A QUESTÃO DA FIXAÇÃO DO DOMICÍLIO DOS FILHOS NA GUARDA COMPARTILHADA
Por Fernando Salzer e Silva*
Em dezembro de 2014, através da Lei Federal 13.058, que, entre outros, deu nova redação ao parágrafo 2º do artigo 1.584 do Código Civil[1], foi efetuada relevante alteração no regramento jurídico do Direito de Família, passando o regime da guarda compartilhada de exceção à regra.
Apesar de tal inovação legal, a utilização da guarda compartilhada como regra ainda encontra certa resistência por parte do Judiciário, bem como gera alguns equívocos na aplicação do referido regime de guarda, como, por exemplo, na definição do domicílio da criança.
A guarda compartilhada, que continua sendo regra mesmo na ausência de acordo[2] e consenso[3], consiste na responsabilização conjunta de pai e mãe ou de todos os “pais”, em caso de multiparentalidade, exercendo estes, concomitantemente[4], todos os direitos e deveres inerentes ao poder familiar em relação aos filhos comuns[5]. Em tal modalidade de guarda, o tempo de convívio dos pais com os filhos deverá ser dividido de forma equilibrada, sempre tendo como alvo a primazia do interesse da criança[6][7].
É interessante notar que o Código Civil, ao tratar da guarda compartilhada, não traz qualquer menção à questão da designação do domicílio dos filhos, mas expressamente determina que deverá ser considerada como base de moradia dos menores a cidade que melhor atende os interesses destes[8].
Tal silêncio normativo se deve ao fato de a questão do domicílio dos filhos na guarda compartilhada já estar definida pela aplicação da regra constante na “Parte Geral” do Código Civil, onde consta explicitamente que o domicílio do incapaz é o de seu representante legal[9].
Assim, como na guarda compartilhada os pais exercem todos os direitos e deveres inerentes ao poder familiar, inclusive o de representá-los ou assisti-los legalmente[10], dúvidas não restam de que na guarda compartilhada os filhos possuem, em regra, pluralidade de domicílios[11], variando quantitativo de domicílios conforme o número de mães e/ou pais envolvidos (multiparentalidade).
A regra da pluralidade de domicílios na guarda compartilha só será afastada quando os pais residirem em cidades diferentes, devendo prevalecer, nesse caso, o domicílio do genitor residente na cidade considerada como base de moradia dos filhos, a localidade que melhor atende aos interesses das crianças.
A diversidade de domicílios dos filhos na guarda compartilhada, quando pais e/ou mães residirem no mesmo município, é imprescindível para garantir a prevalência do melhor interesse das crianças, pois, como a guarda compartilhada deve, em regra, prevalecer mesmo na ausência de acordo e consenso, injustificável e desarrazoado se mostra fixar domicílio único para os filhos, desequilibrando uma relação de direitos e deveres entre os pais que deve ser o mais equânime possível.
A fixação de domicílio único, seja o materno ou o paterno, deixa a criança ou adolescente à mercê de interesse próprio e privado do genitor que foi agraciado com a fixação a seu favor, afrontando a regra da prevalência do melhor interesse da criança.
Oportuno lembrar que a mudança de domicílio, sem justificativa, visando dificultar a convivência da criança com o outro genitor, com familiares deste, é considerada forma de alienação parental[12], devendo o Judiciário guiar suas decisões, sempre que possível, no sentido de buscar prevenir a ocorrência de ameaça ou violação a direitos do menor[13].
Além disso, como uma das funções da guarda compartilhada é servir como instrumento apto a inibir ou atenuar os efeitos da alienação parental[14], não se mostra razoável que uma das regras fixadas em tal regime de guarda seja capaz de dar azo a um possível ato de alienação parental.
Fixada a diversidade de domicílios, havendo a real e justificada necessidade de um dos pais mudar de cidade e existindo divergência a respeito da definição do novo domicílio da criança, tal fato novo deverá ser levado ao conhecimento do juiz, por meio de simples petição nos autos da ação em curso[15], caso o domicílio tenha sido fixado em decisão interlocutória ou através do manejo da ação de modificação de cláusula, nos casos de sentença transitado em julgado[16]. O magistrado, ao tomar conhecimento do fato novo, da divergência existente, deverá, antes de tomar sua decisão, tendo em mente que todos os pais foram considerados anteriormente aptos a exercer o poder familiar, senão não seria possível o deferimento da guarda compartilhada, perquirir qual domicílio/cidade melhor atenderá os interesses da criança, levando em conta para tanto, por exemplo, os vínculos de amizade deste[17], identificação com moradia, habitualidade com a escola[18] etc.
Na questão da fixação do domicílio do menor, nunca o interesse próprio e privado de um dos genitores, por si só, poderá se sobrepor ao interesse da criança[19], uma vez que o instituto da guarda, seja ela unilateral ou compartilhada, foi concebido para proteger o menor, colocando-o a salvo de situações de ameaça e perigo[20].
É certo que o juiz, em situações pontuais[21] e excepcionais[22], poderá determinar a fixação de domicílio único, mesmo todos os pais residindo numa única cidade, mas, nesses casos, tal decisão deverá ser precedida da indispensável fundamentação válida[23], sob pena de nulidade[24].
Destarte, conclui-se que no regime da guarda compartilhada, a regra, quando todos os pais residirem na mesma cidade, é a pluralidade de domicílio das crianças, só podendo o domicílio único ser determinado em situações excepcionais e justificadas, sendo imperioso e obrigatório que o provimento judicial que deferir a guarda compartilhada, expressamente preveja, ainda que todos os pais morem na mesma localidade, para todos os fins, a cidade considerada como base de moradia dos filhos, sempre levando em conta a supremacia do melhor interesse destes.
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.
[2] Código Civil. Art. 1.584. (…)
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.
[3] “A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole.” (STJ. REsp 1.428.596/RS. Órgão Julgador: 3ª Turma. Relatora: ministra Nancy Andrighi. Data da publicação/Fonte: DJe 25/6/2014.
[4] “Na guarda compartilhada, os pais conservam juntos o direito de custódia e responsabilidade dos filhos. Em outras palavras, a prática do poder familiar é conjunta entre ambos os genitores.” (TJMG. Apelação Cível 1.0024.08.197958-5/001. Órgão Julgador: 8ª Câmara Cível. Relator: des. Vieira Brito. Data da publicação da súmula: 22/6/2011).
[5] Código Civil. Art. 1.583. (…)
§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
[6] Constituição Federal. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[7] Lei 8.069/1990. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
[8] Código Civil. Art. 1.583. (…)
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos.
[9] Código Civil. Art. 76. (…)
Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; (…).
[10] Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (…)
VII – representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
[11] Código Civil. Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.
[12] Lei 12.318/2010. Art. 2º (…)
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros:
(…)
VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
[13] Lei 8.069/1990. Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.
[14] Lei 12.318/2010. Art. 6º Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso:
(…)
V – determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão;
[15] Código de Processo Civil. Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.
[16] Art. 1.690. Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados.
Parágrafo único. Os pais devem decidir em comum as questões relativas aos filhos e a seus bens; havendo divergência, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para a solução necessária.
[17] “Havendo indícios de que a criança estará melhor assistida sob a guarda do genitor, bem como de que já criou vínculos de amizade, identificação com moradia e habitualidade com o colégio, todos situados na cidade em que o genitor reside, deve ser a ele deferida a guarda provisória.” (TJ-MG. Agravo de Instrumento 1.0327.15.000747-1/001. Órgão Julgador: 4ª Câmara Cível. Relator: des. Dárcio Lopardi Mendes. Data da publicação da súmula: 5/8/2015).
[18] “Em ação de guarda, evidenciado que ambos os genitores detêm condições semelhantes para bem cuidar dos filhos, é de se manter o ‘status quo’ atual – ou seja, a permanência das crianças na cidade em que sempre viveram e ao lado pai, com o qual estão desde a separação do casal.” (TJ-MG. Agravo de Instrumento 1.0540.05.004360-8/001. Órgão Julgador: 1ª Câmara Cível. Relator: des. Alberto Vilas Boas. Data da publicação da súmula: 24/3/2009).
[19] “Se um dos genitores quer mudar de cidade ou de Estado, para atender a interesse próprio e privado, não poderá tal desiderato sobrepujar o interesse do menor. Só se poderia admitir tal fato, se o interesse do genitor for de tal monta e sobrepujar o interesse da criança.” (TJ-MG. Apelação Cível 1.0210.11.007144-1/003. Órgão Julgador: 4ª Câmara Cível. Relator: des. Dárcio Lopardi Mendes. Data da publicação da súmula: 5/8/2015).
[20] “Ao exercício da guarda sobrepõe-se o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que não se pode delir, em momento algum, porquanto o instituto da guarda foi concebido, de rigor, para proteger o menor, para colocá-lo a salvo de situação de perigo, tornando perene sua ascensão à vida adulta. Não há, portanto, tutela de interesses de uma ou de outra parte em processos deste jaez; há, tão-somente, a salvaguarda do direito da criança e do adolescente, de ter, para si prestada, assistência material, moral e educacional, nos termos do art. 33 do ECA. ” (STJ. REsp 964836/BA. Órgão Julgador: Terceira Turma. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Data da Publicação/Fonte: DJe 04/08/2009).
[21] Código Civil. Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
(…)
§ 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe.
§ 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda unilateral ou compartilhada poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor.
[22] Código Civil. Art. 1.586. Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais.
[23] Código de Processo Civil. Art. 489. (…)
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; (…).
[24] Constituição Federal. Art. 93. (…)
IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação
Fonte Conjur (18/02/2017)