PROPOSTA POR RODRIGO PACHECO, REFORMA DO CÓDIGO CIVIL É CRITICADA POR ESPECIALISTAS
Entre os pontos de preocupação, estão os podem afetar o entendimento sobre direitos de fetos antes do nascimento e novas regras para o reconhecimento de paternidade
Por Gabriela Guido e Caetano Tonet
Protocolada no Senado pelo ex-presidente da Casa Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a proposta de reforma do Código Civil é alvo de críticas por especialistas. Entre os pontos de preocupação, estão trechos que podem afetar o entendimento sobre direitos de fetos antes do nascimento, além de novas regras para o reconhecimento de paternidade e concessão de indenização.
Há apreensão em relação à amplitude do projeto, que altera mais de mil artigos do texto em vigor. Seus defensores, contudo, argumentam que as discussões foram feitas com base na jurisprudência, os princípios das normas serão mantidos e cabe agora ao Legislativo decidir a amplitude das mudanças.
Elaborado por uma comissão de juristas, o texto foi registrado por Pacheco no último dia de seu mandato como presidente do Senado e aguarda ser despachado pelo atual ocupante deste posto, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Interlocutores do mineiro dizem que o desejo de Pacheco é ter a proposta analisada por uma comissão temporária de senadores. Alcolumbre não sinalizou quando pretende dar andamento à matéria. Procurado pelo Valor por meio de sua assessoria, Pacheco não se manifestou.
‘Mudanças radicais’
Os profissionais ouvidos pelo Valor reconhecem a necessidade de mudanças pontuais e, principalmente, na redação de artigos do Código Civil. Eles veem, entretanto, o que está sendo chamado de “reforma” no Senado como um novo conjunto de leis, e não como uma mera atualização de um dos mais importantes conjuntos de normas do sistema jurídico brasileiro.
“Na verdade, nós não temos uma reforma do Código Civil. Nós estamos tendo a criação de um novo código civil, porque há a mudança de 1.122 artigos do Código Civil”, afirmou Gustavo Haical, advogado e professor de direito civil da FGV Direito SP.
Para a advogada e acadêmica Judith Martins-Costa, a magnitude da atualização vai além da modificação de mais da metade dos artigos do código e se agrava pela mudança das bases do direito privado brasileiro com esse novo texto. O Código Civil vigente tem menos de 25 anos de existência.
“Com as mudanças dessa dimensão, absolutamente radicais em direito dos contratos, da responsabilidade civil, empresarial, do direito sucessório e patrimonial, [esse projeto] muda as bases do direito privado e patrimonial brasileiros”, destaca Judith. “Atinge empresas e a capacidade econômica de todos nós”. Judith chegou a ser convidada para fazer parte da comissão de juristas anunciada por Pacheco, mas não seguiu no grupo após a primeira reunião.
Flávio Tartuce, advogado e um dos relatores-gerais do texto, discorda dessas avaliações e pontua que, agora, é o momento do Congresso decidir se as mudanças serão feitas na amplitude proposta pela comissão de juristas.
“O que a comissão de juristas entende é que a gente precisa dessa reforma do jeito que ela foi proposta. Agora, cabe ao Congresso analisar se ela vai ser pontual ou se ela vai ser desse tamanho”, afirmou ao Valor, destacando que espera ver o texto aprovado pela Casa ainda este ano.
Ele ainda defende que a maior parte das mudanças foi feita com base na jurisprudência e nos entendimentos já existentes e que os princípios deste conjunto de normas serão mantidos. “Não é um novo código, seria um novo código se a gente revogasse ele inteiro e fizesse com nova organização. A gente revoga alguns artigos, por exemplo, separação judicial, que não tem mais aplicação. A proposta manteve os princípios [do Código Civil. São os mesmos princípios que o Miguel Reale dizia: eticidade, socialidade e operabilidade, os três princípios do Código Civil”, disse Tartuce.
Imprecisões técnicas e termos vagos
Os profissionais também destacam que um texto com imprecisões técnicas e com termos vagos – alguns, inclusive, novos e com efeitos práticos desconhecidos para a ciência jurídica – pode aumentar a insegurança jurídica e a litigiosidade no Brasil. “Infelizmente, com esse código, nós iremos romper com toda a tradição do nosso direito e não haverá uma linguagem com a qual poderemos nos comunicar”, afirmou Haical.
O relator-geral, em contrariedade, expressa que a proposta segue na mesma estrutura como o texto já é hoje e que sua linguagem foi revisada pelo consultor e professor de Língua Portuguesa Jorge Miguel. “Isso [princípios vagos e abertos à interpretação] já tem no código hoje. A gente seguiu a linha do código”, disse Tartuce.
As mudanças mais substanciais e polêmicas, segundo os juristas consultados pelo Valor, estão nas matérias de responsabilidade civil, contratos, família, sucessões e direito digital.
Aborto e paternidade
Uma delas, em família, tem potencial de dificultar o aborto no Brasil ao reconhecer a “a vida humana pré-uterina e uterina” como “expressões da dignidade humana”, segundo Vivianne Ferreira, professora de direito civil da FGV. A advogada levanta preocupação de que esse artigo possa ser utilizado por grupos anti-aborto e por membros do Judiciário para proibir a realização de abordo legal – permitido em caso de estupro, de risco à vida da mulher e de feto anencéfalo.
“O que hoje se aplica ao direito civil é a expectativa de direitos estritamente patrimoniais que o nascituro, o feto, tem”, explica Vivianne, destacando que, na visão dela, o novo texto extrapola o âmbito do direito patrimonial. “[Se aprovado], a aplicabilidade desse novo artigo, entretanto, não ficará restrito ao Código Civil.”
Questionado sobre esse artigo, Tartuce aponta que foi contrário à inclusão deste dispositivo na proposta, mas que foi vencido pela maioria da comissão de juristas. Adicionado ao texto com o objetivo de proibir a comercialização de gametas, o advogado assegura que os efeitos deste artigo ficarão restritos ao direito civil – ou seja, sem repercussão criminal -, especialmente pela não revogação e mudança do artigo 2 do código, que define que uma pessoa só contrai direitos e obrigações a partir do nascimento.
O novo texto ainda retira da Justiça e dá ao cartório a competência de declarar a paternidade do homem que se recusa a reconhecê-la ou a fazer teste de DNA. Segundo Vivianne, há uma inversão do ônus da prova ao atribuir ao indivíduo que foi declarado pai a necessidade de comprovar a ausência de vínculo genético ou socioafetivo com a criança. Se o suposto pai for falecido, esse ônus recai sobre os seus parentes consanguíneos.
Responsabilidade civil
No âmbito da parte da responsabilidade civil, um conceito que obriga uma pessoa a ressarcir outra por danos gerados a ela em atos ilícitos, os civilistas destacam que, de acordo com o texto atual, ela será totalmente modificada com a previsão de funções preventiva e pedagógica da responsabilidade civil.
“A responsabilidade civil deixa de ser uma figura com a qual se dá dinheiro a danos ilícitos. Ela passa a ter caráter pedagógico para ensinar os empresários que descumprem a lei”, explica Judith. Cabe ao juiz decidir se há a necessidade dessa sanção financeira pedagógica, segundo a proposta, em casos de especial gravidade – com “dolo ou culpa grave” do agente causador do dano ou com reiteração do comportamento danoso.
Tartuce defende essa ampla mudança da responsabilidade civil a de que o pagamento de indenizações somente a partir da extensão do dano, como funciona hoje, não tem efeito para a diminuição de condutas danosas. “O consenso é que [a indenização como está hoje] não funciona. As indenizações no Brasil são muito baixas. Para as empresas, é muito mais barato descumprir lei e contratos e, depois, pagar uma indenização pífia para a vítima”, explicou.
Fonte: Valor Econômico