NOVO CÓDIGO CIVIL APRESENTADO NO SENADO INVERTE ÔNUS DA PROVA E OBRIGA A RECONHECER PATERNIDADE SE HOUVER RECUSA DE DNA
Anteprojeto propôs a alteração ou a revogação de 897 artigos, quase metade do total, e o acréscimo de mais de 200 dispositivos ao texto
Por Pâmela Dias
O Código Civil brasileiro, em vigor desde 2002, deve passar por sua maior reformulação em mais de duas décadas. Um anteprojeto de lei apresentado por uma comissão de juristas e encaminhado ao Senado este mês propõe mudanças em aspectos da vida que vão do nascimento à morte. As propostas, no entanto, dividem opiniões. No caso da paternidade e herança, por exemplo, enquanto parte dos especialistas defende a atualização como necessária e oportuna, outros criticam pontos do texto e alertam para riscos de retrocessos.
O anteprojeto propôs a alteração ou a revogação de 897 artigos, quase metade dos 2.063 que compõem os direitos dos cidadãos em vigor, e o acréscimo de mais de 200 dispositivos. Segundo juristas, algumas inovações foram necessárias por conta das transformações sociais e tecnológicas desde a última versão.
O reconhecimento de paternidade está entre os maiores embates decorrentes do novo texto, que prevê que o homem indicado pela mãe como pai de uma criança registre o filho ou realize exame de DNA. Caso o suposto genitor se recuse ou se omita, o oficial do cartório deverá incluir seu nome no registro, encaminhando a ele cópia da certidão da criança.
O anteprojeto não estabelece um prazo fixo para a manifestação paterna e só prevê judicialização do caso quando o homem não for localizado. De acordo com o texto, “a qualquer tempo, o pai poderá buscar a exclusão do seu nome do registro, mediante a prova da ausência do vínculo genético ou socioafetivo”.
A proposta do Código Civil inverte, assim, o ônus da prova. Atualmente, cabe à mãe buscar a Justiça para provar a paternidade e confirmar que o homem apontado por ela realmente é o pai de seu filho.
O fardo de ‘correr atrás’
Dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) apontam que, dos mais de 25 milhões de nascimentos registrados entre 2016 e 2025, em quase 1,4 milhão não há o nome do pai na certidão. Entre esses casos, apenas 18% tiveram, posteriormente, a paternidade reconhecida.
O Brasil também acumula pedidos de investigação de paternidade nos tribunais. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que, desde 2020, o país teve mais de 493 mil novos processos abertos. O pico aconteceu em 2023, quando quase 106 mil brasileiros reivindicaram esse direito.
A assistente social Carla Patrícia dos Santos, de 53 anos, conta que sua filha, hoje com 36, é uma das brasileiras que não têm o nome do pai na certidão de nascimento. Ela viveu na adolescência o dilema de ser abandonada grávida pelo seu então namorado, que sequer conheceu a menina.
— Eu tinha 17 anos, na época, e nunca tinha ouvido falar em testes de DNA. Na minha cabeça de jovem, o mais importante seria o interesse de um pai por uma filha. Como ele não tinha, eu pensava que não precisaria acrescentar o nome dele na certidão — recorda.
Patrícia enxerga com bons olhos a possível mudança no reconhecimento da paternidade:
— Acho que essa iniciativa é excelente, e espero que realmente funcione, pois vai desresponsabilizar nós, mulheres, desse fardo de ter que estar correndo atrás do pai e dizendo: “Vamos lá cumprir com a sua responsabilidade” — opina.
Opiniões divergentes
Para a advogada Elena Gomes, professora de Direito Civil na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a mudança na lei é “perigosa”, por eliminar inicialmente a intermediação da Justiça no processo de produção de provas da paternidade. Desse modo, consequentemente, o suposto genitor seria obrigado a assumir todos os deveres enquanto pai, incluindo o pagamento de pensão alimentícia, ainda que não o seja. Gomes avalia que o texto poderia abrir brechas tendenciosas por parte da mãe.
— Não é que a recusa a se submeter ao teste de DNA não tenha valor, mas esse valor tem que ser apreciado em conjunto com os outros elementos de comprovação, e não algo feito extrajudicialmente, sem rigor e sem critério. Em um caso extremo, por exemplo, uma mãe pode dizer que o Papa Francisco é pai de seu filho. Ele, provavelmente, não vai nem responder à intimação e, assim, pode ser posto como genitor — explica.
Por outro lado, o Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Rodrigo Pereira, acredita que a atualização no Código Civil seria um avanço importante, pois pode acelerar o processo de reconhecimento de paternidade e reduzir o número de registros sem filiação completa.
— A mudança proposta garante o exercício pleno da cidadania, com direito a pleitear alimentos, convivência familiar, inclusão em plano de saúde e direitos sucessórios. Tal providência impede que mães aguardem meses ou anos o reconhecimento de um vínculo paterno-filial, frequentemente negado por mágoa, desconsideração ou capricho — pontua.
Hoje, segundo o CNJ, a Justiça leva cerca de 2 anos e 4 meses para realizar o primeiro julgamento de um caso de investigação paterna.
Já a registradora pública Marcia Fidelis, presidente da Comissão de Registradores do Ibdfam, afirma que o modo como o anteprojeto foi formulado busca garantir identidade e filiação à criança ainda na infância.
— Embora exista uma tensão real entre a necessidade de rapidez no reconhecimento da paternidade e a garantia de que o registro civil reflita a verdade dos fatos, esse conflito pode ser inevitável diante da urgência de proteger os direitos das crianças — defende.
O Presidente da Arpen-Brasil, Devanir Garcia, aponta que, caso a proposta seja aprovada, é fundamental que o legislador se atente à necessidade de um fundo de custeio para esse novo ato. O texto não trata sobre esse tipo de recursos.
— O registro de nascimento é gratuito por lei, e essa nova atribuição ao cartório, que envolve deslocamento de servidores, notificações e custos operacionais, também precisa ser coberta adequadamente para garantir sua viabilidade sem onerar os cartórios — diz.
Direito à herança
No caso do direito à herança, apesar de o texto atual ser, por unanimidade, considerado confuso por juristas, as alterações apresentadas também são alvo de debates. O novo texto prevê que o cônjuge seja retirado da posição de herdeiro necessário — aquele que têm direito garantido por lei a uma parte do patrimônio. A proposta destaca que, em caso de falecimento, a viúva ou o viúvo só herda os bens se não houver descendentes ou ascendentes vivos.
Hoje, pelo Código Civil, são herdeiros necessários os filhos, netos, pais, avós, marido e esposa. Eles não podem ser deserdados, salvo em casos específicos previstos na lei, como abandono ou crime contra o autor da herança.
A Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares, defende que a nova proposta atenderia especialmente aos interesses de pessoas que se casam com separação de bens. Atualmente, apesar de o patrimônio ser particular neste regime, quando um dos cônjuges morre o outro tem direito à herança.
— As pessoas casadas nesse regime não se conformam com a lei atual porque a separação de bens deveria valer em vida e na morte. Penso que a norma atual precisa passar por flexibilizações — afirma.
A advogada Elena Gomes lembra que outro ponto previsto na nova norma é que, apesar de o cônjuge passar a não ter direito à herança, caso ele comprove hipossuficiência perante o juiz, poderá usufruir de bens, ou seja, ter acesso a patrimônios que compuserem o espólio. A proposta não determina quais bens seriam esses e nem o percentual a qual o marido ou esposa passaria a ter direito.
— Acho essa regra muito ruim porque o cônjuge não vai ser “proprietário”, mas poderá ser usufrutuário de bens que compuserem a herança. Mas que bens são esses? Que parâmetro é esse? Fica tudo mais uma vez a cargo do juiz decidir, o que resulta sempre em insegurança jurídica — pondera Gomes.
Fonte: O Globo