O JULGAMENTO DO RE 1.045.273/SE E O DIREITO PREVIDENCIÁRIO DOS AMANTES
*Por Venceslau Tavares Costa Filho e **Adriana Lindaura Rocha Ferraz de Oliveira, originalmente publicado no Conjur
Está em pauta para julgamento no STF o RE 1045273/SE, no qual que se discute a possibilidade ou não de conceder direitos previdenciários a amantes, isto é, se devem ser estendidos a uma relação concubinária os direitos previdenciários estabelecidos em favor de cônjuges e conviventes. Não se trata, porém, de questão exclusivamente previdenciária, uma vez que o julgamento deve enfrentar o próprio conceito de família.
Com efeito, a qualidade de dependente do segurado é conferida pela legislação previdenciária primariamente ao seu núcleo familiar composto pelo cônjuge ou companheiro(a) e filhos, menores ou com deficiência. Na ausência destes, qualificam-se como beneficiários os pais e, em sua falta, os irmãos menores ou com deficiência. Vê-se, portanto, que a dependência previdenciária está diretamente relacionada com a caracterização de uma entidade familiar.[1]
Ora, os cônjuges/conviventes na união estável e os filhos menores de 21 anos ou inválidos são reputados dependentes preferenciais na previdência social em razão da dependência econômica ser presumida nestas situações, ou seja, não se faz necessário demonstrar a real dependência econômica em relação ao segurado para o pedido de concessão do benefício previdenciário.
De acordo com Laura Souza Lima e Brito, em alentado estudo sobre a questão, tal inclusão do cônjuge e do convivente no rol de dependentes preferenciais lastreia-se no registro público do casamento ou na convivência pública na união estável; pois nestes casos a presunção de dependência decorre do dever de assistência material entre os cônjuges (art. 1.724, CC); dever este que inexiste no concubinato.[2]
O eventual reconhecimento de direitos previdenciários aos amantes consistiria numa indevida equiparação destes ao núcleo familiar mais próximo, o que é rechaçado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Como bem afirmou o CNJ, ao decidir o pedido de providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, a sociedade brasileira não incorporou a “união poliafetiva” como forma de constituição de família.
Ao contrário, mantém a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo, sendo vedada a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a “união poliafetiva”.
Ainda que lavrada tal escritura, esta não faz surgir nova modalidade familiar e não gera efeitos de Direito de Família para os envolvidos. A família, assim, não se resume à vontade das partes, mas consiste numa entidade protegida pela relevância que possui para a sociedade, notadamente para a formação de novos cidadãos.
Com brilhantismo, Ricardo Dipp assevera que “a atitude de compreender as disposições da Constituição sobre a liberdade em ordem de tê-la como fim do Estado,e não como um meio de consecução do bem comum, não passa (agora) de uma adesão ao substrato ideológico do irracionalismo atual, abdicando-se da consideração do fundamento da liberdade na ordem real e concreta”.[3]
É bem verdade que muitos doutrinadores defendem que os interesses individuais devem se sobrepor aos interesses da família. A Constituição Federal de 1988, contudo, é clara ao reconhecer a família como um sujeito de direitos autônomo em relação aos seus membros, nos termos do inciso do art. 220, § 3º, II: “Compete à Lei Federal: II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”. É também neste sentido o entendimento de Caio Cabeleira, que assinala que “o marido e a mulher, enquanto na direção da sociedade conjugal, devem agir no interesse da família, não nos seus interesses egoísticos. (…). Da mesma maneira, quando exercem o poder familiar sobre os filhos, devem buscar o melhor interesse destes, não os seus próprios”.[4]
Nesta toada, o art. 1.567 do Código Civil prescreve que: “A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos”. Ora, se os envolvidos de comum acordo não podem atribuir a si mesmos efeitos de Direito de Família constituindo uma “união poliafetiva”, com muito mais razão não pode igualmente a relação com o(a) amante ser alçada ao status de núcleo familiar.
Além de ferir frontalmente a monogamia, consistiria numa grave assimetria do sistema jurídico. Historicamente, o advento da monogamia é associado ao declínio do patriarcado, como assinala Roberto Senise Lisboa: “O patriarcado foi exercido, em diversos períodos da história e em diversas partes do mundo, mediante a poligamia, que paulatinamente foi decaindo, sendo substituída pela sociedade da monogamia”[5]
A professora Graciela Medina, catedrática da Universidad de Buenos Aires e um dos maiores expoentes do direito de família da América Latina, assinala que a rejeição às uniões poligâmicas justifica-se em razão do compartilhamento simultâneo do vínculo matrimonial com diversas mulheres implicar uma “necessária situação de desigualdade, já que quando um homem compartilha simultaneamente várias esposas produz-se simultaneamente uma situação em que cada esposa entrega-se plenamente ao marido, enquanto ele se entrega apenas parcialmente a cada uma delas”.[6]
Contrariaria, também, a proteção devida ao núcleo familiar, seja ele formalizado pelo casamento ou consolidado numa união estável, ameaçando a segurança jurídica dos cônjuges e companheiros que teriam seus direitos divididos com o(a) amante do consorte. Numa inversão completa de valores, reconhecer direitos previdenciários aos amantes seria premiar a relação ilícita, que fere o dever de lealdade, e punir o núcleo familiar monogâmico que a lei busca proteger e que constitui elemento estrutural da sociedade: “Lealdade e respeito mútuo remontam à ideia de fidelidade recíproca. A fidelidade é um requisito fático intrínseco à noção de entidade familiar. Mais que uma exigência da sociedade monogâmica, faz parte da concepção eudemonista que reclama da família moderna a afetividade que se realiza na promoção do desenvolvimento emocional da pessoa humana”.[7]
Ademais, o reconhecimento da possibilidade de um homem manter união estável simultaneamente com várias mulheres também viola a igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal, nos termos do § 5º do art. 226 da Constituição Federal. Enfim, estamos cientes quanto ao que desejou expressar a Constituição quanto utilizou expressão “homem e mulher” ao referir a união estável; e, como disse Lenio Streck, “sabemos que sabemos”!
A defesa que se faz aqui da aplicação do texto da Constituição não deve ser interpretada como exegetismo, apenas “quem não compreende o significado do positivismo jurídico é que pode pensar que a defesa da aplicação de um texto, nos seus limites semânticos, configura(ria) uma atitude positivista”.[8]
Trata-se, simplesmente, da defesa da aplicação da Constituição; de levar a Constituição Federal a sério. Por fim, a (equivocada) defesa da equiparação dos efeitos jurídicos do concubinato aos do casamento ou da união estável gera certas situações paradoxais.
O primeiro paradoxo dá-se no processo de esvaziamento do conteúdo moral do casamento. Assim, ao mesmo tempo em que se verifica a defesa da eliminação de deveres conjugais que teriam por base uma moral de origem religiosa, verifica-se uma cobrança crescente “por solidariedade entre cônjuges, ex-cônjuges ou entre pais e filhos, no campo do afeto, mas cuja infração geralmente implica algum tipo de contrapartida financeira”; como registrou Otávio Luiz Rodrigues Jr com o brilhantismo costumeiro.[9]
Outro paradoxo dá-se em relação ao chamado pluralismo nas relações familiares. A doutrina contemporânea defende o reconhecimento de diversas entidades familiares na esteira do chamado direito a diferença. A equiparação de efeitos do casamento ao concubinato (e também a união estável), contudo, resulta em uma “certa indiscriminacion jurídica, que ha privado a la conyugalidad de matices y de originalidade, de variantes y de riqueza de regulación jurídica”.[10] A preservação do direito a diferença nas relações familiares implica, portanto, o reconhecimento de diferentes estatutos jurídicos às entidades familiares e, no caso sob análise, impõe a conclusão pelo não reconhecimento de idênticos direitos previdenciários entre o casamento e as uniões concubinárias.
Referências:
[1] Art. 16 da Lei nº 8.213/1991.
[2] BRITO, Laura Souza Lima e. Esclarecimentos sobre a impossibilidade de rateio de pensão previdenciária entre cônjuge sobrevivente e amante – 2ª parte. Revista de Direito de Família e das Sucessões, v. 2 (out.-dez./2014). São Paulo: RT, p. 101-117.
[3] DIPP, Ricardo Henry Marques. O direito de liberdade e a liberdade dos direitos. Revista dos Tribunais, v. 681 (jul./1992). São Paulo: RT, p. 285-288.
[4] CABELEIRA, Caio Martins. A ditadura do afeto: uma crítica a introdução do sentimento como valor jurídico. Revista de Direito de Família e das Sucessões, v. 1 (jul./2014). São Paulo: RT, p. 43.
[5] LISBOA, Roberto Senise. Dignidade e solidariedade civil-constitucional. Revista de Direito Privado, v. 42 (abr.-jun./2010). São Paulo: RT, p. 30-70.
[6] MEDINA, Graciela. La poligamia: limites a la autonomia de la voluntad en el derecho de família. Revista de Direito de Família e das Sucessões, v. 4 (abr.-jun./2015). São Paulo: RT, p. 183-194.
[7] CAMBI, Eduardo. As uniões extramatrimoniais no velho projeto do novo código civil. Revista de Direito Privado, v. 2 (abr.-jun./2000). São Paulo: RT, p. 114-127.
[8] STRECK, Lenio Luiz. O ativismo, o justo e o legal: crítica ao pamprincipiologismo a partir do caso das “famílias paralelas”. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 1 (out.-dez./2014). São Paulo: RT, p. 151-160.
[9] RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Natureza jurídica e limites dos alimentos compensatórios: uma análise doutrinário-jurisprudencial no Brasil e no exterior. Revista dos Tribunais, v. 1.000 (fev. 2019). São Paulo: RT, p. 263-288.
[10] BASSET, Úrsula C. El malestar en la conyugalidad y sus repercusiones jurídicas: del matrimonio a las uniones de hecho, y de allí a la poligamia. Revista de Direito de Família e das Sucessões, v. 3 (abr.-mar./2015). São Paulo: RT, p. 219-233.
*Advogado. Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade de Pernambuco (UPE). Doutor em Direito pela UFPE.
** Analista Judiciária. Mestranda em Direito pela UFPE. Membro da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS).