RESPONSABILIDADE CIVIL NO ROMPIMENTO DO CASAMENTO VI: COMULAÇÃO DE PEDIDOS DE SEPARAÇÃO JUDICIAL CULPOSA E REPARAÇÃO DE DANOS

Regina Beatriz Tavares da Silva

SÃO PAULO – Como visto nos artigos anteriores, a violação a dever, que fere um direito, e acarreta dano moral ou material configura ato ilícito, conforme dispõe o art. 186 do Código Civil brasileiro, segundo o qual “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”.

Esta é a regra geral da responsabilidade civil, constante da parte geral do referido Código e que é aplicável a todos os livros de sua parte especial, incluindo aquele do direito de família.

Nos artigos anteriores, tratei da responsabilidade civil no rompimento do casamento, analisando violações a deveres conjugais de ordem pessoal e patrimonial, que acarretaram danos morais e materiais, com a condenação do cônjuge culpado na respectiva reparação.

Neste artigo examinarei os aspectos processuais deste tema, referentes à possibilidade de cumulação, numa mesma demanda judicial, dos pedidos de separação judicial culposa e de reparação de danos.

Como já foi visto anteriormente, no sistema atual de causas de separação judicial, a aplicação dos princípios da responsabilidade civil no rompimento do casamento somente pode ser realizada se houver a decretação da culpa do cônjuge, fundamentada no art. 1.572, caput, do Código Civil, eis que é exclusivamente nesta espécie de separação que cabe a apuração do descumprimento de dever conjugal, ou seja da violação a direito do cônjuge lesado, como demonstrei em tese de doutorado defendida na USP sobre este tema, intitulada Reparação civil na separação e no divórcio, publicada pela Editora Saraiva.

Bem diferente, neste aspecto, a matéria da união estável, em que não existem formas pré-estabelecidas pela lei de dissolução deste tipo de relação familiar, como apontei em artigo sobre a Responsabilidade civil dos conviventes, in Síntese/IBDFAM, ano 1, nº 3, out.-nov.-dez. 1999, p. 24 a 39. Isto porque a união estável, sendo uma relação de fato, rompe-se também no plano dos fatos, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário para este fim, e, por conseguinte, sem que seja necessário o estabelecimento, pela lei, de formas dissolutórias. A intervenção do Poder Judiciário somente é necessária em casos de necessidade de regulamentação da guarda de filhos e das respectivas visitas, de necessidade de pensão alimentícia, de desacordo sobre a partilha de bens e de pedido indenizatório com aplicação dos princípios da responsabilidade civil.

Assim, a questão processual da cumulação de pedidos surge especialmente no rompimento do casamento.

Esta questão vem sendo objeto de vários julgados, não tendo posição pacífica no direito brasileiro.

No entanto, demonstraremos que é possível a referida cumulação.

Dispõe o art. 292, do Código de Processo Civil que “É permitida a cumulação num único processo, contra o mesmo réu, de vários pedidos, ainda que entre eles não haja conexão. § 1º São requisitos de admissibilidade da cumulação: – que os pedidos sejam compatíveis entre si; II – que seja competente para conhecer deles o mesmo juízo; III – que seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento.”

Os pedidos de separação judicial culposa e de reparação de danos são compatíveis entre si, já que ambos têm como fundamento a grave violação de dever conjugal, de modo a preencher o requisito estabelecido no inciso I, do § 1º, do artigo supra citado. Há verdadeira conexão, já que a causa de pedir da separação judicial culposa e da reparação de danos é o inadimplemento de dever oriundo do casamento.

O procedimento para ambos os pedidos é o ordinário, de modo que preenchido também está o requisito disposto no inciso III, do § 1º, do dispositivo legal acima mencionado.

Nos termos do inciso II, do § 1º, do dispositivo legal em tela, resta analisar a competência do Juízo da separação para processar e julgar o pedido reparatório, quando o processo deva tramitar em Comarca que tenha Varas especializadas, isto é, com competência específica para o julgamento de certas e determinadas matérias, no caso, as Vara de Família.

Para isso, é preciso verificar as normas de organização judiciária, que são estaduais.

Muito embora não seja possível, neste espaço, analisar as normas de organização judiciária de todos os estados brasileiros e saiba-se que têm variações redacionais, observa-se que, via de regra, referem as questões de direito de família e de estado das pessoas como de competência das Varas de Família.

Na conformidade do art. 37 do Código Judiciário do estado de São Paulo (Decreto-lei complementar nº 3, de 27/08/1969): “Aos Juízes das Varas de Família e Sucessões compete: I – processar e julgar: a) as ações relativas a estado, inclusive alimentos e sucessões, seus acessórios e incidentes”.

Assim, as normas de organização judiciária que vigoram no estado de São Paulo estabelecem a competência das Varas de Família para “ações relativas a estado” e “seus acessórios”, o que conduz ao cabimento de pedidos cumulativos, já que a reparação de danos é decorrente do descumprimento de dever conjugal, dever esse existente em razão do estado de casados entre os cônjuges, evidenciando-se aquele caráter acessório do pedido reparatório.

A matéria da reparação de danos em rompimento do casamento não tem natureza puramente civil ou comercial, sendo feitos desta natureza que são de competência das Vara Cíveis (Código Judiciário do estado de São Paulo, art. 34, inciso I).

Cite-se o acórdão proferido no recurso de agravo de instrumento nº 136.366-4/1, da Sexta Câmara de Direito Privado do TJSP, relatado pelo Desembargador Mohamed Amaro, segundo o qual a Vara de Família e Sucessões é competente para apreciar pedido de reparação civil, já que sua causa de pedir (causa petendi) não advém de relações meramente civis, mas, sim, de relações de família, as quais têm as suas especificidades, dentre as quais está o segredo de justiça. Na conformidade deste julgado, o caráter indenizatório dos alimentos solicitados naquela ação também leva à conclusão da possibilidade de cumulação com o pedido de reparação de danos, inexistindo razão lógica ou jurídica no desmembramento desses pedidos em Varas diferentes.

Outro julgado do TJSP, proferido pela Nona Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 278.218-4/3, Relator Desembargador Alberto Tedesco, também considerou competente a Vara de Família para julgar o pedido de reparação de danos, com a seguinte ementa: “Cumulação de pedidos- Separação judicial e indenização por danos morais – art. 292, do CPC – Possibilidade – Agravo provido”, tendo sido salientado que “É perfeitamente admissível no nosso ordenamento jurídico a indenização por dano moral quando a ofensa derivar das relações de casamento ou de família… Os pedidos são compatíveis…”

Julgado da lavra do então Desembargador Cezar Peluso, agora Ministro do Supremo Tribunal Federal, proferido no agravo de instrumento nº 146.186-4, pela 2ª Câmara de Direito Privado do TJSP, também considerou o Juízo de Família como competente para julgar os pedidos de separação judicial culposa e de indenização por dano moral oriundo de adultério, admitindo a cumulação, em razão do preenchimento dos requisitos do art. 292 do Código de Processo Civil.

Cite-se, ainda no TJSP, o acórdão publicado na JTJ 240/211, que também admitiu a cumulação na ação de separação judicial culposa do pedido de indenização por dano moral oriundo de adultério.

Regula a matéria no estado do Rio de Janeiro o CODJERJ, em seu art. 85, inciso I, alínea “a”, c/c art. 96. Neste estado vários julgados vêm admitindo a cumulação de pedidos, como aquele proferido pela Quarta Câmara Cível, relatado pelo Desembargador Fernando Cabral, no agravo de instrumento nº 2003.002.07724, pelo qual “Se o fundamento do pedido de indenização diz respeito à violação, por parte do cônjuge, dos deveres que deveria observar em razão do casamento, a competência para conhecer da matéria e julgá-la é do Juízo de família.”.

Outro julgado do TJRJ, no mesmo sentido, foi proferido no agravo de instrumento nº 2002.002.15637, pela Sétima Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Gustavo Horta, segundo o qual “É cabível em reconvenção pedido cumulativo de dano moral juntamente com o de separação judicial culposa, sendo o Juízo de Família competente para o processamento e julgamento de tal pedido, estando o fundamento da alegação na violação das obrigações do cônjuge.”.

No estado de Minas Gerais, a Lei Complementar nº 38 de 13/02/1995, em seu art. 66, estatui que “Competirá a Juiz de Família processar e julgar as causas relativas ao estado das pessoas e ao Direito de Família, respeitada a competência do Juiz da Infância e da Juventude.”.

No estado do Mato Grosso, a Resolução 001/99 determina a competência das Varas especializadas de Família para processar e julgar os “feitos referentes à família e às sucessões”. Já que o feito da reparação de danos é referente à família, essas Varas têm competência para julgá-lo juntamente com o feito da separação judicial culposa. Os pedidos de separação judicial culposa e de reparação de danos são, portanto, cumuláveis.

A Lei Complementar nº 165 de 28/04/1999, do estado do Rio Grande do Norte, no art. 32, inciso VI, alínea, nº 4, estabelece a competência de Vara de Família para “processar e julgar…feitos referentes ao Direito de Família…”. A questão da reparação de danos no rompimento do casamento é, indiscutivelmente, feito de direito de família. Assim, também neste estado, os pedidos de separação judicial culposa e de reparação de danos podem ser cumulados.

Já que é cabível pedido reparatório em rompimento de relação conjugal diante de descumprimento de dever oriundo do casamento, dever esse que resulta do estado de casados entre lesante e lesado, sendo essa questão de Direito de Família, parece-nos indiscutível a competência das Varas de Família para julgarem pedido de reparação de danos em ruptura do casamento, restando plenamente possibilitada a cumulação desse pedido com o de separação judicial culposa em todos os estados acima referidos.

A não aceitação da competência dos Juízos de Família para julgar pedido de reparação de danos em rompimento de casamento acarreta a tramitação da ação reparatória e da ação de separação judicial culposa perante Juízos ou Varas diferentes, com o risco evidente de decisões conflitantes, já que a causa de pedir nos dois feitos é a mesma: descumprimento de dever conjugal, além de contrariar os princípios da celeridade e economia processual, com a repetição dos mesmos atos processuais em dois feitos.

Muito embora seja recomendável a cumulação neste artigo analisada, observe-se que nada impede a propositura de ação de reparação de danos em autos próprios, desde que distribuída, por prevenção, ao Juízo em que tramita a ação de separação judicial culposa. Anote-se, ainda, que, após a sentença de separação judicial culposa ter transitado em julgado, desde que tenha reconhecido o descumprimento de dever oriundo do casamento por um dos cônjuges, também poderá, então, ser promovida a ação de reparação de danos.

No próximo artigo examinarei a possibilidade de condenação do cônjuge culpado pelo rompimento do casamento no pagamento de indenização dos danos morais e materiais causados ao consorte e também no pagamento de pensão alimentícia, institutos estes que têm natureza e finalidade diversas.

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