O CONTRATO DE COPARENTALIDADE E A FINALIDADE (IR)RESISTÍVEL: A (DES)CARACTERIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL
Por Danilo Porfírio de Castro Vieira [1], originalmente publicado no Migalhas
Sumário
1. O modelo plural e eudemonista de família e o contrato de coparentalidade. 2. O verdadeiro problema enfrentado: união estável, requisitos e natureza.
1. O modelo plural e eudemonista de família e o contrato de coparentalidade
O modelo rígido e tradicional de família sujeitou-se aos princípios e valores plurais-emancipacionistas moderno-liberais, como normativamente disposto na Constituição de 88 no Brasil.
O paradigma moderno de família basicamente tem as seguintes características:
a) pluralização, pois o matrimônio deixa de ser a única fonte de família;
b) igualdade, pois o pátrio-poder é substituído pelo poder de família, onde homens e mulheres coabitam em condição de igualdade;
c) democracia, dando fim a hierarquização das relações, inclusive entre pais e filhos; hetero ou homoparental, podendo ser constituídas por uniões ou matrimônios entre pessoas de sexos distintos ou do mesmo gênero;
d) biologização ou socioafetividade, onde a filiação deixa de ter hierarquia e não se restringe aos laços de sangue ou à adoção, considerando-se também a relação pública de afetividade;
e) dissolubilidade dos vínculos, fazendo com que os integrantes da família deixem de ser sua pertença.
Dentro da retórica de “constitucionalização” do Direito de Família, o princípio da Liberdade (art. 5. CF, art. 1.513 CC) torna-se o fundamento constitutivo, essencial para formação da organização familiar, pois ninguém é obrigado a constituir ou pertencer a uma família, mas ao constitui-la livremente assumem as consequências dos seus atos.
A liberdade tem efeitos na forma de organização familiar, prevalecendo agora o pluralismo. Com a inserção do pensamento plural-liberal, a Família Matrimonial, de natureza religiosa, ritualística e litúrgica deixa de ser o único meio constitutivo familiar abrindo espaço para outros modelos como:
a) União Estável;
b) Família Monoparental;
c) Família Anaparental;
d) Família Pluriparental ou Recomposta;
e) Família Socioafetiva;
f) Casamento e União Estável Homoafetiva.
Neste ambiente plural, há quem defenda uma outra modalidade de família: a coparental. A coparentalidade é tratada como a parceria paterno/materna, a união de esforços afetivos, morais e patrimoniais em prol da gestação de um filho. Os parceiros coparentais, porém, não buscam relações afetivas (conjugalidade) entre si.
O que há é o desejo comum de gerar e criar um filho.
Sob o argumento do desenvolvimento das técnicas da engenharia genética (reprodução assistida) e da possibilidade de parcerias parentais, da escolha de parceiros para compartilhar a paternidade/maternidade, facilitada pelas redes sociais e sites de relacionamentos virtuais, levanta-se a possibilidade de reconhecimento dessa nova entidade familiar.
Entretanto, os compromissos, as ações compartilhadas e a convivência resultante dos atos que caracterizam o novo paradigma familiar e sua publicidade, poderiam ser identificados como uma União Estável, diante da pobreza dos requisitos legais deste tipo de família, em que não se exige sequer coabitação ou unicidade domiciliar para a sua configuração.
Daí a defesa da ideia do contrato de coparentalidade.
Seria o contrato expresso ou tácito, entre duas pessoas, para gerarem um filho, que declararia a existência de apenas uma família parental (conjunção ou comutatividade de monoparentalidades), sem que haja uma relação amorosa ou conjugal. Comutatividade ou conjunção de coparentalidades pois juridicamente se entende que maternidade e a paternidade são funções exercidas, independentes de conjugalidade, em campos separados.
Em suma, ter filhos e exercer as funções/autoridade familiar não está sujeito a uma relação conjugal ou amorosa.
O referido contrato ou declaração estaria fundado nos princípios constitucionais do melhor interesse da criança/adolescente, paternidade responsável, pluralidade das formas de família, responsabilidade, mínima intervenção do Estado e todos sob a égide do macro princípio da dignidade humana, autorizando os indivíduos a constituírem famílias, conjugais ou parentais, da melhor forma que entenderem.
O caso que contemporaneamente se levanta na mídia é o do falecido apresentador Gugu Liberato, cogitando-se a existência da família ectogenética ou a coparental. As famílias ectogenéticas são constituídas com a ajuda de técnicas de Reprodução Assistida, as barrigas de aluguel (útero de substituição) ou por doação de material genético a casal, intermediada por clínica especializada; e as famílias coparentais, proporcionadas por redes de amizades reais ou virtuais, em que as partes desejam ter filhos em sistema de cooperação.
Como exposto nos veículos de comunicação, com a morte do apresentador, o problema evidencia-se na rusga entre os parceiros ou na morte de um deles, em função da divisão patrimonial. Na dificuldade de distinção entre união estável, namoro e coparentalidade, as dificuldades na solução de controvérsias deste tipo se agravam.
No contrato de coparentalidade, ou de geração de filhos, o intuito é dispor do indisponível, ser (e como ser) pai e mãe e estabelecer uma boa relação entre os genitores (ditar “cláusulas de amizade”), com a possibilidade de amizade “colorida” (relação sexual eventual), além de se evitar a caracterização da união estável.
Na distinção entre conjugalidade (elo amoroso sexual permanente) e parentalidade, deixa-se de lado algumas questões pertinentes ao direito de família: a constituição de vida comum (comunhão e solidariedade entre as partes), em tempos em que há publicidade da vida em comum ou da socioafetividade nas redes sociais e em outros veículos de comunicação, embora sem a publicidade da intimidade (sexual) dos parceiros, e da tendência de reconhecimento da união estável como ato-fato.
2. O verdadeiro problema enfrentado: união estável, requisitos e natureza
Anteriormente ao regime constitucional de 88, somente eram reconhecidas como entidades familiares aquelas decorrentes do casamento. Após a promulgação da Carta Constitucional, as Uniões Estáveis foram reconhecidas como entidades familiares.
A lei 8.971/94 constituiu os requisitos para reconhecimento da União Estável, inclusive com a fixação de tempo mínimo para a caracterização da união. Já a lei 9.278/96 estabeleceu, como requisitos caracterizadores da União Estável, a publicidade, durabilidade e continuidade da relação, sem que seja obrigatória a convivência sob o mesmo teto, com efeitos assemelhados aos do casamento, como o estabelecimento do regime de comunhão parcial de bens como regime legal (nessa lei erroneamente chamado de regime condominial), gerando a presunção juris et de jure de que os bens adquiridos na constância da relação foram adquiridos por esforço comum, garantindo a partilha igualitária dos bens.
A sua equiparação ao Casamento, especificamente na ordem de vocação hereditária, ocorreu, na vigência do Código Civil de 20, com o RE 878.694 de repercussão geral no STF, que, assim, excepcionou somente a liberdade testamentária e a mínima quarta parte da herança. Porém, continuando o silêncio sobre a necessidade de coabitação, sendo entendida pela jurisprudência majoritária a desnecessidade de coabitação dos companheiros para a caracterização da União Estável.
O Código Civil de 20, em seu art. 1.7, determina que a União Estável é caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família entre homem e mulher. Com o RE 646.7, superou-se a restrição de sexo e gênero, quando se reconheceu como entidade familiar a União Homafetiva.
Em princípio, a convivência pública é aquela em que as partes exteriorizam a condição de casados, sendo necessária a apresentação ostensiva e notória à sociedade (“posse de estado de casados”). A continuidade, perenidade e estabilidade devem também ser evidentes, sendo admitidas interrupções momentâneas e esporádicas.
No Código Civil de 20, que seguiu o disposto na lei 9.278/96, porém, não há estabelecimento temporal para a caracterização da União Estável, contrariamente ao disposto no art. 1º, da lei 8.971/94 que estabelecia a duração mínima de 5 anos de relacionamento para a caracterização da União Estável ou a existência de prole em comum. Há apenas a necessidade de demonstração do relacionamento more uxorio (comunhão de vidas, com assistência moral e material).
A ausência legal de exigência de prazo mínimo de convivência também mitiga as formas de distinção de um namoro ou outras formas de relacionamento.
A resposta para a distinção estaria na substância constitutiva de família, ou seja, na intenção (animus) das partes, que devem decidir livre e consensualmente por uma vida em comum com a constituição de uma entidade familiar, e exercer essa vida (affectio societatis) de forma pública, não se restringindo apenas e tão somente à existência de filhos. A União Estável, portanto, se assenta no princípio da socioafetividade.
A proposta dos legisladores constitucionais e civis, em alinhamento aos preceitos da privacidade, intimidade, autonomia/afetividade e da mínima intervenção do Estado no Direito de Família, a União Estável deveria ser, por natureza, um ato jurídico em sentido estrito.
Conforme a tradição jurídica romano-germânica, o ato jurídico em sentido estrito é a vontade adequada ao parâmetro legal, ou seja, uma manifestação volitiva submissa à lei. O ato caracteriza-se pela sujeição aos critérios de autonomia, pois não há propriamente uma autorregulação da vontade para a realização dos fins a serem alcançados (não se estipula por cláusulas contratuais), mas os ditames traçados pela lei devem ser obedecidos em total conformidade. Um ato de vontade que não se basta no exercício da autonomia, entretanto, é imprescindível, sujeitando-se a exigências legais, de ordem formal ou material (preordenação da lei). No ato jurídico em sentido estrito, a intenção das partes é considerada em segundo plano, mas não é menosprezada.
O ato jurídico em sentido estrito enquanto manifestação de vontade, presente na exteriorização das vontades dentro dos ditames legais, demonstrado pelo comportamento, pelas ações e condutas reconhecidas socialmente. Neste sentido, mesmo existindo instrumento público, em que as partes consensualmente expressem ou ratifiquem a existência da União Estável, a declaração não é suficiente para estabelecer a relação jurídica, conforme ordenamento legal da união estável.
A União Estável, como forma fluida de relação afetiva e ente constitutivo-familiar, sujeita a vontade das partes às exigências legais mínimas para sua existência, validade e eficácia.
Há, porém, uma tendência problemática e crescente na doutrina e na jurisprudência que reconhece a União Estável como ato-fato jurídico. O ato-fato é um fato humano, sem ser tratado como ato jurídico, pois se desconsidera a intenção humana, abstraindo do fenômeno humano a volição que provocou sua criação. O esvaziamento volitivo transforma o actus em factum, e assim será reconhecido no mundo jurídico.
Os atos-fatos são classificados como:
a) atos-fatos reais ou materiais, quando consistem em ato humano do qual resultam circunstâncias fáticas;
b) atos-fatos indenizatórios, que atingem lesivamente direitos de terceiros, gerando o dever de reparar;
c) os atos-fatos caducificantes, que geram efeitos extintivos de direitos, como a prescrição e a decadência.
A União Estável se enquadraria na categoria de atos-fatos materiais, ou seja, não há a condicionante da manifestação ou declaração de vontade para constitui-la, bastando sua configuração fática, seu enquadramento às normas legais e sua conversão em relação jurídica.
Em tempos da sociedade em rede, de plataformas de internet e de endêmica circulação de imagens e depoimentos pessoais na web, o entendimento de que União Estável é ato-fato jurídico, da não exigência de residência comum do casal e da inexistência de um prazo mínimo contínuo de convivência, o mundo fático pode sujeitar-se a aparências, dificultando a sua distinção com a relação familiar coparental e o namoro.
A dificuldade na distinção fático-jurídica entre o namoro e a União Estável, não somente desestimula relacionamentos como também, em alguns casos, cria mecanismos heterodoxos que visam evitar consequências jurídico-patrimoniais, como o “contrato de namoro” e o “contrato coparental”.
Esses tipos de “contratos” são atípicos, com embasamento no art. 425 do Código Civil e sua natureza jurídica é meramente declaratória, em que as partes “contratantes” declaram que a relação havida entre elas não constitui União Estável.
Porém, sendo a União Estável um ato jurídico ou ato-fato jurídico, o contrato ou termo, como um mero instrumento declaratório de vontade, não possui a eficácia pretendida.
Ressalte-se que a norma jurídica de reconhecimento da União Estável tem caráter impositivo, ou seja, estando os requisitos para a constituição da União Estável presentes não podem as partes optar por não a reconhecer.
No mesmo sentido, não podem as partes, estando presentes as características da União Estável, dispor previamente e contratualmente pela não existência da relação.
Por não ser um contrato, mas apenas uma declaração, nos moldes do art. 7 do Código Civil, o termo em que se declara a existência de namoro pode ser havido somente como meio de prova, como sempre afirmou Regina Beatriz Tavares da Silva, desde os idos de 2003, já que esse termo não cria ou modifica uma relação jurídica, exatamente porque o namoro não tem esta qualidade, sendo também observada a sua contestabilidade, mesmo que o termo seja lavrado por instrumento público.
Especificamente sobre o contrato de coparentalidade, não só há um problema de eficácia, pela natureza das relações jurídicas, mas, no afã de se distanciar da união estável e de seus efeitos patrimoniais (intervivos ou sucessórios) e extrapatrimoniais (como o dever de alimentos), a declaração é inválida, pois busca dispor daquilo que é simplesmente indisponível, intangível e personalíssimo: os direitos e deveres de filiação e o direito de personalidade do filho.
No afã da família eudemonista, na pregação de relações afetivas e despatrimonializadas, o que se observa é o desencantamento e a instrumentalização das relações familiares! Rememorando Axel Honneth, o que se observa é a reificação (coisificação) das relações e de seus agentes, sob a justificativa contraditória e rasa da defesa da dignidade e felicidade.
Em Webinar realizado na Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), intitulado Contrato de Coparentalidade, que se encontra disponível no portal de nossa Associação, a participação de juristas nacionais e internacionais, em debates sobre o tema, acrescenta opiniões abalizadas e consoantes ao que neste artigo é exposto.
Referências
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[1] Doutor em Ciências Sociais pela Unesp. Professor de Relações Internacionais e Direito no Uniceub. Presidente da Comissão de Liberdades religiosas da OAB/DF. Membro Associado da ADFAS. Sócio do escritório Chaves, Porfirio Vieira Advogados.