo 297. Como exemplo, pode ser citada, a necessidade, nas ações de alimentos de ofícios requisitórios para informar os valores recebidos a título de salário ou até mesmo dos rendimentos contidos no imposto de renda do requerido com o objetivo de ser conhecida a possibilidade econômica do alimentante, com vistas ao deferimento da concessão de liminar de alimentos requerida na inicial pela filha alimentada. E, mais recentemente, também como exemplo, a possibilidade do deferimento da tutela de evidência, quanto ao pedido de divórcio, por se tratar de direito potestativo, fundamentado no artigo 311, incisos I e IV do Código de Processo Civil.

Percebe-se que as regras contidas nos procedimentos especiais devem ser complementadas pelas normas gerais, sob pena de não haver uma satisfatória prestação jurisdicional.

Quanto à citação na pessoa do réu, nas ações de família, já estava contemplada no artigo 247 do Código mencionado, como previsão das exceções por se tratar de ações de estado, inclusive mencionando expressamente o disposto no art. 695, § 3º.

No que diz respeito à regra específica ditada pelos procedimentos especiais de que as partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos de nada tem de especial, pois já é previsto no artigo 334, parágrafo 9º do CPC.

Finalmente e como último destaque as regras contidas no procedimento, dito especial para as ações de família, temos a intervenção do Ministério Público, nas causas que versarem sobre interesse de incapaz. Mais uma vez não inova como regra especial, posto que o artigo 178, inciso II, já determina a intimação e consequente intervenção do Ministério Público nos processos que envolvam interesse de incapaz.

Destarte, quando se trata do direito de família, é preciso atenção para a adequação aos procedimentos especiais, analisando de forma detida e especifica, as denominadas “ações de família contenciosas”, sob pena de ser aplicado o procedimento comum, como determina o artigo 327, parágrafo 2º do Código Processual. E mais, o artigo citado possibilita o emprego das técnicas processuais nas ações de família mesmo quando passem a ser processadas no rito comum, denominada de cláusula geral de flexibilização procedimental [18].

Para que não ocasione nenhuma nulidade processual, devem ser seguidas as regras ditas específicas do tipo processual até o julgamento.

Como modelo de adequação ao rito correto, podemos citar o ajuizamento de uma ação de divórcio, pelo procedimento especial, quando na verdade o que se pretende, primeiro, é a declaração de existência de casamento e posteriormente a dissolução do vínculo conjugal. Não se pode ignorar ou transpor o pressuposto da declaração de existência de um casamento, na falta de documento legal comprobatório, devendo seguir o rito comum, conforme dispõe o artigo 1.049, haja visto que não está prevista nas ações nominadas no caput do artigo 693, para ao depois ajuizar o divórcio. O mesmo não ocorre com a união estável, que pode ser reconhecida e extinta pelo procedimento especial.

Já, quanto aos atos específicos do procedimento incomum, o exemplo pode vir de um pedido de homologação de guarda e visitação de filho, em que não houve a intervenção do Ministério Público, como determina o artigo 698 do citado Código. Pois mesmo quando não haja contenda e seja apenas um simples pedido de homologação feito pelos genitores a ausência desta intervenção macula todo o processo.

Sem dúvida, é possível a correção no caso do primeiro exemplo, para a adequação ao rito comum, objetivando a declaração de existência do casamento, conforme a permissão legal do artigo 1.049, caput, do Código de Processo; aproveitando os atos que assim possam ser, seguindo-se a regra de respeito a todas as garantias processuais.

Os aplausos recebidos pela criação do procedimento especial para as nominadas ações, a exemplo das ações de família, hoje merecem uma nova observação, simplesmente porque, podemos perceber que de método especial nada contêm, após demonstrado pari passu, que com exceção do conteúdo do mandado de citação e do prazo mínimo para que ocorra a citação para a audiência, as demais regras já inseridas na parte geral e na ausência de acordo o processo desagua na vala do procedimento comum. Comprova-se pela leitura atenta ao artigo 697 do referido Código; bem como nas ações de alimentos e que versar sobre interesse da criança ou de adolescente.

Daí para frente segue o baile, “ordinarizado”.

A valoração das nominadas ações de família no capítulo de procedimentos especiais se deve à época pela qual estamos passando, com a reestrutura dos valores familiares, de aceitação e de recomposição do núcleo familiar, visando a diminuição de conflitos e de ações recorrentes, não só entre os ex-cônjuges, mas também entre ex-companheiros e nas relações parentais.

A família não é mais a mesma. Com isto, os valores protegidos também se alteram e se alternam, influenciando até mesmo as normas procedimentais para as soluções dos conflitos existentes entre os envolvidos.

O método empregado para a solução do conflito deve ser eficaz, mas também deve garantir a paridade de tratamento entre as partes, o contraditório, a publicidade, tudo isto em um prazo razoável para trazer a solução do seu problema. Diante das características peculiares da possibilidade de revisões das decisões judiciais nas ações de família, o legislador falhou quando não ofereceu um verdadeiro procedimento especial, em caso de contenda para que as partes se sintam satisfeitas com o resultado, evitando assim o retorno ao Poder Judiciário com ações recorrentes sobre temas já decididos.

Didier, Cabral e Cunha concluíram que é “preciso desenvolver uma teoria dos procedimentos especiais compatível com as transformações pelas quais tem passado o procedimento comum nos últimos anos” [19]. E afiançamos este ensinamento no caso específico das ações de família, pois após observado o rito que aparelha as nominadas ações percebemos que apesar de legal e taxativamente determinadas como procedimento especial em caso de litígio, tudo não passou de uma “pseudo” oferta legislativa de solução. Uma vez que se litigiosa a coisa continuar, seguirá o rito comum, que nada tem de especial para tratar estes direitos.

Notas e Referências
[1] Art. 693 do Código de Processo Civil.
[2] Art. 731 do Código de Processo Civil.
[3] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro.7 ed., São Paulo: Atlas, 2021, p. 30 e 31.
[4] CHASE, Oscar G. Direito, cultura e ritual. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 21.
[5] Ação de depósito, Ação de Nunciação de Obra Nova, Ação de Usucapião etc.
[6] Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
[7] GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaios sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018, p. 35 e 36.
[8] Art. 697 do CPC.
[9] Art. 694, caput, e artigo 695, caput, ambos do CPC
[10] Art. 695, caput do CPC.
[11] Art. 695, parágrafo 3º do CPC.
[12] Art. 695, parágrafo 4º do CPC.
[13] Art. 698 do CPC.
[14] Art. 3º, parágrafo 3º do CPC.
[15] Art. 165 e seguintes do CPC.
[16] Art. 334, caput do CPC.
[17] Art. 294 e seguintes do CPC.
[18] DIDIER JUNIOR, Fredie, CABRAL, Antonio do Passo, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Bahia: Editora JusPODIVM, 2018, p. 69 e 73.
[19] DIDIER JUNIOR, Fredie, CABRAL, Antonio do Passo, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Bahia: Editora JusPODIVM, 2018, p. 16.

 

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