O aborto no STF
Após a publicação do acórdão sobre o aborto proferido no Habeas Corpus n. 124.306/RJ, em 29/11/2016, pela 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, com Relatoria do Ministro Marco Aurélio, que foi vencido pelo voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso, tive a oportunidade de consultar a Dra. Marília de Siqueira, obstetra e ginecologista graduada pela Escola Paulista de Medicina, estudiosa da formação da vida.
Os estudos sobre embriologia dessa expert foram de imensa utilidade na elaboração deste artigo, em que passo a analisar o referido julgamento sobre o aborto em confronto com os dados técnicos da embriologia, ciência que estuda o desenvolvimento humano durante as primeiras semanas de vida do ser humano, da fertilização até a 8.ª semana.
O STF decidiu no referido acórdão que deveria ser concedida ordem de ofício para desconstituir a prisão preventiva de médicos que participaram de abortos ilegais, com base em duas ordens de fundamentos.
Em primeiro lugar, segundo o acórdão, não estariam presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados, por serem primários e com bons antecedentes, com trabalho e residência fixa, compareceram aos atos de instrução e deverão cumprir pena em regime aberto, na hipótese de condenação. Essa ordem de fundamento não se coloca em debate, por ser da ordem processual penal.
Em segundo lugar, o acórdão realizou interpretação da Constituição Federal em relação aos artigos 124 a 126 do Código Penal, que tipificam o crime de aborto, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, violaria, segundo o julgado em tela, diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. A criminalização dos médicos que praticaram o aborto seria incompatível com os seguintes direitos fundamentais: “os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez”.
Ficou consignado no referido acórdão que o princípio constitucional da igualdade entre homens e mulheres também subsidia a decisão, já que “homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.
A isso foi acrescentado o impacto da criminalização do aborto sobre as mulheres pobres, impedindo que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos, segundo o acórdão.
Em suma, segundo o acórdão, a tipificação penal viola o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.
Portanto, o acórdão, que deveria ficar adstrito aos aspectos do regime aberto ou fechado de prisão conforme havia votado o Ministro Marco Aurélio, no voto condutor do Ministro Luís Roberto Barroso avançou indevidamente na interpretação jurídica da tipificação penal do aborto, podendo-se afirmar que o STF permitiu o aborto até o primeiro trimestre da gestação, contrariamente ao que decidira a mesma Corte, em sua Sexta Turma, em acórdão de Relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, e à manifestação da Procuradoria-Geral da República exarada por meio de Parecer subscrito por Dra. Cláudia Sampaio Marques.
Recordemos que segundo o Código Penal brasileiro – que está em vigor e não poderia ser violado pelo STF, ainda menos poderia sê-lo naquele julgamento em que a Turma julgadora sequer tinha em sua competência a matéria da constitucionalidade ou não dos dispositivos legais da legislação penal -, o aborto pode ser praticado somente nos seguintes casos: aborto necessário, que é facultado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, e aborto no caso de gravidez resultante de estupro, quando a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (Código Penal, art. 128).
Note-se que o STF em outro julgamento, este sim em que se debatia a constitucionalidade dos dispositivos penais, foi decidido que o aborto do feto anencéfalo pode ser realizado (ADPF – Arguição de descumprimento de preceito fundamental, Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 12/04/2012). Por outras palavras, em Recurso no qual se discutia a constitucionalidade ou não dos dispositivos do Código Penal sobre o aborto, decidiu-se pela inconstitucionalidade da interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo possa ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Portanto, o aborto é permitido em nosso país somente nas hipóteses acima elencadas.
E, como antes apontado, o STF decidiu que durante o primeiro trimestre de gestação, o aborto não é crime.
Antes de mais nada, é importante salientar um dado da analogia oferecido por Dra. Marília de Siqueira: a criação da vida é assemelhada à criação do universo, em que há uma expansão no chamado modelo Big Bang (característica de nosso Universo suportada por experimentos e observações cosmológicas, cálculos e medidas da astrofísica).
Com isto, Dra. Marília quis dizer que o ser humano em formação expande-se de uma única célula, sendo a formação de um órgão dependente da existência de outro já formado, de modo que se trata do mesmo ser desde a fecundação até o seu nascimento.
Em vídeo, realizado por meio de câmara microscópica de alta definição, em que se vê o corpo de uma mulher, desde a entrada dos espermatozoides até a formação do ser humano, a referida expert mostrou-me como um espermatozoide ingressa no óvulo e inicia-se aquela expansão.
Entre os primeiros cinco dias de gestação e a 7.ª semana subsequente se produz a expansão do ser humano no seu aparelho circulatório, sistema ósseo e muscular, tronco e sistema nervoso.
Em outro material técnico vi os dois hemisférios do cérebro que estão formados desde o início e nesse mesmo tempo, assim como a coluna do ser em formação.
Cérebro, sistema nervoso, ossos e musculatura, aparelho digestivo, pâncreas, fígado e pulmões estão em formação evolutiva.
Por isso, o ser humano desde a 1.ª semana pode sentir dor, o que também denota a existência de vida.
Como se pode então dizer que o ser humano somente pode ser considerado como existente a partir do primeiro trimestre de gestação?
Mesmo que se considerasse que o córtex é a parte do ser humano que lhe confere a vida, quem poderia com certeza afirmar que antes dos tais 3 meses esse córtex não está formado?
Neste artigo não me posiciono contra ou a favor do aborto, o que, como sói acontecer, é influenciado por convicções, inclusive religiosas, agnósticas ou advindas do ateísmo de cada um.
Apenas quis mostrar como esse tema está ainda muito maltratado na área jurídica, que não se socorre de dados da medicina e da embriologia, indispensáveis para que se firme uma posição favorável ou contrária ao aborto.
Se a decisão do Poder Legislativo for favorável ao aborto, e não do Poder Judiciário em razão da matéria, que seja tomada de maneira consciente e não com escusas irreais de que haveria vida somente quando ocorresse a formação do córtex, ou de que o córtex cerebral se forma depois do primeiro trimestre de gestação.
Sobre a igualdade de gêneros, é de evidência solar que um ser humano depende em sua formação dos dois gametas: masculino e feminino, portanto, não pode caber com exclusividade à mulher decidir sobre o futuro vivo ou morto do filho que está em seu ventre.E sobre os direitos sexuais e reprodutivos, sem dúvida, os primeiros são da mulher, que é livre para exercer sua sexualidade do modo que desejar, inclusive sem o uso de preservativos, mas os reprodutivos, reitere-se, são das duas pessoas das quais os gametas foram necessários à fecundação.
Os direitos fundamentais referentes à reprodução em relações sexuais consentidas são dos dois envolvidos na concepção do ser humano: mulher e homem, mãe e pai. Portanto a autonomia da vontade da mulher na interrupção de uma gravidez indesejada não pode ser absoluta. Aliás este é mais um princípio maltratado nas análises jurídicas, já que a tal autonomia muitas vezes depende do consentimento de duas pessoas.
Sobre a mulher pobre, como o próprio acórdão ressalta, cabe ao Estado prover os meios necessários ao planejamento familiar, o que é feito e deveria ser ainda mais divulgado. Percebe-se que a divulgação dos meios contraceptivos oferecidos à população gratuitamente é feita muito mais em períodos de carnaval, quando as relações sexuais são mantidas todo o ano e essa divulgação deveria ser muito mais constante.
E neste passo é de lembrar que a utilização de meios contraceptivos, como a conhecida camisinha, por todos, inclusive pelos menos favorecidos, chamados pelo acórdão de “mulheres pobres”, é altamente salutar, não só para que não concebam sem querer, como ainda para que não contraiam doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS, esta, sim, causa de mortalidade.
Aliás têm sido muito utilizados argumentos aparentemente favoráveis às mulheres, em que são tratadas em geral como pessoas mais frágeis, o que no meu modo de ver importa em discriminação. Sempre que uma classe ou gênero humano for tratado com privilégios, exceto no que se refere, por exemplo, aos incapazes (menores de 18 anos e maiores deficientes mentais), aos deficientes de todo o gênero e aos idosos, estaremos diante de suposto privilégio, que, na verdade, discrimina o que é igual, tornando-o desigual e inferior.
*Regina Beatriz Tavares da Silva é Presidente da ADFAS (Associação de Direito de Família e das Sucessões). Doutora em Direito pela USP e advogada.