STJ RECONHECE POSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO DE PATERNIDADE EM CASO DE ABANDONO MORAL
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤPor Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS e ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤMaria Luiza de Moraes Barros, Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Associada da ADFAS.
Em recente julgamento paradigmático, a 3ª T. do Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou, no Recurso Especial 2.117.287/PR, a possibilidade de um filho maior de idade pleitear a extinção do vínculo de paternidade com o pai biológico que não exerceu os seus deveres. A controvérsia girou em torno de situação de abandono material e moral, marcada pela ausência de convivência e pelo desinteresse do pai ao longo da vida do filho.
Ainda que inexista previsão legal expressa para a desconstituição do vínculo de filiação por esse motivo, a Ministra Nancy Andrighi, Relatora do acórdão, fundamentou sua decisão em interpretação sistemática do ordenamento jurídico, com base no princípio constitucional da paternidade responsável (artigos 227 e 229 da Constituição Federal). Destacou-se, assim, a lacuna normativa existente e a necessidade de legislação específica sobre o tema.
A sentença de 1ª instância baseou-se no art. 1.614 do Código Civil, que trata da impugnação do reconhecimento da paternidade nos quatro anos posteriores à maioridade ou emancipação. Embora pensado para hipóteses de vício de vontade ou ausência de vínculo biológico, esse artigo foi interpretado de forma ampliativa diante da inexistência de norma própria para os casos de abandono. Já o art. 1.638, inciso I — aplicado pelo Tribunal do Paraná — refere-se à perda do poder familiar em relação a filhos menores, sem extinguir o vínculo de filiação, de modo que o pai permanece obrigado a pagar pensão alimentícia ao filho, que também permanece como seu sucessor.
O STJ reafirmou que não há norma legal que preveja a extinção do vínculo de paternidade por abandono, tendo recorrido à analogia com precedentes relativos a erro no reconhecimento da paternidade[i] e à reparação civil por abandono[ii]. Nesse contexto, o STJ acolheu os argumentos do autor, reconhecendo a inexistência do vínculo socioafetivo somada ao inadimplemento dos deveres paternos.
Importa ressaltar que a expressão “abandono afetivo”, embora recorrente na linguagem judicial, significa falta de amor, sentimento cuja subjetividade é imensurável processualmente. Por isto o termo mais apropriado é “abandono moral”, que permite a avaliação objetiva da conduta parental e tem consonância com precedentes do próprio STJ. Nas palavras da Ministra Nancy Andrighi:
“Amar é faculdade, cuidar é dever. (…) O amor diz respeito à motivação (…) no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos: presença, contatos, ações voluntárias em favor da prole.” (REsp 1.159.242/SP, DJe 28/04/2009)
Esse destaque sintetiza de forma exemplar a distinção entre o universo subjetivo dos sentimentos e a realidade jurídica das obrigações parentais. O afeto escapa do controle judicial, enquanto o cuidado é mensurável no crivo do Poder Judiciário. Revelando-se, assim, terminologicamente mais adequado — e juridicamente mais seguro — o uso da expressão abandono moral, ao permitir avaliação objetiva da conduta paterna[iii].
A afetividade, por ser subjetiva, não pode ser tratada como princípio autônomo do Direito de Família. As decisões judiciais devem ter por base o descumprimento de deveres jurídicos, e não a ausência de sentimentos.
A manutenção de vínculos meramente formais, destituídos de qualquer correspondência no plano dos fatos, pode gerar efeitos indesejáveis. Sem a desconstituição do vínculo biológico, o pai conservaria os direitos sucessórios previstos no art. 1.829, inciso I, do Código Civil, figurando como herdeiro necessário do filho na ausência de descendentes, mesmo que jamais tenha exercido a função paterna.
É nesse contexto que se insere a necessidade de reforma legislativa, com a inclusão de hipóteses objetivas de exclusão sucessória — por indignidade ou deserdação — nos casos de abandono material e moral do filho. Existem projetos em tramitação, mas muitos incorrem no equívoco de fundamentar suas propostas a partir de critérios subjetivos, o que comprometem a objetividade das propostas. A linguagem legislativa deve priorizar critérios técnicos e condutas verificáveis, como o descumprimento dos deveres parentais.
A decisão do STJ reforça a necessidade de reforma legislativa que contemple hipóteses claras tanto de desconstituição do vínculo de paternidade quanto de exclusão sucessória, com base em condutas objetivamente configuradas de abandono material e moral. A segurança jurídica e a proteção da dignidade do filho exigem normas fundadas na responsabilidade e no cumprimento dos encargos familiares — e não em afetos flutuantes.
Referências:
[i] REsp 1.814.330/SP.
[ii] REsp 1.887.697/RJ.
[iii] Vide: CORREIA, Atalá. Insuficiência da afetividade como critério de determinação da paternidade. Revista de Direito Civil Contemporâneo, [S. l.], v. 14, p. 335–335, 2018. Disponível em: https://ojs.direitocivilcontemporaneo.com/index.php/rdcc/article/view/380.; MONTEIRO, Washington de Barros e TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.; MORAU, Caio. Direito de família e princípio da afetividade. São Paulo: Almedina, 2024. 222 p. (Coleção Universidade Católica de Brasília).; e PORFÍRIO, Danilo. Definição e natureza jurídica do princípio da afetividade. Revista de Direito de Famílias e das Sucessões, v. 3/2015, p. 39-55. São Paulo: Ed RT, abr-mar. 2012.