PROJETOS DE LEI PARA ALTERAR LEI MARIA DA PENHA DISPARAM NO CONGRESSO

Maior punição do agressor é o caminho mais presente nas mudanças propostas e pode enfraquecer a lei, segundo organizações que participaram de sua criação.
O número de projetos de lei que tentam alterar a Lei Maria da Penha, criada em 2006, cresceu seis vezes em 2019: de 14, em 2018, para 81 proposições, segundo levantamento do Elas no Congresso, plataforma de monitoramento legislativo da Revista AzMina. E mais: uma em cada cinco proposições de mudança não é favorável para a proteção das mulheres vítimas de violência, de acordo com avaliação de organizações que atuam no combate à violência contra a mulher.
Entre os motivos que levam os projetos a serem considerados desfavoráveis destaca-se o punitivismo, ou seja, projetos que procuram aumentar a pena de agressores, com maior previsão de encarceramento, mas não criam alternativas de conscientização e não garantem a efetiva segurança da mulher que sofreu agressão. Como AzMina já mostrou, as mulheres não escapam da violência doméstica mesmo quando os homens estão presos.
“O que temos percebido é que essas ações de trabalhar o tema da violência contra a mulher acabam focando exclusivamente numa resposta de punição e usando sempre o direito penal para mitigar essa situação. O que a gente percebe trabalhando com esse tema é que exclusivamente a punição não é garantia, as mulheres precisam de uma rede estruturada para se proteger”, explica Renata Jardim, coordenadora de programas da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos.
A advogada e pesquisadora de violência de gênero Carolina Salazar estudou em seu mestrado as consequências do punitivismo na Lei Maria da Penha e concluiu que, por se tratar de uma relação familiar em que homem e mulher partilham sentimentos de afeto, as mulheres normalmente não desejam a intervenção penal em seus conflitos. “Logo, o sistema penal no âmbito da violência doméstica de gênero atua na sua forma mais tradicional: selecionando a sua clientela e reproduzindo violência e dor”, conclui, ressaltando o perfil racial (pardos) e social (classes menos abastadas) apontado na pesquisa.
Há projetos também que estendem as competências da Delegacia da Mulher. Alguns propõem, por exemplo, que passe a caber à polícia a análise dos perfis de agressores e a criação de grupos de conscientização para eles, por meio de parcerias com profissionais. No entanto, para o Instituto Maria da Penha, a reabilitação do agressor descrita na legislação deve ser feita por profissionais habilitados. “Os policiais não estão aptos para esse tipo de ‘identificação”, explica o Instituto na avaliação para Elas no Congresso.
O simples fato de se falar em possíveis alterações na Lei Maria da Penha já traz para as mulheres uma insegurança jurídica, de acordo com Regina Célia Barbosa, vice-presidente e diretora pedagógica do Instituto Maria da Penha. “Dá a ideia de que a lei não está conclusa e que precisa de ajustes, e isso, na mentalidade das mulheres em situação de violência gera dúvida se elas podem contar com essa proteção ou não”, afirma.
Isso afeta, inclusive, o atendimento às vítimas. “Elas chegam e perguntam se ainda tem proteção para certo caso, se ainda pode fazer tal denúncia. Ou seja, ela está acompanhando as possíveis alterações e não sabe se o caso dela está sendo contemplado na legislação”, diz Regina.
Falta de diálogo
O mais problemático é que essas iniciativas de alteração sejam propostas sem debate público, sem diálogo com organizações, especialistas, e sem ouvir as principais vozes interessadas: as mulheres vítimas de violência, de acordo com Silvia Chakian, Promotora de Justiça do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID), do Ministério Público de São Paulo.
Ela cita como exemplos projetos que se tornaram lei no ano passado, como o que obriga profissionais de saúde a registrar no prontuário médico da paciente e comunicar à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra a mulher. O PL foi alvo de críticas por promover a perda da autonomia e direito de escolha das mulheres. “Fizeram tanto lobby para que essa lei fosse aprovada. Vamos tirar o direito do silêncio dessas mulheres, mas é isso que elas querem? Elas querem que isso seja levado para a polícia mesmo sem o interesse delas? Faltou ouvir os médicos, os profissionais da saúde, entender o que eles ouvem nos atendimentos”, explica. Inicialmente, o projeto pretendia altera a Lei Maria da Penha, mas a relatora no Senado, Maria do Carmo Alves (DEM-SE), decidiu que fosse alterada outra legislação.
Para Silvia, a pequena representatividade feminina no Congresso – as mulheres são apenas 15% dos parlamentares – colabora para o desconhecimento sobre a realidade enfrentada pelas mulheres vítimas de violência também. “Em muitas áreas temos iniciativas que são catastróficas, retrocessos absurdos. Quem está falando sobre isso são homens ou mulheres que não têm essa formação de gênero”. De fato, segundo dados levantados por Elas no Congresso, os parlamentares do sexo masculino são os que mais propuseram leis sugerindo mudanças na Lei Maria da Penha desde 2011, nas últimas duas legislaturas e no primeiro ano da atual.
Quando avaliamos de modo proporcional, em 2019 os homens foram os que propuseram mais projetos desfavoráveis em relação ao total de PLs propostos sobre a Lei Maria da Penha. Eles são autores ou coautores de 66% dos projetos favoráveis e de 75% dos projetos desfavoráveis.
Mas também houve projetos favoráveis que foram criados em 2019 e já tornaram-se lei.
É o caso do PL que assegura prioridade nos processos judiciais de separação ou divórcio à mulher vítima de violência doméstica. “Há boa intenção de grande parte dos parlamentares, e algumas mudanças como essa realmente contribuíram para o enfrentamento à violência”, diz Silvia.
Momento não é favorável para mudanças na lei
No entendimento de organizações que participaram da criação da Lei Maria da Penha, um dos grandes problemas é que o momento político atual e a composição do Congresso. “A gente avalia que a atual composição da Câmara e do Senado não são favoráveis para as mulheres”, explica Renata, da Themis. “Qualquer tramitação de nova legislação ou de alteração de legislação existente corre risco de ter mudanças que não são favoráveis aos direitos das mulheres”, diz.
Incentivar a implementação da lei na sua totalidade, segundo Renata, seria mais eficiente. “Há necessidade de recursos para a implementação da legislação e uma das nossas críticas é de que as iniciativas não preveem execução orçamentária”. Entre 2015 e 2019, o orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, para atendimento às mulheres em situação de violência recuou de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil, segundo levantamento do jornal Estado de S.Paulo.
“A lei já tem 13 anos e ainda não foi implementada na íntegra. Temos muitos artigos que ainda não foram colocados em prática. Não temos Centros de Referência de Atendimento às Mulheres, por exemplo, nem em 10% dos 5000 municípios do país”, explica Regina, do Instituto Maria da Penha.
Fonte: UOL (17/06/2020), com informações da Revista AzMina

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