PRESIDENTE DA ADFAS AVALIA REFORMA NO CÓDIGO CIVIL E NOVA VISÃO SOBRE FAMÍLIA
Dra. Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS, concede entrevista sobre a Reforma do Código Civil, originalmente publicada no Jornal Correio Braziliense.
A Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), a Professora Regina Beatriz Tavares da Silva acompanhou nos últimos oito meses o trabalho da comissão da Reforma do Código Civil, que recebeu propostas legislativas da Associação. Um grupo formado por 38 juristas promoveu estudo sobre a alteração de mais de mil artigos no atual código, que tem 22 anos. Em duas décadas, a sociedade evoluiu e novos conceitos e conflitos familiares surgiram. O anteprojeto encaminhado ao Senado produziu inovações e ampliação do conceito de família.
A ADFAS apresentou sugestões que promoveram alguns impactos. Apesar das mudanças, Regina Beatriz avalia que ainda há vários dispositivos a serem debatidos e aperfeiçoados no Congresso. Por exemplo, a possibilidade — como está previsto — de divórcio unilateral. Ela acredita que esse tipo de divórcio por notificação no Cartório de Registro Civil pode deixar um dos cônjuges desassistido, sem plano de saúde e sem ter onde morar. “Obviamente que o cônjuge mais vulnerável, que no Brasil ainda é a mulher na maior parte dos lares, sofrerá graves prejuízos”, analisa.
Qual a sua a avaliação sobre o texto final do anteprojeto de Código Civil que chega ao Senado?
O relatório final contém algumas propostas positivas e outras negativas ao bem-estar da família e de seus membros. Aliás, é de observar que uma Reforma do Código Civil, que pretende atualizar um diploma legal que tem 2.046 artigos, ser elaborada em apenas cerca de sete meses não pode ter a necessária reflexão. Assim, espera-se que, no Congresso sejam realizados os indispensáveis debates, com audiências públicas nas várias comissões legislativas, para que sejam ouvidos os vários posicionamentos e observadas emendas que certamente serão propostas no momento oportuno.
Como avalia o conceito de família da forma como foi tratado no texto?
Após a substituição da expressão família não conjugal por família parental, para deixar claro que se trata de relação entre parentes — irmãos e primos, por exemplo, que compartilham responsabilidades, unem-se por laços de fraternidade e moram na mesma casa, dando apoio moral e material uns aos outros —, banindo-se a possibilidade de interpretação da família não conjugal como abrangente das relações poliafetivas ou poligâmicas (‘trisais”), houve uma melhora no relatório final. No Brasil, o único sistema no Direito de Família e em áreas correlatas, como a previdenciária, é a monogamia, ou seja, a relação entre duas pessoas, do mesmo gênero ou de gêneros diferentes. No relatório final também ficou claro que relações paralelas (relações adulterinas) não constituem família. As relações paralelas, ou seja, o adultério, seja praticado num casamento, seja praticado numa união estável, não formam família e, portanto, não têm efeitos de Direito de Família e outros correlatos. Assim, no relatório final, está a família oriunda de casamento ou de união estável e a família parental – que se origina daquela solidariedade entre irmãos ou primos, por exemplo. Na parental, também está incluída a família monoparental, que está prevista na Constituição e é formada por um dos genitores e seus filhos.
Muitas fake news foram propagadas sobre o texto. Quem tem interesse nesse tipo de desinformação?
Não foi desinformação ou fake news o que foi comentado sobre tratamento de famílias paralelas. Efetivamente, na redação do primeiro relatório geral, havia a possibilidade de interpretação de que relação de adultério ou paralela poderia gerar efeitos familiares, ou seja, que poderiam existir duas uniões estáveis simultaneamente, na contramão do que decidiu o STF nos Temas de Repercussão Geral 526 e 529. Aliás, além disso, era proposto que houvesse efeitos de partilha sobre o imóvel em que houvesse esforço comum e de posse do imóvel em que o cúmplice do adultério estivesse instalado se demonstrado o esforço comum (sem esclarecer que tipo de esforço seria esse), inclusive, na relação adulterina praticada em relação ao casamento. Sobre incesto, embora eu creia que jamais tenha sido a intenção, na família que era chamada de ‘não conjugal’, sem que houvesse a clareza que passou a existir no relatório final, no sentido de que essa família advém de laços exclusivamente de fraternidade, um risco longínquo também poderia existir.
E sobre família multiespécie?
Por não ser atribuída personalidade jurídica aos animais de estimação, nunca vi esse risco. Há uma proteção aos pets no relatório final, no sentido da companhia e do sustento após a dissolução do vínculo conjugal, desde que os animais de estimação continuem a pertencer a ambos os ex-cônjuges ou ex-conviventes.
Foi aprovada a ampliação do conceito de família para incluir vínculos não conjugais, que agora passam a se chamar parentais. A proposta estabelece direitos e deveres para esses grupos e busca reconhecer o parentesco da socioafetividade, quando a relação é baseada no afeto e não no vínculo sanguíneo. Qual a sua opinião? O que precisa ser aprimorado?
A família parental é aquela formada por um dos genitores e seus filhos e a relação entre parentes (irmãos e primos, por exemplo). O parentesco por socioafetividade é aquele que se constitui entre uma pessoa e uma criança ou adolescente que não é seu filho biológico. São situações diferentes. A socioafetividade depende do reconhecimento social daquela pessoa como pai e da existência de afetividade entre eles. Acho que deveriam ter melhor detalhamento os requisitos da filiação socioafetiva. Penso também que o relatório final melhorou para impedir que, pelo simples fato de ser padrasto ou madrasta, possa existir o dever de sustentar o enteado quando a relação entre o padrasto e a mãe do menor se desfaz, o que não estava claro na primeira redação do relatório geral.
A proposta prevê uma nova modalidade de divórcio ou dissolução de união estável, que poderá ser solicitada de forma unilateral. Esse é um avanço?
O relatório final propõe uma nova espécie de divórcio, que pode ser chamado de “divórcio surpresa”. O dispositivo autoriza o divórcio por mera notificação no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). Entre os prejuízos ao cônjuge notificado estão a possibilidade de sua exclusão imediata do seguro ou plano de saúde existente junto à empregadora do cônjuge notificante, bastando apresentar a certidão de casamento com a averbação do divórcio, assim como a expulsão do cônjuge notificado do domicílio conjugal, se o imóvel pertencer exclusivamente ao notificante, sem que haja o tempo necessário para que o notificado busque nas vias judiciais a necessária proteção. Note-se que cinco dias após a notificação, segundo o relatório final, será feita a averbação do divórcio na certidão de casamento. Uma pessoa casada recebe essa notificação, como terá tempo de constituir um advogado, promover uma ação judicial e obter uma decisão judicial para manter seu plano de saúde, antes do referido cancelamento? Obviamente que o cônjuge mais vulnerável, que no Brasil ainda é a mulher na maior parte dos lares, sofrerá graves prejuízos. Imaginemos a gravidade se ela necessitar de um tratamento de saúde de urgência.