A ESCRITURA PÚBLICA DE UM TRIO SUPOSTAMENTE FAMILIAR
* Por Regina Beatriz Tavares da Silva
Foi noticiada em vários meios de comunicação a lavratura de escritura pública de união estável entre três mulheres. A Tabeliã de Notas, Fernanda de Freitas Leitão, do 15º Ofício do Rio de Janeiro, que lavrou a referida escritura, afirmou que o fundamento para sua decisão seria o mesmo do Supremo Tribunal Federal quando do reconhecimento da legalidade da união estável entre pessoas no mesmo sexo. Afirma, também, que desde a Constituição Federal de 1988 o afeto é a base do Direito de Família e que, no âmbito do Direito Civil, o que não está proibido está permitido. Deve ser notada a sedução que reside na utilização de expressões como poliafeto ou poliamor. Essa expressão é um engodo, na medida em que, por meio de sua utilização, procura-se validar relacionamentos com formação poligâmica. Deve-se afastar o argumento falacioso segundo o qual todas as relações em que há afetividade devem ser protegidas pelo direito. O direito somente tutela a afetividade em caso de relações lícitas, válidas e que acatam a ordem jurídica. A nossa sociedade não aceita a poligamia e não existe suporte normativo em nosso Ordenamento Jurídico para atribuição de efeitos de Direito de Família e de Direito Sucessório a este tipo de relação.
Importa mencionar que a poligamia é adotada em poucas regiões do mundo, na maior parte da África e na menor parte da Ásia. Grande parte destas regiões são, não coincidentemente, as que apresentam os piores Índices de Desenvolvimento Humano. Na maior parte dos países ocidentais vigora a monogamia, ou seja, o casamento e a união estável somente existem entre duas pessoas.
Os direitos à liberdade e à felicidade não podem implicar completa ausência de limitações. O direito à liberdade tem limitações inerentes aos princípios e normas cristalizadas na sociedade. Se alguém quer viver uma união poligâmica, nada o impedirá, mas não serão atribuídos efeitos de direito de família, como pensão alimentícia e regime de bens, assim como não existirão efeitos de direito sucessório.
Cabe, então, demonstrar a invalidade da escritura pública da união de três mulheres à luz dos elementos constitucionais e infraconstitucionais brasileiros. A escritura do trio não tem eficácia jurídica, viola os mais básicos princípios familiares, as regras constitucionais sobre família, a dignidade da pessoa humana e as leis civis, assim como contraria a moral e os costumes da nação brasileira.
A escritura lavrada no Rio de Janeiro de nada servirá a essas três pessoas, é inútil, uma vez que a Constituição Federal atribui à união estável a natureza monogâmica, formada por duas pessoas (CF, art. 226, § 3º).
O Código Civil brasileiro traz no art. 1.723, caput, o reconhecimento da união estável como entidade familiar, destacando sua formação entre o homem e a mulher e seu objetivo específico de constituição de família. Esse artigo passou a ser aplicado também à união homossexual em razão do acórdão proferido pelo STF na ADPF 132 e ADI 4277. Note-se, que ao contrário do que afirma a Tabeliã, o Supremo Tribunal Feral não desvinculou o instituto da união estável de sua natureza monogâmica; somente há união estável homoafetiva se constituída por duas pessoas.
Ademais, a poligamia é rejeitada pelo STJ. Cite-se acórdão proferido pelo STJ no Resp 1.348.458/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, que assentou que a fidelidade compõe o conceito de lealdade, sendo desprovida de efeitos jurídicos a união que se forma por mais do que duas pessoas. Ademais, asseverou a Ministra que o reconhecimento da união estável está atrelado à proteção da dignidade da pessoa humana, ligado à solidariedade, à afetividade, à felicidade, à liberdade, à igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com a indispensável eticidade na análise do caso concreto.
Já no que diz respeito à pretensão do trio em gerar um filho por meio de inseminação artificial, ela encontrará óbice se a esta gestação se seguir a tentativa de registro triplo de maternidade desta criança. É que o STJ também adota posição contrária à multiparentalidade como se conclui do Resp 1.333.086/RO, julgado em 06/10/2015.