O RE 1.045.273 E RECONHECIMENTO DE EFEITOS PREVIDENCIÁRIOS A UNIÕES SIMULTÂNEAS
Por Venceslau Tavares Costa Filho*, originalmente publicado no Conjur
No dia de dezembro de 20, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do RE 1.045.273-SE.[1] Três ministros já haviam se manifestado pelo improvimento do recurso e, portanto, pelo não reconhecimento de tais direitos previdenciários: Alexandre de Moraes (o relator), Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
Contudo, o ministro Fachin abriu divergência pela atribuição de efeitos previdenciários às “uniões estáveis” simultâneas, no que foi acompanhado por Rosa Weber, Luis Roberto Barroso, Carmen Lúcia e Marco Aurélio. Após a retomada do julgamento em sessão virtual, veio a lume o voto do ministro Dias Toffoli no sentido de improver o recurso. Os ministros Kássio Marques e Luis Fux ainda não votaram, portanto.
Destes votos, destaco o dos ministros Marco Aurelio e Rosa Weber que reconhecem a possibilidade de efeitos previdenciários a uniões simultâneas, por se tratar de união estável e não de casamento. O ministro Marco Aurélio, inclusive, chamou atenção para o fato de que foi relator do RE 397.762-BA no qual proferiu o voto condutor que culminou com a negativa do rateio da pensão previdenciária entre a esposa do falecido e a concubina. Para ele, o caso não guarda semelhança com aquele precedente, pois ali se tratava de casamento, de modo que a união paralela naquele caso configuraria concubinato.[2]
Caso tal entendimento venha a prevalecer, estaremos diante de uma grande incoerência do Supremo Tribunal Federal, a contrariar seus próprios entendimentos.
Explico melhor. No julgamento dos Recursos Extraordinários n. 878.694-MG e 646.7-RS sob o rito da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal terminou por equiparar a união estável ao casamento em relação a certos aspectos da sucessão causa mortis. Naquele julgamento, o Ministro Luis Roberto Barroso (relator) asseverou que o legislador infra-constitucional pode atribuir regimes jurídicos diversos ao casamento e a união estável, mas “só será legítima a diferenciação de regimes entre casamento e união estável se não implicar hierarquização de uma entidade familiar em relação à outra, desigualando o nível de proteção estatal conferido aos indivíduos”.
Ademais, na trilha do entendimento já esposado pelo Ministro Luiz Fux na ADPF 132, não há que se admitir hierarquia entre casamento e união estável, porquanto entre elas inexista “distinção ontológica”. Ainda segundo o Ministro Luiz Fux, o tratamento diferenciado entre elas justifica-se apenas “em virtude da solenidade de que o ato jurídico do casamento — rectius, o matrimônio — se reveste, da qual decorre a segurança jurídica absoluta para as relações dele resultantes, patrimoniais (como, v.g., o regime de bens ou os negócios jurídicos praticados com terceiros) e extrapatrimoniais”.
Assim, união estável e casamento “funcionarão substancialmente do mesmo modo”, segundo o entendimento do Ministro Fux (ADPF 132). Este entendimento foi expressamente adotado como fundamento do acórdão no julgamento do RE 878.694-MG e do RE 646.7-MG sob o rito da repercussão geral.
Destaque-se também o voto-vista do ministro Dias Toffoli, que foi professor de Direito de Família, por sua coerência com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e com as bases do direito de família brasileiro.
O Ministro Dias Toffoli inicialmente reafirma a jurisprudência da Corte no sentido de reconhecer a união estável homoafetiva, como já pacificado no julgamento da ADI n. 4.277-DF e da ADPF n. 132-RJ, ambas sob a relatoria do Ministro Ayres Britto. Já quanto a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes (sejam hetero ou homoafetivas), pontuou que a Constituição Federal de 88 contem comando no sentido de facilitar o reconhecimento formal da união estável (art. 6, § 3º), e que institui regra no sentido de desburocratizar a dissolução do vínculo do casamento com a Emenda Constitucional n. 66/20 (art. 6, § 6º).
Ademais, o ministro Dias Toffoli reafirma em seu voto que o Constituinte desejou distinguir a união estável em relação ao casamento, ao prescrever a possibilidade conversão do primeiro instituto no segundo (art. 6, § 3º). Daí as diferenças quanto a solenidade para a constituição do casamento, a modificação do estado civil e em relação a extinção.
As formalidades e solenidades do casamento conferem mais segurança quanto a formação dos vínculos familiares; mas isto não resulta na “superioridade de uma forma jurídica sobre a outra. Em verdade, na multiplicidade familiar estabelecida pela Constituição, se atribuiu idêntica relevância a cada forma familiar”, segundo Dias Toffoli.
Apesar das diferenças, o Ministro Dias Toffoli aponta que o legislador equiparou certos aspectos dos institutos, a exemplo da regra do art. 1.7 do Código Civil: “Art. 1.7. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.5; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”.
Ora, o art. 1.5 do Código Civil trata dos impedimentos para o casamento e que, segundo Dias Toffoli, “por força da legislação (art. 1.7, §1º), também se aplica à união estável, sob claro reconhecimento de que a ela, como entidade familiar, também se assegura proteção à unicidade do vínculo”.
Assim, quem convive em união estável não poderá esperar reconhecimento estatal de outro vínculo familiar simultâneo da mesma natureza. Tal vínculo simultâneo já é reconhecido pela legislação com o nome de concubinato, nos termos do art. 1.727 do Código Civil.
Mas, segundo Dias Toffoli, só há que se falar em concubinato se o parceiro casado mantém convivência de fato com seu cônjuge. Inexistindo tal convivência de fato, a relação pode vir a ser reconhecida como união estável, preenchidos os demais pressupostos.
Ademais, diante da regra constitucional que pressupõe o divórcio para a dissolução do vínculo do casamento (art. 6, § 6º), o legislador infraconstitucional não impediu o reconhecimento de união estável. Daí porque o Ministro Dias Toffoli concluiu pela impossibilidade cumulação de vínculos, seja de casamento ou de união estável, “salientando, desde já, que não se trata de privilegiar a relação que primeiro for reconhecida, dada a possibilidade de ajuizamento de ação própria que permita o confronto dos fatos alegados e das provas produzidas, na direção da obtenção da verdade real”.
Esperamos que o voto do Ministro Dias Toffoli sinalize para a formação de uma maioria de Ministros que votarão de forma coerente com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Muito já se falou sobre este importante julgamento, pelo que dentre as diversas vozes considero importante destacar a de Regina Beatriz Tavares da Silva, que representou a ADFAS como amicus curiae neste julgamento: “União estável é entidade familiar, como o casamento. União estável pode ser convertida em casamento. União estável é monogâmica. Na união estável vigora o dever de fidelidade. Não cabe, sob qualquer ótica constitucional a atribuição de efeitos previdenciários para amantes”.[3]
Por fim, preocupa-nos algo que poderíamos chamar de efeito “Ronaldinho Gaúcho” no que diz respeito ao reconhecimento de tais uniões paralelas ou simultâneas; o que guarda relação com o fenômeno da “não-monogamia consensual” (consensual non-monogamy, ou CNM) na atualidade. As relações “CNM” abarcam desde o poliamorismo até diversos tipos de relações sexualmente abertas.[4] Uma pesquisa indica que cerca de 3% dos norte-americanos adultos encontram-se atualmente em algum tipo de relacionamento “aberto”. Indaga-se, contudo, quão consensual é uma relação não-monogâmica “consensual”? Uma “dona-de-casa, desempregada, introvertida e dependente de um parceiro economicamente bem sucedido, extrovertido e aberto a aventuras (sexuais e afetivas) realmente tem condições de se opor ao parceiro que deseja uma relação aberta?[5]
A resposta padrão no sentido de que deve bastar uma comunicação franca entre os parceiros não parece ser suficiente (e honesta), especialmente em situações nas quais um dos parceiros tem um grande poder e influência de fato sobre o outro.
Para ilustrar a questão da consensualidade nas relações não-monogâmicas, tome-se o exemplo de um conhecido ex-jogador de futebol brasileiro. A imprensa divulgou que uma das ex-parceiras deste jogador ajuizou pedido de reconhecimento de união estável e pensão compensatória. Ela afirma que manteve “trisal” com o ex-jogador e outra mulher consensualmente: “Não dormíamos todos juntos. Tudo o que houve entre nós foi às claras. Ele nos propôs uma vida de casados porque disse que não conseguia viver sem as duas e nós éramos amigas, nos dávamos bem”.[6]
Contudo, o ex-jogador desejava manter relações com outras “amigas” que não apenas as duas “amigas” com quem já residia: “Ele disse que tinha amigas e que elas iriam ligar para ele quando quisessem; e se eu não estava satisfeita era pra pegar minhas coisas e ir embora”.[7] Após discutir e ser empurrada pelo jogador, ela ainda relata que deixou de conviver com ele, apesar da outra “amiga” haver continuado a residir com o ex-jogador sob o mesmo teto.
Admitindo-se como verdadeiros os fatos narrados, o caso deste ex-jogador de futebol ilustra bem que as relações não-monogâmicas não são necessariamente consensuais, ou que podem se iniciar consensualmente (pois uma parceira admitiu a introdução de apenas mais uma pessoa na relação) e se converterem em uniões não consensuais (com a introdução de outras pessoas na relação sem o consentimento dos integrantes iniciais).
Admitir a divisão da pensão previdenciária em tais situações é permitir o sacrifício do sustento do viúvo ou da viúva, em razão da partilha da pensão em tantos quantos foram os relacionamentos afetivos e sexuais estáveis do de cujus; em prejuízo também da pensão previdenciária eventualmente devida aos filhos menores e/ou deficientes do falecido.
Caso o Supremo Tribunal Federal admita a possibilidade de conferir efeitos a duas uniões simultâneas, o que impedirá o reconhecimento de efeitos a três, cinco ou vinte cinco uniões simultâneas?
Por fim, é de se questionar se a vontade dos participantes da relação é suficiente para tornar lícitas as relações simultâneas ao casamento ou a união estável. Veja-se que, por exemplo, não é reconhecido às gestantes o poder de dispor “de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto” (Lei n. 9.434/97, art. 7º, § 7º); e que ao consumidor pessoa física não é reconhecido o direito de renunciar a responsabilização do fornecedor por vícios de qualquer natureza (Lei n. 8.078/90, art. 51, I).
É a vulnerabilidade da gestante e do consumidor que justificam tais limitações a liberdade de disposição. As relações de união estável e de casamento também podem abarcar situações de vulnerabilidade que justificam restrições quanto ao autorregramento da vontade.
Infelizmente, em razão da dependência econômica e afetiva, ou em vista das necessidades dos filhos menores ou deficientes; muitas pessoas se sujeitam a relacionamentos abusivos. Se o STF chancelar o reconhecimento dos efeitos previdenciários das uniões simultâneas, estas pessoas também se verão prejudicadas em relação aos meios para o seu sustento.
É em atenção a estas questões que a doutrina tradicionalmente qualifica os deveres conjugais como de ordem pública. Presumir igualdade e autonomia plena em tais relações parece ser irreal e termina por contribuir para o aprofundamento das desigualdades nas relações domésticas e familiares.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Pedimos vênia para indicar trabalho anterior de nossa autoria escrito em conjunto com a professora Adriana Lindaura Ferraz. Disponível em: https://www.academia.edu/446698/O_julgamento_do_RE_1_045_273_SE_e_o_direito_previdenci%C3%A1rio_dos_amantes
[2] Cf: https://www.youtube.com/watch?v=jTjnJMf-7LY
[4] SMITH, Heather; HAWKINS, Alan J. Is there a battle of the sexes in “Consensual” Non-Monogamy? Public Discourse – The Journal of the Whiterspoon Institute (20). Disponível em: https://www.thepublicdiscourse.com/20/57751/. Acesso em: 08 de dezembro de 20.
[5] SMITH, Heather; HAWKINS, Alan J. Ibidem.
[6] Disponível em: https://blogs.ne.uol.com.br/social1/20/12/07/duas-noivas-ao-mesmo-tempo-agressao-e-pensao-de-r-0-mil-ex-de-ronaldinho-gaucho-abre-o-jogo/ Acesso em 08 de dezembro de 20.
[7] Disponível em: https://blogs.ne.uol.com.br/social1/20/12/07/duas-noivas-ao-mesmo-tempo-agressao-e-pensao-de-r-0-mil-ex-de-ronaldinho-gaucho-abre-o-jogo/ Acesso em 08 de dezembro de 20.
*Advogado e vice-presidente da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões de Pernambuco. Mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
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