O RISCO DE MANIPULAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Por Antônio Jorge Pereira Júnior [1], originalmente publicado no Jornal O Povo
Em dezembro de 1948 o mundo celebrava a Declaração dos Direitos Humanos. Uma grande conquista. No documento afirma-se que os direitos humanos são fundados no respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa; são universais, ou seja, aplicados de forma igual e sem discriminação a todas elas; inalienáveis, de modo que ninguém pode ser privado deles, ainda que sejam restringidos circunstancialmente em situações específicas mediante devido processo legal; são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes.
A Declaração serviu de consciência objetiva dos direitos essenciais e permitiu que se avançasse na sua proteção.
Todavia, a despeito disso, paradoxalmente a bandeira dos direitos humanos tem sido manipulada para legitimar condutas piores do que algumas que inspiraram a Declaração. Pense-se, por exemplo, na pressão pela elevação do aborto à categoria de direito humano.
Estimado leitor, se lhe perguntasse se poderia matar seu vizinho, o que diria? Provavelmente, “sim”, após titubear um pouco. Nesse caso, teria adotado a noção ampla de “poder”, como mera possibilidade de fazer algo materialmente.
Porém, caso lhe indagasse “você tem direito de matar seu vizinho?”, imagino diria “não, salvo em legítima defesa”. Portanto, somente se houvesse agressão e o embate mortal fosse inevitável.
Percebe a diferença entre as duas perguntas?
O Direito pertence ao plano da Ética, assim como a liberdade, “capacidade de autodeterminação ao bem”, na expressão de Tomás de Aquino.
Regras jurídicas devem prescrever o que esteja conforme ao bem e ao justo. Dentro desse âmbito, a liberdade é amplíssima e plural. Fora daí, de rigor, não há liberdade, porque não há bem que seja elegível. Logo, há abuso de poder.
Muitos manipulam as palavras “poder” e “liberdade” para defender atos que, de rigor, não se coadunam com a dignidade humana. Estão fora da Ética.
É razoável buscar que “interesses” e “desejos” sejam revestidos do caráter de “direitos” por meio de normas positivas aprovadas nos Parlamentos e nos foros internacionais. Acontece que nenhum desejo ou interesse contra direitos inalienáveis pode vicejar como direito humano.
Apesar disso, alguns tentam adulterar conceitos e forjar argumentos inusitados para convencer do contrário. Tergivessam. Advogam pelo uso do poder sem ética. Ou seja, pelo abuso.
Todavia, o discurso não faz que uma ação destruidora e indigna se torne, por isso, valorosa, legítima ou correta. Matar um inocente nunca será um ato justo. Logo, nunca poderia ser um direito.
A evolução dos direitos humanos, desde Locke, caminhou em direção à defesa do mais vulnerável. Por isso, nos países onde foi aprovado o homicídio do humano mais frágil, sem possibilidade de defesa, esse passo não manifesta avanço, senão grotesco retrocesso. Trata-se do ato mais ignominioso de uma sociedade que, dizendo-se humana, autoriza matar o mais indefeso dos seus pares. Atualiza-se a frase de André Frossard, da Academia de Letras da França: “A sociedade contemporânea, em sua inigualável covardia, prefere legalizar seus erros a combatê-los”.
Que sejamos corajosos no Brasil, para prestigiar os direitos humanos dos mais vulneráveis, mesmo quando sua existência seja contrária a nossos desejos ou interesses. Corajosos também para viver uma autêntica solidariedade com a mulher que precisa de suporte em face de uma gravidez indesejada, protegendo sua dignidade e consciência.
[1] Doutor e Mestre em Direito pela USP. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Unifor.