STJ: FIXAÇÃO DE VALOR DE ADIANTAMENTO DE HERANÇA NÃO CONFIGURA NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO
Classe do Processo: Recurso Especial nº 1.738.656-RJ
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Órgão julgador: 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Data do julgamento: 03/12/20, publicado no DJe em 05/12/20
Ementa:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO. CLÁUSULA GERAL DO ART. 0 DO NOVO CPC. AUMENTO DO PROTAGONISMO DAS PARTES, EQUILIBRANDO-SE AS VERTENTES DO CONTRATUALISMO E DO PUBLICISMO PROCESSUAL, SEM DESPIR O JUIZ DE PODERES ESSENCIAIS À OBTENÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA, CÉLERE E JUSTA. CONTROLE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS QUANTO AO OBJETO E ABRANGÊNCIA. POSSIBILIDADE. DEVER DE EXTIRPAR AS QUESTÕES NÃO CONVENCIONADAS E QUE NÃO PODEM SER SUBTRAÍDAS DO PODER JUDICIÁRIO. NEGÓCIO JURÍDICO ENTRE HERDEIROS QUE PACTUARAM SOBRE RETIRADA MENSAL PARA CUSTEIO DE DESPESAS, A SER ANTECIPADA COM OS FRUTOS E RENDIMENTOS DOS BENS. AUSÊNCIA DE CONSENSO SOBRE O VALOR EXATO A SER RECEBIDO POR UM HERDEIRO. ARBITRAMENTO JUDICIAL. SUPERVENIÊNCIA DE PEDIDO DE MAJORAÇÃO DO VALOR PELO HERDEIRO. POSSIBILIDADE DE EXAME PELO PODER JUDICIÁRIO. QUESTÃO NÃO ABRANGIDA PELA CONVENÇÃO QUE VERSA TAMBÉM SOBRE O DIREITO MATERIAL CONTROVERTIDO. INEXISTÊNCIA DE VINCULAÇÃO DO JUIZ AO DECIDIDO, ESPECIALMENTE QUANDO HOUVER ALEGAÇÃO DE SUPERVENIENTE MODIFICAÇÃO DO SUBSTRATO FÁTICO. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO QUE APENAS PODE SER BILATERAL, LIMITADOS AOS SUJEITOS PROCESSUAIS PARCIAIS. JUIZ QUE NÃO PODE SER SUJEITO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. INTERPRETAÇÃO ESTRITIVA DO OBJETO E DA ABRANGÊNCIA DO NEGÓCIO. NÃO SUBSTRAÇÃO DO EXAME DO PODER JUDICIÁRIO DE QUESTÕES QUE DESBORDEM O OBJETO CONVENCIONADO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA. REVISÃO DO VALOR QUE PODE SER TAMBÉM DECIDIDA À LUZ DO MICROSSISTEMA DE TUTELAS PROVISÓRIAS. ART. 647, PARÁGRAFO ÚNICO, DO NOVO CPC. SUPOSTA NOVIDADE. TUTELA PROVISÓRIA EM INVENTÁRIO ADMITIDA, NA MODALIDADE URGÊNCIA E EVIDÊNCIA, DESDE A REFORMA PROCESSUAL DE 94, COMPLEMENTADA PELA REFORMA DE 20. CONCRETUDE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO E DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. HIPÓTESE ESPECÍFICA DE TUTELA PROVISÓRIA DA EVIDÊNCIA QUE OBVIAMENTE NÃO EXCLUI DA APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA. REQUISITOS PROCESSUAIS DISTINTOS. EXAME, PELO ACÓRDÃO RECORRIDO, APENAS DA TUTELA DA EVIDÊNCIA. ACORDO REALIZADO ENTRE OS HERDEIROS COM FEIÇÕES PARTICULARES QUE O ASSEMELHAM A PENSÃO ALIMENTÍCIA CONVENCIONAL E PROVISÓRIA. ALEGADA MODIFICAÇÃO DO SUBSTRATO FÁTICO. QUESTÃO NÃO EXAMINADA PELO ACÓRDÃO RECORRIDO. REJULGAMENTO DO RECURSO À LUZ DOS PRESSUPOSTOS DA TUTELA DE URGÊNCIA.
1- Recurso especial interposto em 12/26 e atribuído à Relatora em 25//28.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se a fixação de determinado valor a ser recebido mensalmente pelo herdeiro a título de adiantamento de herança configura negócio jurídico processual atípico na forma do art. 0, caput, do novo CPC; (ii) se a antecipação de uso e de fruição da herança prevista no art. 647, parágrafo único, do novo CPC, é hipótese de tutela da evidência distinta daquela genericamente prevista no art. 3 do novo CPC.
3- Embora existissem negócios jurídicos processuais típicos no CPC/73, é correto afirmar que inova o CPC/ ao prever uma cláusula geral de negociação por meio da qual se concedem às partes mais poderes para convencionar sobre matéria processual, modificando substancialmente a disciplina legal sobre o tema, especialmente porque se passa a admitir a celebração de negócios processuais não especificados na legislação, isto é, atípicos.
4- O novo CPC, pois, pretende melhor equilibrar a constante e histórica tensão entre os antagônicos fenômenos do contratualismo e do publicismo processual, de modo a permitir uma maior participação e contribuição das partes para a obtenção da tutela jurisdicional efetiva, célere e justa, sem despir o juiz, todavia, de uma gama suficientemente ampla de poderes essenciais para que se atinja esse resultado, o que inclui, evidentemente, a possibilidade do controle de validade dos referidos acordos pelo Poder Judiciário, que poderá negar a sua aplicação, por exemplo, se houver nulidade.
5- Dentre os poderes atribuídos ao juiz para o controle dos negócios jurídicos processuais celebrados entre as partes está o de delimitar precisamente o seu objeto e abrangência, cabendo-lhe decotar, quando necessário, as questões que não foram expressamente pactuadas pelas partes e que, por isso mesmo, não podem ser subtraídas do exame do Poder Judiciário.
6- Na hipótese, convencionaram os herdeiros que todos eles fariam jus a uma retirada mensal para custear as suas despesas ordinárias, a ser antecipada com os frutos e os rendimentos dos bens pertencentes ao espólio, até que fosse ultimada a partilha, não tendo havido consenso, contudo, quanto ao exato valor da retirada mensal de um dos herdeiros, de modo que coube ao magistrado arbitrá-lo.
7- A superveniente pretensão do herdeiro, que busca a majoração do valor que havia sido arbitrado judicialmente em momento anterior, fundada na possibilidade de aumento sem prejuízo ao espólio e na necessidade de fixação de um novo valor em razão de modificação de suas condições, evidentemente não está abrangida pela convenção anteriormente firmada.
8- Admitir que o referido acordo, que sequer se pode conceituar como um negócio processual puro, pois o seu objeto é o próprio direito material que se discute e que se pretende obter na ação de inventário, impediria novo exame do valor a ser destinado ao herdeiro pelo Poder Judiciário, resultaria na conclusão de que o juiz teria se tornado igualmente sujeito do negócio avençado entre as partes e, como é cediço, o juiz nunca foi, não é e nem tampouco poderá ser sujeito de negócio jurídico material ou processual que lhe seja dado conhecer no exercício da judicatura, especialmente porque os negócios jurídicos processuais atípicos autorizados pelo novo CPC são apenas os bilaterais, isto é, àqueles celebrados entre os sujeitos processuais parciais.
9- A interpretação acerca do objeto e da abrangência do negócio deve ser restritiva, de modo a não subtrair do Poder Judiciário o exame de questões relacionadas ao direito material ou processual que obviamente desbordem do objeto convencionado entre os litigantes, sob pena de ferir de morte o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal e do art. 3º, caput, do novo CPC.
– A possibilidade de revisão do valor que se poderá antecipar ao herdeiro também é admissível sob a lente das tutelas provisórias, sendo relevante destacar, nesse particular, que embora se diga que o art. 647, parágrafo único, do novo CPC seja uma completa inovação no ordenamento jurídico processual brasileiro, a tutela provisória já era admitida, inclusive em ações de inventário, desde a reforma processual de 94, que passou a admitir genericamente a concessão de tutela antecipatória, em qualquer espécie de procedimento, fundada em urgência (art. 273, I, do CPC/73) ou na evidência (art. 273, II, do CPC/73), complementada pela reforma de 20, que introduziu a concessão da tutela fundada em incontrovérsia (art. 273, §6º, do CPC/73), microssistema que deu concretude aos princípios constitucionais da inafastabilidade da tutela jurisdicional e da razoável duração do processo.
– O fato de o art. 647, parágrafo único, do novo CPC, prever uma hipótese específica de tutela provisória da evidência evidentemente não exclui da apreciação do Poder Judiciário a pretensão antecipatória, inclusive formulada em ação de inventário, que se funde em urgência, ante a sua matriz essencialmente constitucional.
12- A antecipação da fruição e do uso de bens que compõem a herança é admissível: (i) por tutela provisória da evidência, se não houver controvérsia ou oposição dos demais herdeiros quanto ao uso, fruição e provável destino do referido bem a quem pleiteia a antecipação; (ii) por tutela provisória de urgência, independentemente de eventual controvérsia ou oposição dos demais herdeiros, se presentes os pressupostos legais.
13- Na hipótese, o acordo celebrado entre as partes é bastante singular, pois não versa sobre bens específicos, mas sobre rendimentos e frutos dos bens que compõem a herança ao espólio, bem como porque fora estipulado com o propósito específico de que cada herdeiro reunisse condições de custear as suas despesas do cotidiano, assemelhando-se, sobremaneira, a uma espécie de pensão alimentícia convencional a ser paga pelo espólio enquanto perdurar a ação de inventário e partilha.
– Tendo o acórdão recorrido se afastado dessas premissas, impõe-se o rejulgamento do recurso em 2º grau de jurisdição, a fim de que a questão relacionada à modificação do valor que havia sido arbitrado judicialmente seja decidida à luz da possibilidade de majoração sem prejuízo ao espólio e da necessidade demonstrada pelo herdeiro, o que não se pode fazer desde logo nesta Corte em virtude da necessidade de profunda incursão no acervo fático-probatório.
– Recurso especial conhecido e provido, para cassar o acórdão recorrido e determinar que o agravo de instrumento seja rejulgado à luz dos pressupostos da tutela provisória de urgência, observando-se, por fim, que eventual majoração deverá respeitar o limite correspondente ao quinhão hereditário que couber à parte insurgente.
Confira o acórdão:
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STJ - REsp 1738656-RJ
Baixe aqui o acórdão.
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