O AUMENTO DA PROCURA POR PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO DURANTE A CRISE DA COVID-19
Por Marcos Taverneiro* e Ana Paula Gimenez**, originalmente publicado no Conjur
Pensar na morte é historicamente um tabu. Planejar como as coisas ocorrerão após nossa partida sempre foi tema delicado para todos os seres humanos e é ainda mais espinhoso para latino-americanos. Nascemos e queremos viver eternamente. Trabalhamos e acumulamos bens, porém a única certeza que temos na vida é que um dia iremos partir. Com o surgimento do novo coronavírus, as pessoas passaram a sentir ainda mais medo deste inevitável dia e se viram obrigadas a pensar em alguma forma de planejamento.
A pandemia da Covid-19 vem provocando efeitos severos nos mais diversos espectros da sociedade. São evidentes os reflexos do isolamento social na dinâmica do trabalho e das relações pessoais, além do impacto na renda da maior parte da população mundial. Esse cenário trouxe ainda mais incerteza ao mercado.
Considerando que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 90% das empresas brasileiras têm perfil familiar, todas elas e suas respectivas famílias acabaram invariavelmente atingidas pela crise. No país, a grave crise na saúde pública veio ainda acompanhada da histórica falta de planejamento, da ausência de coordenação das ações entre governo federal, Estados e municípios e de uma reprovável disputa político-eleitoral.
Com a interrupção ou diminuição das atividades, muitos grupos voltaram seus olhos para dentro de casa e perceberam não possuir nenhum projeto para a sucessão do comando das operações, nem tampouco para a gestão e divisão do patrimônio amealhado. Isso intensificou a busca por advogados capazes de elaborar um projeto de planejamento sucessório que assegurasse a preservação da atividade geradora de receitas, a proteção dos sócios dos riscos operacionais e a garantia de divisão dos bens conforme a vontade do núcleo familiar — tudo com o menor custo tributário possível.
Planejamento sucessório nada mais é que o instrumento pelo qual é possível organizar a transferência de bens de uma pessoa após a sua morte. A finalidade principal é preservar o patrimônio na família, com um custo menor, de acordo com a autonomia da vontade do de cujus e com a finalidade de evitar futuros litígios familiares.
Três aspectos devem ser considerados para um planejamento sucessório: societário, familiar e tributário. No aspecto familiar, se organiza previamente a transferência do patrimônio aos herdeiros, protegendo a autonomia da vontade dos patriarcas de uma forma ampla. Devemos ter em mente a influência do regime de bens dos cônjuges, e também como ocorre a sucessão no país em questão.
Alguns grupos familiares vêm antecipando a sucessão por meio de doações em vida, com ou sem reservas, obrigando seus herdeiros e sucessores a celebrar pactos que estabeleçam o regime de separação total de bens e elaborando testamentos, além de celebrar acordos de quotistas para disciplinar as regras de gestão. A mediação pode ser instrumento usado na fase inicial, justamente para um estudo mais aprofundado da estrutura familiar.
Sendo a maioria das empresas nacionais sociedades limitadas formadas por pequenas famílias, grande parte dos projetos de planejamento patrimonial ou sucessório não contempla estruturas complexas ou custosas no exterior, como fundações, holdings, offshore ou mesmo modalidades contratuais como o trust. Um dos instrumentos mais utilizados nos projetos nacionais é a constituição de holdings familiares. Essas sociedades, desde que corretamente implementadas, configuram ótima alternativa para trazer maior eficiência e menor custo, sem riscos para os sócios.
A holding familiar é feita através da integralização dos bens pertencentes à família, sendo seu objeto principal a participação em outras sociedades. Geralmente, é mista por constar imóveis e a sua administração, mas pode ser pura. Usualmente integraliza-se os bens na pessoa jurídica e depois doa as quotas aos herdeiros.
A doação pode ser realizada com reserva de usufruto, ou seja, doa-se aos herdeiros apenas a nua-propriedade, permanecendo com o doador o direito de uso e gozo dos frutos dos bens. Usufruto é direito real sobre coisa alheia, ou seja, o doador utiliza a coisa como se fosse sua, mas não pode dispor. Determina o artigo 1.394 do Código Civil: “O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos”. Na holding, o doador pode doar as quotas e se manter usufrutuário, recebendo dividendos e administrando a empresa.
Há ainda cláusulas contratuais, que podem ser estabelecidas, a fim de proteger a holding familiar de terceiros estranhos à família. São elas: de usufruto, inalienabilidade, incomunicabilidade, impenhorabilidade e reversibilidade. Não há uma fórmula pronta para a constituição de uma holding familiar, esta dependerá das características dos herdeiros, dos bens que compõem o patrimônio e deverá trazer regras claras e eficientes de governança.
Evidentemente existem requisitos a serem observados para assegurar a eficiência do instrumento e para evitar que as operações sejam futuramente contestadas pela Receita Federal do Brasil (RFB), como a existência de um propósito negocial. A concentração do patrimônio familiar e a comprovação da maior facilidade na sua gestão devem ser considerados para legitimar sua existência.
Outro fator que inegavelmente motivou tal escalada na procura pelos projetos foi o sentimento do iminente aumento da carga tributária. Tramitam atualmente no Congresso Nacional três propostas de reforma tributária (PEC nº 45, da Câmara dos Deputados; PEC nº 110, do Senado Federal; e PL nº 3.887/2020) e a redação final poderá ser integralmente modificada antes de um acordo para sua eventual aprovação, o que aumenta o risco.
Neste sentido, vários pontos debatidos pelas diferentes lideranças poderão impactar diretamente o futuro das empresas, seus sócios, herdeiros e sucessores. Entre eles o restabelecimento da tributação sobre os dividendos e a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas (IGF).
No âmbito de Estados e municípios, o ITBI vem sistematicamente sofrendo aumento das alíquotas, assim como o ITCMD cobrado pelos Estados e Distrito Federal é objeto da sana arrecadatória constante. Alguns Estados estudam dobrar suas alíquotas de 4% para 8%, além de restringir isenções e alterar condições sobre os prazos de recolhimento.
Pela perspectiva tributária, ainda é importante destacar o tratamento completamente diferente dispensado às receitas decorrentes de vendas de imóveis ou de aluguel quando percebidas por pessoas jurídicas ou pessoas físicas. A opção pela constituição de uma holding pode reduzir pela metade (ou até mais) a carga tributária de algumas operações.
Diante de tamanha instabilidade no cenário mundial e doméstico, pensar na sucessão e preservação do patrimônio é medida que se impõe. Seja por meio de doações em vida, pela constituição de holdings familiares, ou qualquer outra modalidade, os empresários podem evitar a dilapidação de uma riqueza, fruto geralmente de anos de trabalho árduo.
*Advogado, sócio-fundador do TVF Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-SP, palestrante e coordenador do núcleo jurídico Abimetal Sicetel.
**Advogada, doutoranda pela Universidade de Buenos Aires, diretora da Asociación Iberoamericana de Derecho Privado no Brasil, diretora da Revista Especializada de Direito Civil Legister, pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pelo Damásio, pós-graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade de Buenos Aires e palestrante.