MAIS DE 100 MIL CRIANÇAS FORAM REGISTRADAS SEM O NOME DO PAI NESTE ANO

Milhões de brasileiros não tiveram o que comemorar no Dia dos Pais. A falta de resposta para a pergunta “quem é o pai da criança?”, comum para as “mães solo” que assumem toda a responsabilidade de criar um filho sem a presença paterna, tem crescido nos últimos anos. O registro de crianças sem o nome do pai, quando apenas a mãe comparece para registrar o filho em cartórios, aumentou 1,2% nos últimos cinco anos. Somente neste ano, já foram registradas quase 105 mil crianças com pais ausentes, conforme os dados do Portal da Transparência de Registro Civil no Brasil.

Os dados de pais ausentes, em 6 anos, equivalem a quase 1 milhão. A região Norte do país é a que concentra o maior número de crianças sem o registro do pai em relação ao total de registros, seguida do Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Levantamentos de anos anteriores estimam que a marca de crianças e jovens brasileiros sem pai passa de 5 milhões.

Ter o nome do pai na certidão de nascimento é um direito fundamental. Dele depende, inclusive, a possibilidade de postular pedido de pensão alimentícia em nome da criança. Além disso, também é essencial em casos de herança.

“Esse fenômeno tem raízes culturais, históricas, religiosas e até geográficas. Além disso, torna o Brasil, em termos absolutos e relativos, o país com maior número de crianças ‘sem pai’, no mundo. Por consequência, somos o país com o maior número de ações de investigação de paternidade, com o maior número de ações de alimentos e um dos maiores, em relação à violência contra a mulher”, disse o advogado Camilo de Lélis Colani, presidente da seção estadual da ADFAS na Bahia.

Aborto masculino?

O abandono paterno é, por vezes, tratado como o “aborto masculino”, por muitos especialistas. Para Colani, o abandono da mulher gestante pelo pai da criança desencadeia muitos outros problemas, como a busca pelo aborto, e acende um alerta sobre a busca de responsabilidades.

“Chamo essa ausência de registro de ‘aborto masculino’ em contraposição ao aborto feminino. Muitas mulheres abortam por não ter o amparo de um companheiro e do pai, nos aspectos espiritual e material. Falto o amparo de acompanhar desde o pré-natal até o nascimento e cuidado da criança. A ausência da paternidade expressa uma ausência de sentimento de família, eles não consideram o filho como sua responsabilidade. Quando a mulher antevê o abandono paterno, ela tende a achar mais simples a solução do aborto”, disse.

O professor Marlon Derosa, mestre em Bioética e autor de vários livros sobre os riscos do aborto, vê a ausência paterna como uma fragilidade nas famílias e como um enorme risco para muitas mulheres que optam pelo caminho do aborto.

“O fato de ter muitas crianças sem o pai mostra que as famílias estão fragilizadas e que os casais estão tendo um relacionamento sem discernir sobre a importância do que é ter um relacionamento. As pessoas não estão sabendo se relacionar, buscam algo passageiro que não vai durar, e tem relações sexuais sem qualquer tipo de prevenção, engravidam e as consequências acabam recaindo sobre a criança, que foi concebida sem um lar, e para a mulher, que tem que arcar com todas as responsabilidades sozinha”, alerta.

São muitas as evidências de que a desestruturação familiar aumenta a incidência de crimes. Um país de pais presentes é também um país com menos evasão escolar, menos violência (tanto em casa quanto nas ruas) e menos encarceramento. O zelo pela vida em sua integridade, afinal, não pode ser exigido só de uma das partes.

Um estudo feito pelo Ministério Público de São Paulo em 2018, por exemplo, concluiu que apenas 17% dos adolescentes autores de atos infracionais internados na Fundação Casa moravam com ambos os pais antes de serem colocados nas instituições em que cumpriram medidas socioeducativas. Aproximadamente 14% dos jovens internados viviam com a mãe e o padrasto.

Na grande maioria dos casos, portanto, não havia referência masculina estável. Em 2006, ao fazer uma análise semelhante, uma tese de doutorado da Universidade de São Paulo concluiu que apenas 30% dos adolescentes que cometeram atos infracionais foram criados pelos pais.

Optar pelo aborto – em caso de abandono paterno – jamais deve ser encarado como uma solução para as mulheres. Além dos riscos, Derosa destaca que essa ideia de solução acaba sendo imposta por homens que dizem não ao bebê e deixam as mulheres sem saída.

“O aborto é uma experiência traumática e terrível para mulher – a pior decisão a ser tomada, por ser um assassinato. O feto é exterminado e não se resolve o problema da negligência masculina”, disse Derosa.

Falta o senso de responsabilidade paterna

A responsabilidade de assumir um filho é ter compromisso com o futuro de uma pessoa. Porém, muitos pais optam por fugir dessa responsabilidade por conta de questões econômicas ou até mesmo culturais.

“Há um fator cultural muito forte, que eu chamo de machismo estrutural, que faz com que muitos homens separem filhos que consideram legítimos dos ilegítimos. Filhos que consideram legítimos seriam das mulheres com têm uma relação afetiva; e filhos que consideram ilegítimos seriam com outras mulheres”, destaca o advogado da ADFAS.

Para a advogada Isadora Hana, especialista em direito familiar, “a responsabilidade de um filho é de ambos os pais e, socialmente, é necessário que se cobre de um da mesma maneira que se cobra do outro”.

“Historicamente, o filho ‘pertence’ à mãe, mas – insisto -, nenhuma mulher o faz sozinha. É necessário mudar essa consciência de responsabilidade. É necessário cobrar dos pais aquilo que também é dever deles. Não é possível suprir as necessidades de uma criança – que não se limitam às materiais – com uma pensão irrisória e uma visita quinzenal, quando há”, disse.

Derosa chama a atenção para a importância da “educação afetiva” para a responsabilidade familiar. “Ter uma relação sexual não é só a responsabilidade de prevenir DST, mas pensar na responsabilidade com o outro e envolve a responsabilidade do fruto da relação sexual. A afetividade é sinônimo de responsabilidades”, explica.

Reconhecimento judicial da paternidade

O reconhecimento da paternidade é garantido no Brasil, por meio da Lei 8.560 de 1992. Porém, após 30 anos em vigência, a falta de registro paterno nas certidões de nascimento ainda é uma realidade crescente.

Segundo o advogado Colani, essa lei não conseguiu assegurar o procedimento de investigação da paternidade e até 2011 foram mais de 5 milhões de crianças registradas sem a menção do pai.

“É uma lei que falhou e não pegou, não teve eficácia social e apresentou uma série de falhas no sistema de cartórios e no Ministério Público. A lei não conseguiu ser efetivada, deveria iniciar a investigação no momento que a mulher vai registrar, porque a prova da paternidade está mais fresca e fácil de ser obtida”, explicou.

Colani ainda acrescentou que: “a ideia da norma é criar o vínculo mais rápido pra diminuir o impacto social, dando a responsabilização aos pais o mais cedo possível na vida das crianças”.

Diante da importância do registro paterno, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou, em agosto de 2010, o Programa Pai Presente que busca fomentar o registro civil de nascimento e o reconhecimento de paternidade, ainda que tardios. Em 2012, a corregedoria do CNJ atualizou as regras para registro paterno, por meio do provimento nº 16.

O programa estimula os juízes a notificarem as mães de estudantes cuja certidão de nascimento não tenha o registro paterno para que compareçam ao fórum e informem os dados do suposto pai. A partir daí, o juiz pode iniciar o procedimento de investigação oficiosa de paternidade.

Pelas novas regras, mães e filhos maiores de 18 anos que não possuem o nome do pai na certidão de nascimento podem procurar qualquer cartório de registro civil do País para indicar o nome do suposto pai e dar início ao pedido de reconhecimento. O mesmo procedimento pode ser adotado pelos pais que desejam espontaneamente fazer o registro dos filhos, ainda que tardiamente.

Desde 2010, o Pai Presente resultou em mais de 536 mil notificações emitidas por juízes de várias comarcas do país, e foram garantidos 42 mil reconhecimentos espontâneos, além de 15,4 mil pedidos de exames de DNA (quando o pai não reconhece espontaneamente). A Corregedoria Nacional de Justiça estima que os dados devem ser muito maiores, pois em muitos dos mutirões realizados pelos tribunais, os números não foram computados.

Fonte: Gazeta do Povo (15.08.2022)

Fale conosco
Send via WhatsApp