O RETORNO DO ESTATUTO DESTRUIDOR DAS FAMÍLIAS VI

Em continuidade à série de artigos sobre o PLS 470/2013 – Estatuto das Famílias, o assunto agora é a mudança, ou, para ser mais precisa, a completa desfiguração da regra legal da presunção de paternidade que o Estatuto das Famílias pretende realizar.
O Código Civil atualmente estabelece a presunção de que a criança nascida durante o casamento (pelo menos cento e oitenta dias de seu início), ou até trezentos dias após o seu fim é fruto da relação entre os cônjuges. Dito de outra forma, o Código Civil presume que o filho de uma mulher casada tem como pai o marido de sua mãe.
A presunção de paternidade, nestes termos, é uma regra protetiva segura.
O casamento gera para os cônjuges o dever de fidelidade recíproca. Apesar da alegação obstinada com que alguns doutrinadores de Direito de Família pregam que a fidelidade é mero dever moral ou social entre os cônjuges (ou nem isso, na opinião dos mais radicais), e da pretensão do Estatuto das Famílias de transformar subterraneamente em lei esta tese esdrúxula, o dever de fidelidade recíproca continua a ser o que sempre foi em nosso ordenamento: um dever jurídico (artigo 1.566, I, do Código Civil).
Como tal, a ordem legal presume o seu fiel cumprimento e observância por parte daqueles a quem incumbe cumpri-lo e observá-lo, ou seja, por parte dos cônjuges.
Além do mais, no plano dos fatos sociais – e isto é estatístico! – o que se observa é que, ao contrair matrimônio, o respeito à fidelidade conjugal por parte dos cônjuges é o que em geral acontece; e, mais especificamente, a fidelidade conjugal por parte da mulher é o que em geral acontece.
Some-se a isso o fato de que o casamento é um ato formalíssimo, sobre cuja constituição e extinção não paira dúvidas, vez que uma e outra só são levadas a efeito mediante registro público. E mais: com uma simples certidão obtida no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, documento que tem fé pública, é possível determinar o dia exato da constituição e, ou, da extinção de um casamento.
Veja o leitor como a regra do Código Civil de presunção de paternidade faz perfeito sentido, pois que, em resumo: (i) o casamento gera entre os cônjuges o dever jurídico de fidelidade; (ii) este dever é de fato cumprido pela sociedade; e (iii) o casamento é um fato jurídico cujo início e fim, cuja data de início e fim, são categoricamente determinados por registros de fé pública.
A partir dessas premissas, o casamento é a única relação amorosa em relação a qual faz sentido falar de “presunção de paternidade”.
Mesmo na união estável a regra não pode ser aplicada pois, enquanto o casamento, como vimos, é união sobre a qual não há dúvidas acerca de sua existência, ou sobre sua data exata de início e término, a união estável é uma relação afetiva que, por prescindir de registro público ou qualquer outro ato solene para se constituir ou se extinguir, transcorre meramente no plano dos fatos, sendo configurada pela presença dos critérios abertos e muito pouco precisos da convivência pública, contínua, duradoura, com o propósito de constituir família.
E se a regra da presunção da paternidade não pode ser aplicada nem mesmo à união estável, que é uma relação jurídica com o status de entidade familiar e na qual também existe o dever de fidelidade, muito menos pode ser aplicada a relações casuais, fortuitas, e que o ordenamento legal sequer reconhece como jurídicas. Antes de ser uma questão legal, poderíamos dizer que é uma questão de bom senso.
Mas bom senso não há no Estatuto das Famílias. Muito longe disso, na verdade, como venho mostrando ao longo das últimas semanas (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).
O Estatuto das Famílias pretende ampliar insanamente a incidência da regra da presunção de paternidade para abarcar toda e qualquer relação de “convivência dos genitores à época da concepção”. Confira:
Art. 82. Presumem-se filhos:
I – os nascidos durante a convivência dos genitores à época da concepção;
O que caracteriza a dita “convivência dos genitores à época da concepção”?
O Estatuto das Famílias, coerente com a irresponsabilidade generalizada que é seu traço mais típico, simplesmente não define.
Assim, em razão de mera relação de “convivência”, de um namoro recém iniciado, de uma “amizade colorida”, ou de outra relação qualquer sem estabilidade e onde não exista a mínima possibilidade de racionalmente presumir a paternidade – relações cada vez mais comuns face às liberdades existentes nos costumes de nossos já excessivamente ‘alegres’ dias, note-se – um homem poderá ser havido como pai da criança.
Para que esse vínculo se desfaça caberá a ele o ônus de promover ação de contestação da paternidade. E enquanto essa ação tiver andamento – moroso e custoso -, esse homem, mesmo não sendo o pai, terá de prestar pensão alimentícia, sem possibilidade de reaver posteriormente o que pagou, pois alimentos são, em regra, irrepetíveis.
Mais uma vez, a porta ficará escancarada a oportunistas se este Estatuto for aprovado.
*Regina Beatriz Tavares da Silva. Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.

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