A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA E A ENGENHARIA GENÉTICA COMO PROCEDIMENTO EUGÊNICO

Por Danilo Porfírio de Castro Vieira*

Recentemente foi publicado o nascimento de uma criança no Reino Unido, resultante de uma manipulação genética, com três materiais: a dos pais e de uma terceira mulher. O intuito foi se evitar doenças congênitas. Na fertilização in vitro, recorreu-se ao tratamento de doação mitocondrial (TDM), técnica que impede doenças hereditárias (doenças mitocondriais). O procedimento utiliza tecido de óvulos de doadoras saudáveis, especificamente as mitocôndrias. Numa concepção natural, os filhos herdam os genes mitocondriais da mãe, causa dessas doenças congênitas, que provocam mutações afetando tecidos com alto consumo energético (tecido muscular, inclusive o cardíaco, hepático e neural), acarretando a degeneração ao longo do desenvolvimento da criança tendo muitas vezes consequências fatais.

Mesmo sendo atribuído o título de crianças de três pais, o bebê tem constituição genética em 99,8% do material genético dos pais, enquanto 0,2% é originário da doadora (37 genes). No TDM, o esperma do pai e o óvulo da mãe serão fertilizados, transformados em zigoto, porém, o núcleo do óvulo é retirado e substituído pelo óvulo da mulher doadora. Logo, o óvulo tem o cromossomo do casal, mas as mitocôndrias da doadora.
Não se trata de medida inédita, pois o primeiro caso ocorreu nos Estados Unidos em 2015, sendo registrada a técnica em 2016.

Esses novos procedimentos respondem a promessa do projeto filosófico de modernidade em controlar a natureza, instrumentalizá-la, de superar limites até então considerados inerentes à condição humana, não aceitando o conformismo. Desde o Humanismo, o que se busca é a ascensão do Homo Deo (o Homem Deus), que não é mais um agente passivo no cosmo, mas protagonista, um artífice/arquiteto do universo.
No projeto de emancipação do homem, estabelecido em espaços societários, plurais e seculares, prevaleceria a “ética da racionalidade”, cientificista, formal e desencantado (avessa à religiosidade e superstições / “old sacred”), tendo como fim a supremacia do “eu” (buffered self) sobre o todo, seja a comunidade ou o cosmos.

Trata-se de uma ética individualizada (proteção da autenticidade como dignidade), contratual e comutativa (intersubjetiva – binômio eu e outro eu). Neste sentido a ordem e segurança, são construções da vontade enquanto expressão da racionalidade.

É uma eticidade antrópica, que submete a natureza à vontade humana, sendo um recurso para realização da Humanidade, não existindo espaço para o fatalismo. A natureza precisa ser entendida, domada e instrumentalizada. As obras Poema sobre o desastre de Lisboa (1756), de autoria de Voltaire, e o Lettre sur la providence (1756), de Rousseau, eram panfletos contra a resignação aos efeitos avassaladores da natureza, diga-se o terremoto de Lisboa.

Esse protagonismo instrumental sobre a natureza, encampado pelo projeto filosófico de modernidade, é associado aos mitos de Prometeu e Lúcifer.

O titã Prometeu, na lenda grega, foi condenado a viver preso nos confins do mundo, acorrentado nas pedras e tendo seu fígado devorado por corvos, pela eternidade. A causa foi “civilizar” humanidade, oferecer o domínio de fogo, a fonte de todo o conhecimento aos homens, controlando a natureza e não se sujeitando aos Deuses.

Como advogado da causa humana, Prometeu promoveu a inteligência contra as fatalidades, oferecendo o conhecimento, o fogo, fonte de luz (alegoria do esclarecimento). Prometeu, pela autonomia da humanidade, contestou a vontade dos deuses, especificamente de Zeus, e a ordem cósmica.

Lúcifer, ou o portador da Luz, é a expressão latina do anjo Samael, o príncipe dos anjos, também conhecido com a Estrela da Manhã הֵילֵל בֶּן-שָׁחַר (Helel ben Shachar/filho da manhã) sob alegado amor a Deus, cobiçou ser igual ou até maior que Ele (“Subirei aos céus; elevarei meu trono acima das estrelas de Deus” – Isaías 14: 13-14). Tal ambição motivou uma rebelião liderada pelo anjo, que lhe custou a sua queda e de suas legiões. A causa atribuída as ações frustradas e a queda de Lúcifer, por parte de Santo Agostinho em sua obra a Cidade de Deus, é seu livre-arbítrio, sua autopercepção de individualidade (solipsismo), fomentando desejo e inveja.

O mito luciferiano está presente na obra que expõe, literariamente, o arquétipo do “homem Deus”: Fausto (J.W. Goethe), tendo como personagem decisivo Mefistófeles, a entidade demoníaca que, por um contrato que tem como o preço a alma, oferece ao professor e mago, além da beleza e a jovialidade, o conhecimento. A final tem-se o sofrimento da perda de sua amada Gretchen, que evidencia a finitude humana.

Logo, a preocupação constante nos métodos de instrumentalização e controle da natureza, inclusive a humana acaba sendo a mesma do mito dos antigos: na busca do Homem Deus, do senhor do cosmos e do tempo, o que se encontra é queda, sofrimento, finitude e danação.

Essa preocupação “prometeico-luciferiana” se evidencia na modernidade e em sua mais nobre criação, o Direito.

O Direito moderno, fruto da reflexão iluminista/liberal e das revoluções do século XVIII, é uma construção racional-secular, comprometida com uma ordem societária/plural, tendo como fim a garantia da emancipação dos homens e seu exercício existencial autêntico (essência da Dignidade).

O Direito e suas estruturas garantistas se defrontam com uma antítese fruto da modernidade, que a reificação/coisificação da vida e da Pessoa. O homem como refém dos seus próprios instrumentos e a sua mercantilização, a exemplo dos procedimentos de manipulação genética, de natureza eugênica. Trata-se de uma angústia.

Mas se deixa claro que, primeiramente, a Eugenia não é um fenômeno exclusivamente moderno, que já apresenta de forma sutil, oculta, como se não fosse uma forma de seleção artificial.

A eugenia (do grego, boa origem) é um fenômeno ancestral, presente em diversas culturas, transcendendo os espaços ocidentais. Em Esparta, filhos não considerados saudáveis, eram sacrificados no monte Taygeto; Em Roma as crianças nascidas com má-formação eram denominadas de monstros, sendo sacrificadas ritualisticamente, e idosos e doentes podiam praticar eutanásia eugênica (fenômeno semelhante ocorria entre o celtas, como também no Oriente e em comunidades originárias da América); na tradição matrimonial romana, como em instituições familiares congêneres na Índia e na China, o casamento estava não somente vinculado a estirpe familiar, mas na condição física, à saúde da noiva; existia inclusive a triste realidade uma eugenia social, que ainda é presente em algumas regiões do Oriente Médio, Asia Central e Extremo Oriente, que a eugenia social, a viabilidade de filhos conforme seu sexo.

Na Europa do século XIX, buscou-se procedimentalizar, com fundamentos mathuzianos e darwinianos, o bom nascimento. Francis Galton, cientista inglês, entendia que a eugenia era o resultado de estudos de fatores de natureza física ou psicológica, sujeitos a controle social, buscando-se o bem-estar da humanidade.
Nos regimes autoritários como no nazismo (Alemanha) e no espaço soviético (URSS), pesquisas foram desenvolvidas para o aprimoramento genético de seus povos. Em especial os alemães, recorreram não apenas a pesquisas, mas a extermínio de grupos étnico-culturais como judeus, ciganos, eslavos como também grupos excluídos da sociedade, como os homossexuais.

Em países de história democrática como a Suécia, mulheres com QI baixo foram esterilizadas compulsoriamente. Nos Estados Unidos órfãos com má-formação ou com deficiência também sofreram esterilização.

Exposto os vários eventos dramáticos, surge o momento para respondermos as seguintes indagações: toda eugenia é reificadora? É atentatória contra a dignidade da pessoa? Especificamente aos procedimentos de manipulação genética, é condizente a sua associação exclusiva aos temores levantados no livro Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e do filme GATTACA?

Dentro da comunidade científica, pessoas e grupos diriam que a resposta é não, tendo em vista que os procedimentos eugênicos já existem e são “legítimos” pelas técnicas de fertilização in vitro, que possibilitam, em concepções heterólogas, que o casal consiga experimentar o processo de gestação, como também possibilita a escolha do doador, com base em suas características fenotípicas e genotípicas (preservando o sigilo identitário/especificamente no Brasil).

Da mesma forma, na fertilização e concepção homóloga, busca-se evitar a transmissão de potenciais problemas congênitos, vislumbrando a saúde da criança e de sua descendência. Está à disposição biotecnologias suprimem ou retiram genes defeituosos.

Tratar-se-ia, portanto, em aprimorar as qualidades e mitigar imperfeições, ser um meio de atender a saúde das pessoas sob um prisma transgeracional.

A Humanidade aqui agiria como Homem Deus, sob o argumento radical da emancipação, se desprendendo do fatalismo, a comprometendo-se com a dignidade dos indivíduos, comprometida com a saúde das futuras gerações.

Dentro deste argumento “otimista”, a proposta do novo procedimento de doação de genes mitocondriais não destoaria daquilo que já é proposto em outras circunstâncias, um processo comprometido com a integridade física dos filhos, das gerações futuras.

Antes nos métodos de fertilização artificial e da engenharia genética, medidas de aprimoramento geracional já (diga-se sempre) existiram. Escolhas de parceiros para união conjugal era o único meio para o aprimoramento e preservação geracional (boas linhagens hereditárias). O próprio Direito exige ações pré-concepcionais, como exames pré-nupciais. Outras medidas não genéticas são os meios de melhoramento da gestação e do desenvolvimento das crianças, como assistência pré-natal e ao parto, o saneamento básico, nutrição, atividade física, controle e tratamento de doenças.

Logo, para os defensores de terapias eugênicas, ou eugenéticas, tais procedimentos seriam legítimos. Seriam, todavia, condenáveis quando são meios de exclusão ou hierarquização social. A eugenia, como um recurso legitimado por ideologias, quando se torna um instrumento de poder, ação de Estado, compulsório, seria condenável.

Seria espúrio quando discrimina, persegue, mitiga direitos, legitima abusos a exemplo de abortos e eutanásia eugênica, esterilização de portadores de deficiência.

Consequentemente, seria temerário, também jogar na vala comum os procedimentos científicos, como se todos os recursos estivessem a serviço exclusivo de discursos supremacistas, ou que justificam morte ou interrupção de gestações.

Inclusive, admite-se como termo apropriado ao conjunto de conhecimentos e técnicas que envolvem genética e biologia molecular, comprometido com a saúde e a constituição das futuras gerações, de eugenética.
A eugenética negativa (de natureza passiva, ou preventiva) tem como objeto a cura ou prevenção de doenças genéticas, com caráter restritivo. A eugenética positiva volta-se para um projeto de aprimoramento humano de habilidades, qualidades e competências.

Diante dessa breve reflexão, emergem questões sobre os métodos “eugenéticos”: Analisando suas promessas e seus dramáticos problemas no mundo moderno, seria possível se evitar a instrumentalização da vida humana? Em meio dos avanços da revolução cientifica, seria justificável o nascimento de pessoas com limitações físicas e psíquicas congênitas?

E como o Direito responde a esses problemas? Deve-se lembrar a sociedade, como a comunidade internacional vive a máxima de Marx, onde tudo que é sólido desmancha no ar. Fluidez e Insegurança (Sociedade de Risco) fruto da mutabilidade incessante do modo de vida Moderno. O Direito, mesmo sendo o instrumento de manutenção de garantias e ordem, tem natureza inercial, respondendo sempre a realidade posta, nem sempre de forma célere, ou seja, o direito não responde eficientemente a sociedade hiperacelerada.

Entretanto, já o Direito busca responder às demandas sobre os recursos de fertilização artificial e os procedimentos eugenéticos (ou eugênicos).

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, aprovada pela Unesco (1997), veda clonagem de seres humanos, mercantilização do genoma, entre outros pontos, porém, autoriza a manipulação genética para fins terapêuticos.

No direito brasileiro, a pesquisa genética é autorizada, dentro dos limites da Dignidade Humana e dos Direitos Fundamentais, como também da proteção jurídica ao meio ambiente, conforme art. 225 CF.
É reconhecido que o genoma humano é um bem inalienável, fazendo parte essencial dos direitos existenciais.

Os testes preventivos devem primar pela transparência e clareza das informações, seja ao paciente, quanto para o poder público, sendo feito por liberalidade.

A Lei nº8.974/1995 disciplina técnicas de engenharia genética e veda a manipulação genética de células germinais humanas. Células germinais ou germinativas são aquelas que originam os gametas, que dão origem a vida, contendo a metade dos cromossomos dos genitores. Da união surge a primeira célula somática, o zigoto.

Também regula o acesso a informações genéticas das pessoas, fazendo parte dos direitos de privacidade e intimidade. O intuito é evitar prejuízos e discriminações como a vedação à atividade laboral, educacional ou de se firmar certos contratos (como de seguro de saúde ou de vida).

Com a Lei nº11.105/05, ocorreu a autorização de uso de células-tronco embrionárias (art.5º.), para fins terapêuticos, especificamente de embriões excedentários (congelados em clínicas especializadas há pelo menos 3 anos), desde que autorizados pelos “titulares” dos embriões. As terapias têm natureza corretiva, reparatória e até mesmo de ser uma forma combater certas doenças (caracterizando-se como eugênica).
Sobre a reprodução assistida, a Resolução CFM nº 1.358/1992, regulou os procedimentos de fertilização, garantindo a segurança dos pacientes, o acesso claro às informações e a vedação sobre a escolha de sexo da criança. Sobre a disposição de material heterólogo, exige-se a doação e o sigilo dos doadores, como o acesso dos pacientes a informações fenotípicas e genotípicas.

Também há a previsão do uso das técnicas para a detecção e o tratamento de doenças genéticas/hereditárias.

Em 2011, uma nova resolução foi publicada, CFM nº 1.957/2010, que reforça questões sobre múltipla gravidez, de reprodução assistida post mortem e sobre pacientes que possuam relacionamentos tácitos ou que os pacientes sejam solteiros, como também homoafetivos, não apresentando alterações sobre os fins terapêuticos da RA.

A resolução foi substituída, no intuito do aprimoramento das disciplinas das técnicas, pelas resoluções no. 2168 DE 21/09/2017 e nº 2283 DE 01/10/2020.

A resolução nº 2.294/21 limitou o número criados em laboratório (até 8), alterou a idade limite das doações de embriões e a disciplina sobre a transferência de embriões. Também não veda expressamente questões sociais e oncológicas para o recebimento de técnicas de RA.

Sobre o sigilo na doação, a resolução prevê:

Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores (primeiro grau – pais/filhos; segundo grau – avós/irmãos; terceiro grau – tios/sobrinhos; quarto grau – primos), desde que não incorra em consanguinidade.

A resolução 2.320/2022 enfatiza a vedação aos médicos, funcionários e demais integrantes da equipe multidisciplinar das clínicas, unidades ou serviços serem doadores nos programas de RA. A responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões. Disciplina também sobre o diagnóstico genético pré-implantacional de embriões, para se identificar alterações genéticas causadoras de doenças.

Diante do exposto, cabe salientar que a ADFAS tem posicionamento crítico sobre certos procedimentos da RA, no combate contra qualquer forma de instrumentalização da condição humana. Possui postura frontalmente combativa ao “bebê” medicamento, ao sigilo do doador na reprodução heteróloga e aos métodos de manipulação de genes.

Logo, o Direito, enquanto um sistema garantista e estabilizador das relações, afiançador da Dignidade da Pessoa, do Pluralismo e resultante de uma construção racional e consensual, filho da Modernidade, foi, é e será o balizador, na moderação desses processos eugenéticos, buscando impedir que o processo de “Homem Deus” não resulte na queda prometeico-luciferiana da Humanidade. Que pela ciência encontremos a Luz, não ruína de Fausto.

*Associado da ADFAS. Doutor em Ciências Sociais pela UNESP. Mestre em Direito pela UNESP. Professor de Direito (IDP) e Relações Internacionais (Instituto Maria Quitéria). Sócio Advogado do Chaves, Porfírio Vieira Advogados. 

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