O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PODE FAZER LEIS?
Regina Beatriz Tavares da Silva
Em recente decisão no Habeas Corpus 124.306, uma das turmas do STF decidiu sobre a prática do aborto até o terceiro mês de gestação, no sentido dessa prática não ser considerada crime, mesmo diante do Código Penal brasileiro, que estabelece que o aborto é crime, a não ser que seja praticado em casos de gravidez oriunda de estupro ou em caso de perigo de vida para a mulher.
No artigo desta semana, pretendo esclarecer alguns pontos fundamentais sobre o tema, sem debater sobre a descriminalização ou não do aborto em nosso país.
No referido Habeas Corpus 3 Ministros julgaram que o aborto até os 3 meses de gestação não é crime, sem que pudessem fazê-lo, sem que tivessem esse poder, sem que fosse essa a sua atribuição constitucional. Conduzidos pelo Ministro Roberto Barroso, o Ministro Edson Fachin e a Ministra Rosa Weber, os 3 em conjunto, decidiram que o aborto não é crime no Brasil, contrariando o Código Penal, e ainda tiveram a ousadia de dizer que o dispositivo legal sobre o crime de aborto, previsto no Código Penal brasileiro, não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Onde não foi recepcionado? A Constituição Federal estabelece que o direito à vida é direito fundamental!
A Constituição Federal não difere a vida antes ou depois de 3 meses de gestação, Quem pode afirmar que há uma linha divisória exata, ou seja, que com exatamente 90 dias o cérebro esteja formado, que no 91º dia da gestação o aborto não poderia ser praticado, mas que no 89º dia de gestação o aborto poderia ser praticado porque não há cérebro formado e portanto não haveria vida? Ninguém, nem mesmo os estudiosos da formação da vida humana podem precisar o momento exato da sua efetiva existência!
Os outros dois Ministros não adentraram nesse mérito, no que atuaram bem e dentro da competência do STF, o Ministro Marco Aurélio e o Ministro Luiz Fux, examinando somente os aspectos processuais da prisão preventiva dos médicos da Clínica que estão em julgamento pela exercício da medicina na realização de abortos.
O caso em julgamento tratava de uma questão processual específica, a existência ou não dos requisitos para a decretação da prisão preventiva dos acusados. Não estava em pauta a possibilidade ou não da prática do aborto no Brasil, muito menos a discussão sobre o prazo máximo de 90 dias de gestação para a sua prática. Não era sobre essas questões que os Ministros tinham sido chamados a se manifestar.
Este artigo não tem por objetivo dizer se o aborto deve ser proibido ou amplamente liberado no Brasil. Não é esse, efetivamente, o principal objeto deste texto.
Refiro-me a algo muito mais abrangente e perigoso, a confusão nas atribuições de cada um dos Poderes do Brasil, um mau hábito que passou a existir, infelizmente, no Brasil e que acarretará sérios danos ao nosso país, afetando toda a sociedade.
Essa decisão viola, gravemente, a Constituição Federal porque desrespeita a organização dos poderes, que é rigorosamente estabelecida por essa Lei Maior em seu Título IV, em que trata separadamente das atribuições de cada um dos Poderes da República.
Como destacou em recente artigo o Professor Ives Gandra da Silva Martins comentando este mesmo tema, “o Supremo não pode legislar, nem mesmo nas ações de inconstitucionalidade por omissão do Congresso”, destacando, ainda, que há inúmeros projetos de lei em andamento no Poder Legislativo sobre o aborto, tendo sido realizadas diversas consultas públicas para se saber qual é a real vontade da população brasileira.
É esse, efetivamente, o caminho a ser percorrido em um Estado Democrático de Direito, antes de ser tomada uma decisão com tantas repercussões sociais. Não cabe ao Poder Judiciário, mas sim ao Poder Legislativo, no exercício de suas atribuições e representando a vontade popular, legislar sobre esse tema. Não cabe a apenas 3 magistrados afirmarem que o aborto está descriminalizado.
Muito embora essa recente decisão do STF, aqui em comentário, não seja vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário, por não ter sido proferida pelo Pleno em repercussão geral, representa um perigoso precedente jurisprudencial.
Como mencionei, o mau hábito do STF de legislar tem se tornado comum nessa Corte Constitucional. Basta mencionar dois recentes casos, um em julgamento e outro já julgado pelo STF, estes, sim, com repercussão geral, que têm efeito perante outros órgãos do Poder Judiciário, perante outros Juízes e em outros casos. O primeiro trata da equiparação dos direitos sucessórios dos cônjuges e dos companheiros e o segundo considera possível a multiparentalidade.
Como já destaquei em artigo anterior para este Blog, o casamento e a união estável, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, são institutos, efetivamente, diferentes, por isso ambos existem e devem continuar a existir, representando formas distintas de constituição de família. Não há qualquer inconstitucionalidade no art. 1790 do Código Civil ao estabelecer diferenças nos efeitos sucessórios da união estável e do casamento.
Portanto, se no RE 878.694-MG 6 Ministros já votaram e apenas faltam os votos de 4 Ministros do STF para essa equiparação e se 2 dos Ministros que já votaram não reconsiderarem seus posicionamentos, o STF estará legislando, pela via indireta, ao modificar um artigo do Código Civil que somente o Congresso Nacional teria a atribuição ou competência para modificar. Voltarei a este tema em breve, mas quero, desde já, enfatizar que o STF estará retirando a liberdade das pessoas de se relacionarem como desejam, tornando a relação de união estável, quem nem sempre é de evidente configuração, por existir no plano dos fatos e que por isso se confunde muitas vezes com o namoro, um casamento e, por conseguinte, atribuindo a um mero namoro a seguinte consequência: quando um dos dois enamorados morrer, o outro poderá disputar a herança com o o filho do falecido em igualdade de condições, com os mesmos direitos de um filho. Será um absurdo! Será uma irresponsabilidade perante a sociedade brasileira! Será um incentivo a que as pessoas não namorem mais, não se relacionem mais afetivamente, não queiram mais viver um amor.
Quanto à multiparentalidade, o STF, em 21/09/2016, julgou o Recurso Extraordinário n. 898060-SC, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, que tratava somente da “prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica”, decidindo sobre algo que não estava em julgamento, proferindo, portanto, uma decisão que, tecnicamente, denomina-se extra petita, reconhecendo a possibilidade jurídica da multiparentalidade, que é existência concomitante de dois pais, o biológico e o socioafetivo, ambos com o exercício do poder familiar sobre a criança, ao lado da mãe da criança. Os diversos malefícios que a multiparentalidade acarreta para as crianças e os adolescentes já apontei em artigo anterior para este blog – sendo de evidência solar que o STF não poderia ter examinado este tema, pois o recurso posto para julgamento tratava não da concomitância, mas, somente, da prevalência de uma das espécies de paternidade sobre a outra. Portanto, o STF está legislando, aqui também pela via indireta, ao modificar todo o sistema de paternidade que em nosso país é o da biparentalidade – 2 genitores – e não o da multiparentalidade – 3 genitores. Recurso de Embargos de Declaração, com efeitos de infringência, será interposto pela ADFAS, Associação de Direito de Família e das Sucessões de que sou presidente, para esclarecer que a decisão deve limitar-se somente à prevalência de uma das espécies de paternidade e não sobre a sua concomitância.
Assim, infelizmente, vem sendo criado um mau hábito no STF de extrapolar em suas decisões as suas competências. A ninguém é dado desrespeitar a Constituição Federal, nossa Lei Maior, nem mesmo ao Supremo Tribunal Federal. O Supremo não pode legislar!
Fonte: O Estado de São Paulo