NOVIDADES SOBRE REPRODUÇÃO ASSISTIDA NO BRASIL
Regina Beatriz Tavares da Silva
Com o advento do Código Civil de 2002, o parentesco não se restringe mais às relações de consanguinidade e de adoção, alcançando, além do parentesco socioafetivo, sobre o qual já falamos em artigo anterior para este Blog, um novo tipo de parentesco, baseado nos avanços biotecnológicos, referentes à reprodução humana artificial ou assistida.
Há basicamente dois métodos de reprodução artificial: a fertilização in vitro, na qual o óvulo e o espermatozoide são unidos numa proveta, ocorrendo a fecundação fora do corpo da mulher, e a inseminação artificial, consistente na introdução de gameta masculino, por meio artificial, no corpo da mulher, esperando‑se que a própria natureza faça a fecundação. O embrião é excedentário quando é fecundado fora do corpo (in vitro) e não é introduzido prontamente na mulher, sendo armazenado por técnicas especiais.
A fecundação ou inseminação artificial post mortem, por seu turno, é aquela realizada com embrião ou sêmen conservado por meio de técnicas especiais, após a morte do doador do sêmen.
A fecundação ou inseminação homóloga é realizada com sêmen originário do marido, e a fecundação ou inseminação heteróloga é feita com sêmen de terceira pessoa.
A reprodução assistida era regulamentada somente por meio de regras de deontologia médica, sem eficácia erga omnes (Resolução CFM n. 2.121/2015). Atualmente, a reprodução assistida deve acatar o Provimento CNJ n. 52, de 15 de março de 2016, da Corregedoria Nacional de Justiça, subscrito pela Ministra Nancy Andrighi, que dispõe sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida.
O Provimento nº 52 foi resultado de Pedido de Providências nº 0004722-19.2014.2.00.0000 cujo escopo era obter a normatização do registro de nascimento dos filhos de casais homoafetivos, diretamente no Cartório de Registro Civil, com dispensa da propositura de ação judicial.
Este pedido de providências, equivocadamente, invocava, como fundamento para o seu deferimento, o acórdão do Supremo Tribunal Federal – ADPF 132 e ADI 4.277 – que reconheceu a união estável homoafetiva. No entanto, o acórdão em questão não trata da reprodução assistida, limitando-se a reconhecer existência jurídica da união estável entre casais do mesmo nexo.
A Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) foi, então, intimada pela então Corregedora Nacional de Justiça, Ministra Nancy Andrighi, a se manifestar. A ADFAS manifestou-se, fornecendo todos os dados e fundamentos necessários à melhor regularização da reprodução assistida (RA), tanto para uniões entre pessoas de sexo diferente como do mesmo sexo, em especial, no que se refere à revelação dos dados do doador do material genético e à segurança nos registros de seus dados, assim como no que toca à biparentalidade.
Importa mencionar que o número de casais heterossexuais que se submetem às técnicas de reprodução assistida é muito maior do que o de casais homossexuais, o que significa que o impacto do provimento é muito grande. O CNJ, ao acolher a manifestação da ADFAS, estabeleceu normas que se aplicarão tanto a casais heterossexuais quanto homossexuais.
Assim, o Brasil possui, agora, regulamentação sobre a reprodução assistida em Provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece muitas regras de extrema importância.
O mencionado provimento estabelece a vedação do anonimato do doador dos gametas (art. 2º, II e § 1º, I), em razão da necessidade intrínseca a todo ser humano de conhecimento da ascendência biológica, de eventual necessidade de tratamento genético e do risco de incesto que havia no seu anonimato.
A Resolução CFM nº 2.121/2015 estabelecia que “Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores”. Ademais, autoriza que um doador produza 2 gerações de crianças de sexos diferentes a cada 1.000.000 de habitantes. Levando-se em consideração que, de acordo com o IBGE, o município de São Paulo possui aproximadamente 12 milhões de habitantes e que a Grande São Paulo, 21 milhões, haveria a possibilidade de existirem, respectivamente, 24 e 42 irmãos dentro de tais áreas geográficas, com o risco de se conhecerem, se apaixonarem e praticarem involuntariamente o incesto. Vê-se, portanto, que a regulamentação trazida pelo Provimento nº 52 vem em boa hora e traz a vedação do anonimato como importante novidade.
No caso da adoção, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente já permitia, desde a Lei 12.010 de 2009, que o filho conhecesse quem é seu pai ou mãe biológicos.
Em tese de pós-doutorado que defendi junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, já destacava a importância dessa vedação, pois o ser gerado por tais técnicas, sabendo da sua origem, deve ter assegurado o direito de conhecer sua paternidade ou maternidade biológica, em preservação de seus direitos da personalidade, em especial do direito à integridade emocional e psíquica, previstos constitucionalmente, embora sem que exista entre ele e o pai biológico vínculo jurídico.
Assim, outra importante disposição trazida pelo provimento do CNJ sob análise é a inexistência de vínculo jurídico de paternidade entre os doadores e o ser gerado pela reprodução assistida (art. 2º, § 4º).
Note-se que no Brasil, antes desse provimento, havia somente regulamentação deontológica, que estabelecia o anonimato do doador, mas o ordenamento jurídico brasileiro possibilitava a criação de vínculo jurídico de paternidade, a ser buscado em processo judicial, desde que, ainda que por mero acaso, fosse conhecida a identidade do doador. Naquela mesma tese de pós-doutoramento, já defendia a necessidade de regulamentação desta questão em virtude das celeumas existentes acerca da possibilidade ou não de criação do referido vínculo de paternidade uma vez conhecida pelo filho a sua ascendência biológica. Com a nova normatização trazia pelo Provimento nº 52 a questão está resolvida.
Outra importante novidade é a atenção dada pelo provimento à necessidade de salvaguardar os dados dos doadores, em preservação dos direitos dos seres humanos gerados por meio da reprodução assistida.
É que o direito ao conhecimento da origem genética é um direito da personalidade derivado do direito à identidade, que é o elo entre o indivíduo e a sociedade. Impossibilitar o conhecimento da origem genética equivaleria a impedir que uma pessoa pudesse preservar sua integridade física e sua vida.
A Resolução CFM nº 2.121/2015 estabelecia que “as clínicas, centros ou serviços onde é feita a doação devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de acordo com legislação vigente”.
Essa resolução, no entanto, crê na utopia da infindável perpetuação das clínicas ou dos centros de reprodução assistida. Naquela mesma tese de pós-doutoramento eu já destacava que deveria caber ao Estado o dever de resguardar o material genético. E é exatamente isso que o novo provimento traz: em seu art. 3º, § 2º dispõe que todos os documentos referidos no art. 2º desse mesmo provimento – que trata dos documentos indispensáveis para fins de registro e da emissão da certidão de nascimento – deverão permanecer arquivados em livro próprio do Cartório de Registro Civil.
A biparentalidade é outra importante novidade, isto é, somente pessoas casadas ou que vivam em união estável poderão se submeter aos procedimentos de reprodução assistida. Isso porque às pessoas é atribuído o direito à reprodução ou procriação, inclusive àquela medicamente assistida, mas com esses direitos devem caminhar juntos também os deveres reprodutivos, ou seja, os deveres de quem quer procriar a proporcionar o bem estar ao ser humano gerado por essas técnicas.
Nesse sentido, na ciência da Psicologia e também na Psicanálise encontramos respostas marcadas pela necessidade da biparentalidade.
Assim, se o ideal da biparentalidade nem sempre é alcançável na procriação natural, que seja buscado na reprodução artificial seguindo o princípio da não maleficência, ou seja aquele que se fundamenta na obrigação de não acarretar dano intencional.
Por fim, dentre as importantes normas do Provimento nº 52, importa mencionar a necessidade de consentimento do marido ou do companheiro na reprodução assistida (Art. 2º, § 1º, II). A realização dos procedimentos sem o referido consentimento configura violação ao dever de respeito aos direitos da personalidade do cônjuge ou companheiro, que pode dar ensejo à dissolução do casamento cumulada com pedido de decretação das sanções pelo descumprimento desse dever conjugal, o mesmo ocorrendo na dissolução da união estável, com consequente dever de reparar os danos causados por meio da aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil. Do mesmo modo, a doação de esperma pelo marido ou companheiro sem o consentimento da esposa ou companheira configura violação do mesmo dever, podendo acarretar iguais consequências. Outra sanção é a perda do direito à pensão alimentícia por aquele consorte que realiza o procedimento sem o devido consentimento do seu par.
Portanto, a partir do advento do Provimento nº 52 do CNJ, o Brasil passa a contar com normas jurídicas reguladoras da reprodução assistida, que deixou de estar, dessa forma, regulada apenas por regras de deontologia médica. As informações levadas ao Conselho Nacional de Justiça pela Associação de Direito de Família – ADFAS, que auxiliaram na elaboração da nova sistemática da reprodução assistida no Brasil, tiveram sempre em foco os direitos da personalidade dos seres humanos gerados por meio de tais técnicas e que precisam estar sempre resguardados por arcabouço normativo adequado e que promova segurança jurídica. O ser humano gerado por reprodução assistida deve estar em primeiro plano em todos os casos de colisão entre os seus direitos e os dos envolvidos nessa técnica.
Fonte: O Estado de São Paulo