PRESIDENTE DA ADFAS COMENTA DECLARAÇÃO DE NAMORO E UNIÃO ESTÁVEL DURANTE A PANDEMIA

Durante cerca de três anos, a chef de cozinha Karina Ferrari Fagundes, 45 anos, e o médico do esporte Fábio Peralta Mathias, 47, namoraram alternando fins de semana em São Paulo, na casa dela, e no Rio de Janeiro, na dele. Até que veio a pandemia, a necessidade da quarentena, e a estada de Fábio na casa de Karina foi se transformando em coabitação. Em outubro, a relação ganhou outro status, o de união estável. Com contrato assinado em cartório e testemunhas.
No caso deles, já havia o desejo de oficializar a relação, o coronavírus apenas acelerou o processo. Em muitos outros, no entanto, a quarentena foi o motivo determinante para que namorados passassem a morar juntos. Além da questão do acolhimento emocional durante o período de isolamento, influenciaram também fatores menos românticos, como redução de gastos, perda de emprego e divisão de tarefas.
Essas uniões, assim como quaisquer outras, podem ter, no futuro, desdobramentos legais que envolvam partilha de bens, pensão alimentícia e direito à herança. Mas nem todo mundo sabe ou pensa nisso no presente.
Karina e Fábio tiveram de pensar no assunto depois de levar um empurrãozinho da realidade. “Nós já estávamos morando juntos quando o proprietário do apartamento me pediu que devolvesse o imóvel. Isso fez com que encarássemos de forma prática a situação. ‘Vamos mesmo ficar juntos e alugar outro apartamento? Como vamos resolver esse assunto?’. Então, consultei uma amiga advogada, que nos aconselhou a oficializar a relação”, conta.
A alternativa sugerida ao casal pela advogada – o contrato de união estável –, está prevista em lei, no artigo 1.723 do Código Civil: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Guarde este termo: “objetivo de constituição de família”.
O artigo 1.725 do mesmo Código diz que não há necessidade de formalização prévia, como fizeram Karina e Fábio, mas, de acordo com a advogada Camila Felberg, sócia-fundadora da Felberg Advogados Associados e sócia efetiva do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), isso causa uma grande insegurança jurídica e é o que faz com que a lei tenha a pecha de “desunião estável”.
“Geralmente, a união estável só entra quando o casal vai se separar e quer saber quais são os efeitos patrimoniais da relação”, fala. Quando isso acontece, quem decide o que significou a relação é um juiz de direito, não o próprio casal. “Sem contrato, a união estável fica em uma zona cinzenta e cada juiz interpreta de um jeito. Não há prevalência do princípio da autonomia da vontade, e o relacionamento pode ganhar um alcance maior do que uma das partes pretendia”.
Namoro com qualidades
O que Karina e Fábio viviam antes de assinar o contrato, em outubro, era o chamado “namoro qualificado”, termo que define um entendimento jurídico (não é uma lei) muito similar ao da união civil. Embora ambos tratem de relacionamentos amorosos entre duas pessoas que moram ou não juntas, que viajam, convivem com as famílias uma da outra e são reconhecidas socialmente como um casal, o que os diferencia, em teoria, é objetivo de constituir família (volte à última linha do quinto parágrafo).
Esse objetivo, que no “namoro qualificado” não existe, significa que o casal não planejava uma vida conjunta para o futuro – como ter filhos, comprar imóveis ou outros bens em parceria — nem desejava que a relação fosse duradoura.
Mas, como bater o martelo sobre isso? A linha é tênue e delicada. Os elementos são subjetivos e falam muito sobre o desejo de cada um, o que nem sempre é expresso ou compreendido em um relacionamento.

Trata-se, não se pode esquecer, de uma zona de afetos. Por isso Felberg defende a formalização. “Não é romântico, mas quanto mais um casal, durante o relacionamento, procurar se cercar de direitos por meio de contratos, menos problemas no futuro. É uma situação que pode ser constrangedora, até mesmo para o advogado, mas aconselhamos que tudo seja deixado claro, inclusive entre namorados”, diz.
A advogada se refere ao “contrato de namoro”, algo que, embora não esteja previsto em lei, vale como prova em caso de separação com disputa judicial.
“Contrato de namoro”: o que é, onde vive, do que se alimenta
Não é difícil alguém pensar que se trate de brincadeira ao ouvir a expressão “contrato de namoro” pela primeira vez. Sem conhecer o significado – e poucas pessoas conhecem, embora isso esteja mudando — a ideia pode soar sem sentido. Mas não é.
Contrato de namoro é um documento escrito no qual um casal deixa claro que sua relação é de “namoro qualificado” e não de “união estável”. Quanto mais detalhado for, contendo informações sobre bens e intuitos comuns no relacionamento – dentre eles, necessariamente, o de não constituir família — mais certeza um parceiro terá de que, após uma separação, o outro não tentará reivindicar algo que não tenha sido acordado antes. Ou seja, algo de que não tenha direito.
Para a advogada Marilia Pedroso Xavier, autora do livro Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo e professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um dos pontos principais do contrato de namoro é o que ela chama de empoderamento dos casais. “Com esse documento, são eles quem determinam o que é sua relação e quais efeitos jurídicos eles querem para ela”, fala. “É algo preventivo, como aquele ditado antigo que diz ‘o que é combinado não é caro’.”
Seu livro, lançado no dia dos namorados deste ano, esgotou em um mês. “A editora lançou novas tiragens, mas há um esgotamento contínuo. Por causa da pandemia, as pessoas estão realmente querendo se informar, conhecer o assunto”, diz.
O engenheiro Marcos*, 47, foi além. Não só se informou, como propôs à sua namorada fazer um “contrato de namoro”. Antes da pandemia, ele e a designer Érica*, 28, namoravam à distância — ela morava em São Carlos. Quando a quarentena começou, eles decidiram morar juntos na casa dele, em São Paulo. “Como tenho dois filhos, sou recém-separado e tive um divórcio traumático, expliquei à Érica que, no momento, não quero um novo casamento. Mas não descarto a ideia de, no futuro, construir uma família com ela.”, conta.
É justamente porque os desejos em um relacionamento são de ordem subjetiva, e podem mudar com o tempo, que Priscila Agapito, 29ª tabeliã de notas na capital (SP) e diretora do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), orienta seus clientes a renovarem continuamente o contrato. “Falo para eles ‘se continua sendo mesmo namoro, voltem daqui a seis meses e renovamos a declaratória para que realmente não haja dúvidas de que a relação não se transmutou em união estável”, diz.
Ir diretamente a um cartório de notas é uma das opções que um casal tem para fazer um “contrato de namoro”. Outra, é por meio de um advogado. De ambas as formas o contrato é considerado um instrumento público, o que o torna mais seguro caso haja litígio. Há, ainda, uma terceira forma: o próprio casal redige e guarda o documento. Aqui, o “contrato de namoro” é considerado um instrumento particular, o que é menos aconselhável. Se o casal realmente preferir esta opção, é bom que tenha a assinatura de testemunhas.
O valor, em cartórios, varia de estado para estado. No de São Paulo, hoje, um “contrato de namoro” custa R$ 442,17. Há modelos que podem ser utilizados como base para que o casal complete com informações e detalhes de sua história.
Foi como fizeram a empresária Celina*, 63 e Paulo*, 74, que namoram há quase cinco anos e têm filhos do primeiro casamento. Ela, que atravessa um litígio da união anterior que já dura 13 anos, ficou sabendo da existência do “contrato de namoro” por intermédio de amigas. “Eu e Paulo somos apenas namorados, cada um mora na sua casa. Fizemos contrato para que não haja nenhum problema no futuro. No caso da partida de um de nós dois, seus filhos não têm direito a nada do que é meu, assim como meu filho não tem direito a nada do que é dele”.
Atualmente, de acordo com Agapito, é esse o perfil médio do casal que faz contrato de namoro: pessoas acima dos 50 anos, com filhos do primeiro casamento e que já tiveram problemas nas relações anteriores. “São pessoas que já tiveram experiências danosas ou desastrosas em outros relacionamentos, perderam muito dinheiro e ficaram escoladas”, conta.
“No caso de muitas dessas famílias já fazemos todo o planejamento sucessório para que não haja litígio. Quando alguém da família começa a namorar ou a relação está ficando longa, já sabe que deve vir ao cartório para fazer ou renovar a ‘declaração de namoro’. Dessa forma, separa-se o que é amor e o que é patrimônio.”
O termo “declaração de namoro”, utilizado, acima, por Agapito não é por acaso. Ela adota a posição da advogada familiarista Regina Beatriz Tavares da Silva, fundadora presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Para Silva, trata-se de uma declaração e não de um contrato, já que este último é utilizado apenas quando se cria ou modifica direitos. “Namoro é uma relação de afeto sem consequências jurídicas, diferentemente de uma relação de união estável”, diz.
Silva é uma das precursoras da ideia de que é preciso oficializar esse tipo de relação, que começou a circular no começo dos anos 2000. “É uma prova fortíssima, que define a real situação vivenciada pelos namorados e é perfeitamente válida perante nosso ordenamento jurídico”.
Voltando à questão do nome, Xavier acredita que seja um tema mais teórico. “Como o termo começou a sair em reportagens como “contrato de namoro”, acabou sendo consagrado dessa forma e optei por usá-lo assim no meu livro. Acho que essa é uma discussão mais acadêmica”, fala.
O ponto comum entre todas as especialistas é que o instrumento possa alcançar cada vez mais pessoas e que o utilizem com o máximo de informações possível. Porque a procura por isso, provavelmente, vai aumentar – mais uma mudança de costumes acelerada pela pandemia.
 
Fonte: Elle (21/12/2020)

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