STF AFIRMA PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA SOBRE DIREITO PARENTAL

Em dezembro de 2020, ao julgar a constitucionalidade da “vacinação compulsória contra a covid-19” prevista na Lei 13.979/2020 (ADI 6.587, rel. min. Ricardo Lewandowski), o Supremo Tribunal Federal julgou, em conjunto, em sede de repercussão geral, o ARE 1.267.879, de relatoria do ministro Roberto Barroso, tema 1.103 da repercussão geral:

“Possibilidade dos pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais.”

O julgamento praticamente passou despercebido, uma vez que as atenções estavam voltadas para as políticas de enfrentamento à Covid-19 e, até aquele momento, pelo menos no Brasil, não havia previsão de vacinas para menores de 18 anos.
No entanto, a importância desse julgado transcende as questões relativas à pandemia e remete a um conflito muito mais antigo: quais os limites ao exercício do poder familiar pelos genitores? Em que medida o Estado pode interferir nas famílias e afastar as opiniões e escolhas dos pais em relação aos seus filhos?
O leading case originou-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra os pais de um menor, com a finalidade de obrigá-los a regularizar a carteira vacinal de seu filho, conforme o calendário de vacinas obrigatórias do Ministério da Saúde.
Segundo informações da inicial da ação, os pais seriam adeptos da filosofia vegana e, por essa razão, contrários a intervenções médicas invasivas. A ação foi julgada improcedente, em primeira instância, com fundamento na liberdade dos pais de guiarem a educação e preservarem a saúde dos filhos (arts. 227 e 229 da Constituição), sendo destacado na decisão que os pais teriam feito uma escolha consciente e informada, fundamentada em estudos acerca das reações e riscos da vacinação infantil de crianças saudáveis. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, reformou a sentença, julgando procedente a ação e determinando, inclusive, a busca e apreensão do menor para regularizar a carteira de vacinação. No acórdão objeto do recurso extraordinário, o Tribunal paulista afirmou não haver base científica para os alegados riscos à vacinação infantil e que os movimentos antivacina acabam trazendo graves riscos à cobertura imunológica de toda a sociedade. Utilizou-se do art. 14, parágrafo 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente que determina a vacinação de crianças quando há recomendação da autoridade sanitária.
Em sede de recurso extraordinário, os genitores do menor alegaram que: embora não vacinado, o filho possui boas condições de saúde, sendo acompanhado por médicos e cuidado pelos pais conforme a filosofia vegana, o que impediria a adoção de tratamentos médicos invasivos; que a escolha pela não vacinação é ideológica e informada, não podendo ser caracterizada como negligência; e que a norma legal que obriga a vacinação de crianças deve ser sopesada com a liberdade de consciência, convicção filosófica e intimidade, garantida no art. 5º., incisos VI, VIII e X, da Constituição Federal.
Ao se manifestar sobre a existência de repercussão geral, o Ministro Barroso observou que a controvérsia constitucional envolveria, justamente, “a definição dos contornos da relação entre Estado e família na garantia da saúde das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais“. Reconhece o direito dos pais de dirigirem a criação dos seus filhos e a liberdade de defenderem as bandeiras ideológicas, políticas e religiosas de sua escolha. Por outro lado, também entende presente o dever do Estado de proteger a saúde das crianças e da coletividade, sendo que o texto constitucional, em seu art. 225, garante a prioridade absoluta da criança.
Como o julgamento da repercussão geral foi em conjunto com a ação direta de inconstitucionalidade que tratava da vacinação compulsória da Covid-19, o enfoque do julgamento centrou-se mais nas políticas públicas de saúde, na defesa da segurança das vacinas aprovadas por órgãos sanitários, no combate às fake news e políticas de desinformação da população e nas competências dos entes federados, misturando-se o tema dos limites do poder parental frente à obrigatoriedade legal de vacinação de crianças e adolescentes, com as políticas de combate à pandemia em geral, tendo sido fixada a seguinte tese:

“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.”

Sem querer questionar a importância do julgado, especialmente diante do cenário enfrentado pelo país, na altura, de grave crise sanitária, entendo necessário analisar com cautela a tese fixada na repercussão geral naquilo em que importa limitação ao poder familiar, independentemente do contexto de uma pandemia.
Assim, se pensarmos em um cenário normal, em que as vacinas se colocam como rotineiras no combate de doenças infecciosas e conhecidas, será que a relativização do poder familiar por “determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico”, sem que haja lei a determinar a medida prevista, se justificaria? A abrangência da tese não poderia significar, para casos futuros, perigoso precedente a permitir excessiva intervenção do Estado na família?
Precisamos lembrar que não apenas a vacinação de crianças causa polêmica entre pais e a sociedade médica. Muitos tratamentos médicos podem ser indicados pelos médicos e não aceitos pelos pais, responsáveis pelo menor, que, como representantes legais, precisam autorizar o tratamento: cirurgias, transfusões de sangue, quimioterapia, etc… Em tais casos, será que a tese também se aplicaria, especialmente em relação a sua última proposição? E, afinal, o que é o “consenso científico”, apto a afastar o poder familiar nos caos em que a medida não é incluída como obrigatória pelo Sistema Nacional de Saúde com base legal?
Independentemente das dúvidas que a aplicação da tese poderá gerar no futuro, tendo em vista a sua objetivação e esperada separação do contexto pandêmico, um dos pontos mais importantes do precedente consiste na afirmação do princípio da absoluta prioridade da criança, bem como do princípio do melhor interesse da criança, normas que orientam as escolhas não só dos pais, detentores do poder familiar, como do Estado e da própria sociedade:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

A absoluta prioridade da criança e do adolescente, bem como seu melhor interesse, é importante norma constitucional, que deve orientar não só as decisões da família, importando em limitação ao exercício do poder familiar, como às decisões do Estado e da própria sociedade e que, na formulação e execução de políticas públicas, mesmo as de combate à pandemia da covid19, nem sempre tem sido lembrada.
Fonte: Conjur (23.10.21)

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