O NOVO CÓDIGO CIVIL E A DEMOLIÇÃO DO DIREITO

Sem clareza a respeito do caráter vinculante dos contratos, da extensão da indenização e dos limites de filiação e sucessão, não há sociedade organizada

Por Judith Martins-Costa e Cristiano de Sousa Zanetti

No último dia 1º de abril, diante de membros dos três Poderes da República, no Salão Negro do Congresso Nacional, foi festejada a apresentação ao Senado do projeto de reforma do Código Civil. A proposta foi então qualificada como uma atualização do Código Civil de 2002, voltada a modernizá-lo, a bem da segurança jurídica.

Não é disso que se trata, entretanto. Entre a intenção declarada e o que está feito há um fosso a transpor. Na verdade, o projeto consiste em um novo Código Civil, pois pretende modificar nada menos que 1.122 artigos do texto hoje em vigor, mudando a sua linguagem, a sua estrutura e o seu sistema. Considerando só o tamanho da mudança proposta, isso equivale a aproximadamente três códigos penais ou nove códigos de defesa do consumidor.

A prevalecer o texto do novo Código Civil, o direito brasileiro não andará para a frente, mas recuará para tempos remotos, há mais de dois milênios, quando as regras que estruturam a nossa vida em sociedade ainda não se encontravam amadurecidas.

Isso porque o novo Código Civil colocará em xeque três pilares do nosso direito.

O primeiro deles diz respeito aos contratos. Se entrar em vigor, o conteúdo dos contratos passará a ser controlado pelo Poder Judiciário com base nos conceitos de confiança, simetria e paridade —termos vagos, que não expressam conceitos densificados na ciência do direito e cujo significado o projeto não se dá ao trabalho de explicar. Estará aberto espaço para questionar os termos de um contrato, com base na afirmação de que já não há mais confiança na contraparte ou de que não se trata de uma relação paritária ou simétrica, seja lá o que isso queira dizer. Por essa razão, o novo Código Civil cria embaraço aos negócios, fomenta litígios sem fim e compromete o funcionamento da economia.

O segundo diz respeito à responsabilidade civil. Uma vez aprovado o novo Código Civil, a indenização deixará de ser medida pela extensão do dano, seja porque o ressarcimento patrimonial poderá ser substituído por um obscuro “montante razoável”, “ponderado” com base em “máximas de experiência” (outro conceito vago), seja porque o dano moral poderá ser acrescido de uma pena “com caráter pedagógico”, passível, inclusive, de ser revertida a fundos públicos, devendo ser estimada com base em uma multiplicidade de critérios confusos, distantes do que ensinam a tradição e o direito comparado. Isso sem contar a regra que passa a permitir a indenização de “danos indiretos” e que torna imprevisível o conjunto de fatores a se considerar na hora de calcular o montante do ressarcimento. Nesse cenário, o direito de danos se assemelha mais a um jogo de azar do que a uma forma de cálculo.

O terceiro diz respeito ao direito de família e de sucessões. O novo Código Civil admite a filiação socioafetiva, desde que declarada por decisão judicial. O texto, no entanto, não prevê os critérios para que uma pessoa possa ser considerada filha, sob a perspectiva da socioafetividade. Isso significa que a decisão sobre quem é filho dependerá da percepção de cada juiz, o que, necessariamente, conduzirá a decisões muito díspares na matéria. Pessoas em situações análogas ora serão consideradas filhas, e, portanto, credoras de alimentos e titulares de herança; ora não o serão. Uma injustiça, a toda prova. Do mesmo modo, será possível imputar a qualquer homem a condição de pai: semelhantemente ao que se faz num “teste de bafômetro”, se o apontado como pai se recusar a fazer exame de DNA, se tornará “pai” por ato do oficial do cartório, sem qualquer outra prova, com todas as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais que a paternidade acarreta.

Não há como superestimar os custos sociais e econômicos de tamanha insegurança jurídica. Sem ter clareza a respeito do caráter vinculante dos contratos, da extensão da indenização, dos limites da filiação e da sucessão, não há sociedade que possa se organizar de maneira adequada. No regime proposto pelo novo Código Civil, o verdadeiro beneficiado será o arbítrio, pois as regras jurídicas poderão ser interpretadas de acordo com o gosto de quem as aplica.

Por conta disso, espera-se que o Senado se desincumba da tarefa que lhe é confiada pelo povo brasileiro e não permita a demolição do nosso direito pretendida pelo novo Código Civil.

Fonte: Folha de São Paulo

Fale conosco
Send via WhatsApp