Regulamentação protetiva na reprodução assistida: Brasil à frente
Nesta semana volto ao tema da reprodução assistida.
Ilustrando meu ponto de vista com mais um infeliz caso concreto, pretendo mostrar que ao contrário do que se tem lido e escutado sobre o assunto, a reprodução assistida não é um procedimento médico banal como outro qualquer. Ao contrário, é algo que deve ser sempre muito bem pensado por casais, clínicas e médicos, além de reguladores e legisladores de todos os países, uma vez que possui efeitos de grande repercussão na vida das pessoas envolvidas e não está imune a certos riscos de dar errado, muitas vezes de maneira dramática, como sucedeu no caso que exponho a seguir.
Um casal de Las Palmas, na Espanha, resolveu ter um filho. Como o homem já realizara uma vasectomia, a única alternativa seria recorrer aos métodos de reprodução assistida, que, no caso deles, seria do tipo homólogo, aquela em que a inseminação é feita por via artificial, mas a partir dos gametas do próprio casal.
As chances de que a inseminação fosse bem-sucedida, tal como lhes explicou o médico da clínica procurada para o procedimento, eram extremamente reduzidas. Em razão da vasectomia, o sêmen do homem, que teria de ser extraído por uma biópsia testicular, possuía um potencial fertilizador muito pequeno.
Entretanto, para grande surpresa do casal, e ainda maior dos médicos que conduziram a fertilização, quatro dos cinco óvulos extraídos da mulher foram fecundados. Um aproveitamento incrível de 80%, raro até mesmo quando as condições de fertilização são mais favoráveis.
Implantado no útero da mulher, o óvulo fecundado resultou em gravidez de gêmeos. Mas a notícia, em vez de ser a alegria do casal, terminou por destruir seu relacionamento.
Após o parto, o marido tomou conhecimento que o fator RH do sangue das crianças era negativo, enquanto o seu e da esposa eram positivos. Embora não seja impossível que pais de RH positivo gerem uma criança de RH negativo, as chances disso ocorrer são relativamente pequenas, o que despertou no marido as primeiras suspeitas.
Depois de anos turbulentos no casamento, o casal decidiu se divorciar. E o marido declarou, para o completo choque de sua agora ex-esposa, que não reconhecia os filhos. Alguns anos antes, em segredo e depois de muitas suspeitas que o perturbavam a ponto de fazê-lo até alucinar, o homem havia realizado um teste de DNA cujo resultado fora negativo. Ele não era o pai daquelas crianças e, por isso, decidira não mais reconhecê-las como seus filhos.
A explicação mais óbvia e imediata para aquele teste de DNA negativo seria o adultério no que acreditava o marido e todos os mais que do fato tomavam conhecimento.
Mas com a consciência tranquila de sua própria idoneidade e de que jamais fora infiel ao marido, a mulher estava convicta de que a única explicação possível a todo aquele pesadelo era ter a clínica de fertilização cometido um erro desastroso no procedimento de fertilização e trocado o sêmen do marido pelo de outro doador.
Foi isso mesmo o que concluiu o Supremo Tribunal da Espanha. Ao julgar a ação que pretendia o reconhecimento e a responsabilização da clínica pela confusão cometida no processo de reprodução assistida, além de indenização por danos morais, a justiça espanhola afastou as alegações de adultério feitas desta vez pela defesa da clínica e condenou a clínica pagar o equivalente a 2 milhões de reais em indenização à mulher, a título de reparação dos danos morais por ela sofridos.
Esse processo desastrado de reprodução assistida destruiu um casamento, desestabilizou emocionalmente o homem e a mulher que procuraram a clínica de reprodução assistida e feriu irreparavelmente a honra da mulher, mas, com toda certeza, os maiores prejudicados e ofendidos em seus direitos foram os filhos gerados no processo.
Uma vez que não era realmente seu o sêmen utilizado na inseminação, o ex-marido não poderia ser, contra sua própria vontade, considerado o pai das crianças pela lei espanhola, que tampouco reconhece vínculo jurídico entre o verdadeiro doador e as crianças geradas a partir de seus gametas.
Logo, pela razão mais angustiante possível, as crianças simplesmente não têm pai. E, aos olhos da lei espanhola, jamais o tiveram.
Embora a Constituição Espanhola, em seu artigo 39, em teoria lhes confira o direito constitucional à assistência paterna, os dois irmãos, crianças de apenas nove anos, acabaram excluídos concretamente desta garantia fundamental. Note-se que sequer podem compartilhar da proteção conferida pelo ordenamento espanhol aos órfãos, porque estes um dia já tiveram pais, ou das garantias atribuídas às pessoas que apenas não conhecem a identidade de seus pais. O horrível drama dos filhos desse procedimento, que já foram informados pela mãe de sua situação, é algo que mal podemos imaginar.
Como antecipei, essa história ilustra de forma triste, mas contundente, que, apesar de ser constantemente divulgada como um procedimento inocente, descomplicado e absolutamente seguro, a reprodução assistida é um processo complexo, que deve ser muito bem pensado e que, ao contrário do que se diz, possui sim os seus riscos. E não me refiro apenas aos riscos médicos, mas aos riscos sentimentais, morais e até mesmo existenciais, e que não afetam apenas o casal que opta pela inseminação artificial, mas também, e principalmente, as crianças concebidas nesta técnica.
Infelizmente, o que vemos nos dias de hoje na maior parte do mundo é que, quando o assunto é reprodução assistida, essas crianças que virão ao mundo são, quando muito, preocupação secundária de casais, clínicas, e até mesmo dos legisladores. A única coisa que importa são os tais dos “direitos reprodutivos” do casal e as cifras movimentadas pela inseminação artificial, a que interesses materiais pretendem transformar em negócio mercantil como outro qualquer.
Nesse contexto, O Conselho Nacional de Justiça, sob liderança da Ministra Nancy Andrighi, no Provimento nº 52, merece mais uma vez o nosso reconhecimento e admiração por ter remado contra a corrente e protegido os seres humanos gerados por reprodução assistida ao instituir a biparentalidade como requisito indispensável ao procedimento, ao vedar o anonimato dos doadores, e ao exigir que os dados de cada doador, cada doação e cada gravidez resultante de inseminação artificial sejam levados ao Registro Público, em acolhimento da manifestação da ADFAS nesse sentido.
O CNJ merece nosso reconhecimento por ter dado prioridade ao que efetivamente deve ser entendido como prioritário: os direitos fundamentais dos seres humanos concebidos em reprodução assistida.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.