A ILUSÃO CRIADA POR ESCRITURAS QUE DÃO EFEITOS DE UNIÃO ESTÁVEL AO POLIAMOR

Por Regina Beatriz Tavares da Silva*
O pedido de providências da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões) ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para que seja vedada a lavratura de escrituras públicas pelos Tabelionatos de Notas das chamadas “uniões poliafetivas” será retomado na próxima semana.
Lastimavelmente, esse pedido está sendo desvirtuado pelos que querem que seja permitida a violação da lei com a lavratura dessas escrituras.
Assim, vem sendo afirmado que a ADFAS pretende proibir que as pessoas vivam o “poliamor” por ser “conservadora”, violando o direito à liberdade que as pessoas têm de viver como bem entenderem, ou pretendendo aplicar uma punição para quem pretende viver uma “conjugalidade a três”, ou ainda, provocando uma interferência do Estado na intimidade das pessoas em razão de um “moralismo autoritário”.
Ainda é dito que no Brasil, por ser um Estado laico (sem religião), não poderia haver impedimento à lavratura de uma escritura de relação poliafetiva com efeitos de união estável, que se equipara ao casamento.
Assim, tentam desviar o ponto central da questão colocada em julgamento pelo CNJ.
Afinal, todas as vezes em que se cria uma cortina de fumaça, a visão fica obnubilada e os verdadeiros propósitos e fundamentos do pedido de ADFAS podem não ser devidamente enxergados.
Primeiramente, é preciso esclarecer que a ADFAS não quer proibir que as pessoas vivam como quiserem. Diante dos elevados conhecimentos jurídicos que têm os renomados juristas que integram essa Associação, certamente jamais seria realizado esse pedido ao CNJ.
Portanto, não se pretende violação à liberdade das pessoas, tampouco punição a quem quer viver a três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez ou vinte pessoas em comunidade sexual, ou em na chamada relação afetiva, expressão utilizada para suavizar o peso da primeira expressão.
Muito menos é pretendida a aplicação der qualquer sanção a quem escolher esse modo de convivência.
Quanto à interferência do Estado na intimidade ou vida privada das pessoas, não é isto que se pretende.
Tampouco a ADFAS pretende fazer valer moralismo autoritário.
Conforme a ADFAS deixou claro em seu pedido de providências, o que se requer é que o CNJ, que tem a atribuição de expedir Recomendações, Provimentos, Instruções, Orientações e outros atos normativos destinados às atividades dos serviços notariais, vede a lavratura de escrituras de relações poligâmicas com efeitos de união estável, que, no Brasil, se equipara ao casamento.
Assim, cada um viva como quiser, desde que cumpra a lei! E aqui não se trata de interferência indevida do Estado.
A lei deve ser cumprida por todos! Quando se trata de um Tabelionato de Notas, que tem fé pública, a lei não pode, em nenhuma hipótese, ser descumprida!
A Constituição Federal estabelece que a proteção especial do Estado se destina à união estável constituída por duas pessoas, um homem e uma mulher (art. 6, caput e § 3º). O Código Civil também estabelece que a união estável pode existir entre um homem e uma mulher (art. 17). O Supremo Tribunal Federal também foi muito claro ao interpretar a lei vigente sobre uniões heterossexuais e aplicá-la aos homossexuais desde que vivam em monogamia.
Portanto, não pode haver qualquer dúvida sobre a natureza monogâmica da união estável hetero ou homossexual.
Aqui é bom esclarecer que o termo homossexual não leva em si qualquer preconceito. Os heterossexuais nem sempre são afetivos e por isto não são chamados de heteroafetivos. Os homossexuais também não são sempre afetivos, não cabendo a utilização da expressão homoafetivos.
Note-se que a Lei Federal 8.935/94, que regula a atividade notarial e registral, determina que os serviços notariais são “destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (art. 1º). Ao lavrar uma escritura que não tem eficácia, porque contraria a lei, o Tabelionato de Notas não cumpre sua função, ao contrário, viola seus deveres funcionais.
Assim, não se trata de moralismo autoritário, mas, sim, de pedido de providências para que os Tabelionatos de Notas não se transformem em legisladores, ou, ainda mais, legisladores constituintes, modificando a seu talante exclusivo as leis, inclusive as normas constitucionais, às custas dos incautos “trisais” que lhes pagam emolumentos para lavrar uma escritura nula ou ineficaz.
O Brasil é efetivamente um Estado laico, o que não pode ser confundido com um país sem leis. Nosso Brasil tem leis, que organizam a sociedade. Porque o nosso país não tem uma religião, isto não dá um Tabelionato de Notas a possibilidade de descumprir os ditames legais.
Se as leis brasileiras, baseadas nos costumes de nossa nação, pudessem ser desrespeitadas, pode-se imaginar que leis, fundamentadas em costumes de países que adotam a poligamia, poderiam ser aplicadas no Brasil, desde as que exigem a permissão do “guardião homem” (pai ou marido) para uma mulher casar-se, solicitar a emissão de passaporte, viajar para o exterior, abrir uma conta bancária, começar algum tipo de negócio ou passar por uma intervenção médica, assim como as que dão à mulher o direito de ter a guarda somente de filhos homens até os sete anos e de filhas mulheres até os nove anos, até aquelas normas consuetudinárias (ligadas aos costumes) que dão ao homem o direito de apedrejar a mulher adúltera.
Recordem-se os dados que apresentei em artigo anterior sobre a desigualdade entre homens e mulheres nos países que adotam a poligamia (aqui).
Somente num país que não fosse levado a sério, um Tabelião de Notas poderia ser autorizado a lavrar uma escritura pública, declarando que um “trisal” vive uma relação familiar e equiparando essa relação a uma união estável, com os efeitos respectivos, em violação evidente da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional.
Esperamos que esse não seja o nosso Brasil!
Em razão de todas as leis brasileiras terem como base a monogamia, desde as que protegem a família, até as que regulam os mais variados benefícios por dependência conjugal, como as leis da previdência social, há inegável fundamento para ser dada procedência ao pedido de providências da ADFAS, como bem já votou o Digno Relator do processo, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro João Otávio de Noronha.
Certamente, com a sabedoria dos membros do CNJ, a cortina de fogo que tentam fazer não os obnubilará no julgamento do pedido de providências da ADFAS.
*Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Doutora em Direito pela USP e advogada
Publicação original: O Estado de São Paulo Digital – Blog do Fausto Macedo (/05/28)

Fale conosco
Send via WhatsApp