O NÃO E O SIM À INSEMINAÇÃO CASEIRA

Em matéria originalmente publicada na Folha de S. Paulo no dia 7 de março, intitulada “A inseminação artificial caseira deve ser regulamentada?”, foram apresentados os argumentos opostos por Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da ADFAS, e os de Maria Berenice Dias, Vice-Presidente do IBDFAM.

A inseminação artificial caseira deve ser regulamentada? NÃO

Por Regina Beatriz Tavares da Silva
Desproteção da mulher e da criança; há risco de perfuração no colo do útero e de ambas serem contaminadas por doenças

A inseminação artificial caseira não tem previsão legal e traz riscos às mulheres e às crianças. Bem diferente da reprodução medicamente assistida, que tem regulamentação pelo Conselho Nacional da Justiça (CNJ) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

Mesmo assim, a inseminação caseira é praticada por supostos doadores de sêmen e mulheres que buscam a gravidez, segundo informações da imprensa. Um homem, que se apresenta em grupos virtuais, ejacula em um recipiente e a mulher publicada em 7 de janeiro, mostra que a prática tem incentivado até mesmo assédio e abusos contra as mulheres. Há homens que pedem fotos íntimas e exigem “estímulos” para ejacular, relata o jornal.

Se não for para assédio, haveria venda do esperma? Recorde-se que o assédio sexual e a venda de sêmen são vedados pela legislação. Afinal, quem doaria seu sêmen para que uma mulher desconhecida engravide, por meio de procedimento que não tem previsão legal, com o risco de ser forçado a reconhecer a paternidade da criança? Bem diferente da reprodução medicamente assistida, em que o material genético doado não gera vínculo de paternidade conforme as normas citadas.

Mas há outros riscos, alertados pela Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) ao CNJ, em manifestação no pedido de providências do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), que pretendia incentivar a inseminação caseira. A ADFAS comprovou, por meio de laudo médico, que a mulher pode ter perfuração no colo do útero e, assim como a criança, ser contaminada por doenças, como a Aids. O ser humano assim gerado não terá dados genéticos do ascendente para tratamentos de saúde. A Anvisa e o CFM posteriormente se opuseram ao referido pedido, que foi julgado improcedente.

Para o registro de criança recém-nascida e gerada por reprodução assistida, o CNJ exige a apresentação de declaração do diretor técnico da clínica, atestando que o procedimento ocorreu sob supervisão médica e segundo normas éticas, conforme Provimento CNJ 149. É esta norma que o citado instituto pretende revogar.

Recentemente foi realizado pelo referido instituto outro pedido ao CNJ, sob argumento desvirtuado dos fatos demonstrados no processo julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nessa decisão foi autorizado o registro da criança com cerca de 2 anos pela companheira da mãe biológica porque houve demonstração da relação socioafetiva. A concepção da criança deu-se durante a união estável das duas mulheres, tendo sido verificado pelo Poder Judiciário o melhor interesse da criança.

Recordemos que a filiação socioafetiva, que tem os mesmos efeitos da biológica, constrói-se com o passar do tempo. O Provimento CNJ 149 possibilita o seu registro se a criança completou 12 anos, com apuração pelo Cartório de Registro Civil da conjugalidade e de dados objetivos sobre a exteriorização da parentalidade. Se for um recém-nascido ou uma criança em tenra idade, a autorização de registro de nascimento deve ser judicial, com realização de provas, inclusive periciais, sobre o melhor interesse do menor, conforme várias decisões dos tribunais brasileiros.

O Poder Legislativo brasileiro precisa urgentemente coibir a inseminação caseira, a exemplo do que foi feito em Portugal pelo decreto-lei 319/1986. Naquele país, a reprodução artificial somente pode ser realizada por método medicamente assistido, com sêmen recolhido, analisado e conservado por instituições públicas ou privadas.

Separemos o joio do trigo e não sejamos iludidos por métodos que obnubilam a razão, colocando em risco a saúde humana e a segurança jurídica.

A inseminação artificial caseira deve ser regulamentada? SIM

Por Maria Berenice Dias
Graças aos avanços da engenharia genética, o sonho de ter filhos tornou-se uma realidade ao alcance de qualquer pessoa. No entanto, o uso das técnicas de reprodução assistida, não.

Essas práticas se encontram regulamentadas exclusivamente pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio de normas éticas que se destinam à relação médico-paciente. Porém, ultrapassam esse limite ao impor, por exemplo, o anonimato do doador e proibir a remuneração nas hipóteses de gravidez por substituição, chamada de “barriga de aluguel”.

Um dos protocolos exigidos é que os envolvidos no processo procriativo e o diretor da clínica médica firmem um termo de consentimento informado. Tal exigência acabou induzindo em erro o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que exige a apresentação desse documento para o registro extrajudicial do recém-nascido.

Mas existe uma realidade que não se pode ignorar.

Quer os altos custos do procedimento nas clínicas de fertilização, quer o desejo de escolher o doador do material genético, difundiu-se a prática da autoinseminação, chamada de “inseminação caseira”, principalmente entre os casais homoafetivos femininos. No mais das vezes, elas querem que o filho conheça e conviva com quem elegeram para genitor.

Só que, quando do nascimento do filho, pela ausência do indigitado documento, o registrador civil limita-se a promover o registro no nome da parturiente. Mesmo quando consta o nome da outra mãe na Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou mesmo quando elas são casadas.

A negativa impõe a propositura de uma ação judicial para a inclusão do nome da mãe não gestante no registro. Durante esse período —que costuma ser longo—, ela resta privada de gozar da licença-maternidade e de receber o salário-maternidade. Já o filho tem cerceado o direito à própria identidade, de ter o nome de uma das mães em seu registro de nascimento. Não poder ser incluído no seu plano de saúde, não fará jus à herança caso ela venha a falecer. E, na hipótese de as mães se separarem, não terá direito à convivência nem a alimentos.

Ora, se o propósito da negativa é garantir que não ocorram fraudes, cabe é delegar ao oficial do registro civil que promova o registro após colher as provas que entenda necessárias para certificar-se da origem da filiação. Até porque, em juízo, nem partes nem testemunhas são ouvidas. Limita-se o juiz a ouvir o Ministério Público e chancelar o pedido.

A injustificável resistência do CFM nada mais significa do que uma tentativa de assegurar reserva de mercado aos médicos, quando deveria editar normas que assegurem segurança a esse procedimento. Afinal, se existem potenciais riscos à mãe, maiores são os prejuízos ao filho.

Segundo o Superior Tribunal de Justiça, não há, no ordenamento brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por meio de inseminação artificial “caseira”. Ao contrário, à luz dos princípios que norteiam o livre planejamento familiar e o melhor interesse da criança, indicam que a inseminação artificial “caseira” é protegida pelo ordenamento jurídico (recurso especial 2.137 .415/SP, relatora Nancy Andrighi, j. 15/10/2024).

Diante desse panorama, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) protocolou perante o CNJ solicitação para que a norma reguladora dos serviços notariais e registrais assegure o duplo registro quando do nascimento, com as cautelas a serem adotadas pelo registrador.

Afinal, é imprescindível priorizar o interesse de quem goza, constitucionalmente, de proteção absoluta.

Vide decisão do CNJ que julgou improcedente o Pedido de Providências do IBDFAM, acolhendo os argumentos da ADFAS:
https://adfas.org.br/cnj-julga-improcedente-pedido-de-providencias-sobre-inseminacao-caseira/

Fonte: Folha de São Paulo, publicado em 07 de março de 2024.

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